quarta-feira, 12 de março de 2008
A Batalha da Educação: superar a crispação , alargando o horizonte
1. A grande manifestação de professores, ocorrida no passado fim-de-semana em Lisboa, impõe alguma reflexão.
Aliás, começam a fazer-se sentir as primeiras consequências. O Governo parece ainda algo errático. Num primeiro momento, refugiou-se na repetição de alguns lugares comuns e numas quantas frases redondas. Depois, rompendo a bruma de algumas posições contraditórias, parece ter-se começado a mover.
Seja qual for a evolução do conflito, a educação vai ocupar um lugar de destaque na agenda política, durante os próximos tempos.
2.Vale pena pensar-se um pouco sobre a política de educação do actual Governo protagonizada pela Ministra da Educação. Num certo sentido, pode dizer-se que ela estava já no centro da agenda política. Cem mil professores manifestando-se em Lisboa contra ela tornaram-na na expressão aguda de uma conjuntura política que pode dramatizar-se.
Na verdade, um facto desta dimensão é, em si próprio, um dado novo de extremo relevo na cena política. Deixou de fazer sentido continuar apenas a dar centralidade à esgrima de argumentos, entre as duas partes que mais fortemente polarizam a discordância. Passou a ter que se lidar politicamente com esse novo facto social.
As reacções do governo tidas a quente, apesar do seu superficialismo ingénuo, aparentemente objectivo, são compreensíveis e aceitáveis como respostas de circunstância prudentes, numa conjuntura difícil. Não é, mesmo, de esperar uma resposta política de fundo no curtíssimo prazo, mas não pode demorar muito a assunção de uma política diferente por parte do Governo.
Eu não estou a falar numa cedência às reivindicações dos professores ou a algumas delas, estou a falar num acréscimo de ambição na política educativa do governo conjugada com uma abertura completa a um diálogo estratégico com os professores, de modo a desvalorizar objectivamente os pontos de clivagem actuais. De facto, se tal for conseguido poderão ser atingidos em simultâneo vários objectivos, aparentemente contraditórios: a política de educação será melhorada e a paz entre professores e Governo será alcançada sem que nenhuma das partes perca a face.
3. Pode parecer irrealista e angelical sugerir um tal caminho. No entanto, se prestarmos atenção, são as próprias limitações da política educativa do Governo e o carácter extremamente pontual das reivindicações dos professores que tornam realista a proposta de uma abertura de um horizonte mais ambicioso na educação, como um caminho para uma aproximação de posições hoje aparentemente extremadas e incompatíveis.
Na realidade, embora os objectivos últimos da reforma da educação afixados pelo Governo sejam generosos, óbvios e consensuais, as medidas concretas assumidas como emblemáticas que assinalam o caminho percorrido resumem-se a um leque instrumental relativamente pouco importante. Assim, pode achar-se positivo garantir aulas de substituição, organizá-las desta ou daquela maneira, pagá-las ou não como serviço docente, mas não se pode dizer que estejamos perante uma medida estruturante de uma reforma da educação. Pode discutir-se a avaliação dos professores, questionarem-se os critérios de avaliação, hesitar-se entre quem deve ser avaliador, sem que se consiga um salto em frente na qualidade do ensino.
4. De facto, mais importante teria sido discutir, tirando daí as respectivas consequências práticas, sobre a necessidade de reverter a destruição da formação de professores feita nas Universidades, iniciada nos anos 80; sobre o facto de os poderes públicos terem delegado a formação contínua dos professores nos Centros de Formação de Professores, entidades esquisitas pelo seu hibridismo, para o qual se revelou tão difícil dar uma resposta jurídica adequada; sobre os inconvenientes resultantes da abertura incondicional e irrestrita da profissão docente a diplomados por estabelecimentos sem credibilidade ou mesmo a pessoas sem diploma adequado, recicladas à pressa em cursinhos de fim de semana.
Num contexto em que se valorizassem as questões de fundo do nosso sistema de ensino, seria natural que a avaliação dos professores fosse encarada numa perspectiva diferente daquela em que se tem insistido. Isto é, encarando-a como um método de aferição das dificuldades vividas pelas escolas e pelos professores, bem como das respectivas deficiências, avaliando-se assim a qualidade do ensino como condição necessária para se tomarem medidas que a melhorassem, numa perspectiva de ajuda aos professores e às escolas.
Depois de iniciada a requalificação da formação inicial dos professores, bem como depois de se reformular por completo a sua formação contínua, depois de se ter experimentado e aperfeiçoado todo o processo de avaliação pela sua aplicação durante alguns anos, estariam reunidas condições para, em natural sinergia com os professores, se começarem a retirar consequências profissionais e remuneratórias da avaliação. Em paralelo, ter-se-ia feito progredir o sistema de ensino público e ter-se-ia conseguido gerar um instrumento de avaliação dos professores crível, eficaz e justo.
Já me parece politicamente cínico que o Estado tenha, desde há décadas, promovido políticas ou consentido em derivas que conduziram à degradação da qualidade na formação de professores, fugindo até de responsabilidades que desde sempre lhe haviam competido, para se lançar de súbito numa cruzada pela qualidade do ensino, centrada numa avaliação dos professores, que tem implícita a sua exclusiva responsabilização individual por todas as suas insuficiências.
Pode até parecer que se está perante pouco mais do que uma encenação, destinada a justificar e legitimar a degradação da situação salarial dos professores. Ou seja, sob a capa de um reformismo decidido, visando a melhoria da qualidade do ensino, o que verdadeiramente está no centro desta política é a diminuição das despesas com a educação.
Quanto à gestão das escolas, também é indispensável sair do quadro estreito em que a questão tem sido colocada. Na verdade, as medidas tomadas parecem espelhar uma atmosfera de desconfiança quanto a tudo o que é funcionamento democrático, bem como uma grande confiança em tudo o que é hierárquico, burocrático e autoritário.
Neste campo, é particularmente importante escapar á vulgata neoliberal que insiste na ilusão de que só há um tipo de racionalidade organizativa, a das empresas capitalistas de grande dimensão. Mesmo o mundo empresarial não se reduz a elas, quanto mais o mundo das organizações. Na verdade, a racionalidade que se exige para o funcionamento de uma instituição como a escola não é menos exigente da que é seguida pelo referido tipo de empresas, mas é diferente.
É óbvio que não está aqui em causa aprofundar a análise de qualquer dos temas comentados; e muito menos sustentar que são estes os únicos relevantes. Apenas se quer mostrar como se tem andado longe das questões verdadeiramente estruturantes do sistema educativo, das medidas que podem conduzir a um verdadeiro progresso qualitativo duradouro do nosso sistema público de ensino.
Que um processo de reforma de longo alcance, resultante de medidas articuladas e sequenciais que envolvam e entusiasmem os professores, seria um contributo decisivo para um salto qualitativo na vida dos portugueses, não tenho dúvidas. Mas duvido muito que uma colecção de medidas dispersas de poupança nos gastos, mesmo embrulhada nalgumas melhorias episódicas, leve muito longe.
5 . Em reuniões dispersas de militantes do PS ligados à educação com dirigentes ou governantes, ao longo dos últimos meses, tem ocorrido aquilo que podemos classificar como um diálogo de surdos. Os dirigentes ou governantes excedem-se em encomiásticos elogios à Ministra, aqui e ali apoiados por militantes entusiasmados com os seus. feitos . Em contrapartida, muitos professores socialistas, e outros militantes, têm vindo a alertar para o descontentamento generalizado que a política da Ministra tem provocado entre os professores, bem como para o relevo que algumas medidas pontuais e o modo como, em geral, é conduzida a sua política, têm tido, como causas desse descontentamento.
Depois da manifestação ocorrida em Lisboa, é impossível não reconhecer, como um dado objectivo, que esses militantes estavam certos. Se incompreensivelmente não forem tiradas daí consequências adequadas, o que há a fazer dentro do PS é preparar para o próximo congresso nacional uma moção de orientação política alternativa com base na qual os professores socialistas se juntem com outros trabalhadores socialistas descontentes com a linha seguida, e com quadros políticos que estejam em consonância com eles, de modo a terem, pelo menos, uma voz política efectiva dentro do Partido, ou até, se for caso disso, ganharem o Congresso. Este é o dever que têm perante o Partido e perante o país.
E deve sublinhar-se, concluindo, que todo este bloco crítico de militantes socialistas tem um dever de acção consequente, dentro do PS, podendo ser extremamente penalizante para o futuro do país e do PS o seu imobilismo ou a sua inconsequência política.
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4 comentários:
O mais importante é o final do artigo, os dois ultimos parágrafos.
Alvaro Aroso
Aqui está uma análise de um político mas, sobretudo, de um professor. É raro ler um artigo que aborde o cerne do problema: a qualidade do ensino, da escola. Esta passa pela qualidade dos professores - porém, não a "qualidade" economicista e expiatória que querem impor - mas, diria principalmente, pela qualidade das reformas - muito necessárias - que deveriam implementar-se e que, contudo, ficam por isso mesmo: reformas, remendos, sem qualquer impacto na qualidade do ensino. Como bem refere, as aulas de substituição, grande cavalo de batalho, são um logro (o prof de mat que vai substituir o prof de português é tragicamente cómico). Como é um logro em grande parte dos casos as actividades de complemento curricular (conheço uma psicóloga, com nula formação musical que dá aulas de música a crianças), a escola a tempo inteiro, os cursos CEF que nada têm de formação nem de educação, etc. O rigor da aprendizagem, a exigência, a aquisição de competências científica, humanística, cívica, não são objectivos da escola actual. Por isso, os diplomas de licenciatura, mestrado ou doutoramento são um logro fora das universidades de prestígio. A escola está a formar uma maioria de elites de incompetentes.
Por isso a sua análise denuncia o rei nu, pelo menos para os mais atentos, e o balofo da "política educativa" deste ME e deste governo.
Ministra corajosa? A arrogância ignorante (pleonasmo?) é sempre corajosa. Tal como as Fúrias, segue em frente, pisando pareceres (o do Provedor de Justiça no caso do concurso para titulares, os do CNE, os do Conselho de escolas...).
Finalmente, sentindo-se ÚNICA voz da razão contra 100.000 professorzecos.
O mais importante não são os dois últimos paragrafos, mas sim a lógica inerente ao texto, o raciocínio utilizado. Esse parece-me ser o ponto a destacar deste texto, que me parece bastante lúcido e certeiro.
A questão da educação, posta nos modos em que agora está colocada é tão somente uma questão de inteligência!
Seria interessante poder exercitá-la. Mas a bruma da ignorância vai-se adensando... Sabe, quando a vontade é pouca não se pode esperar mais. Discuta-se a Educação, que ela bem precisa.
UM DOS POUCOS DISSE
A um dos muitos: os 2 paragrafos sao importantes. Vá lá, nao custa muito admitir que se enganaram quanto ao Socrates e que é preciso mudar o PS, aliás é urgente. O PS nem sabe se, á beira das eleições, vai ficar com as calças na mao.
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