Há um estranho ruído público a propósito da questão do BCP. Não sabemos ainda o desenlace do episódio. Não é possível penetrar nas profundezas de alguns dos comentadores em voga, para aí encontrar as raízes dos seus escritos e das sinuosas imputações que lançaram, a propósito do caso em debate.
Mas há um resultado que parece ter sido atingido: afastar do primeiro plano da agenda mediática o essencial do episódio.
De facto, o processo em curso, dentro do BCP, começou com uma luta interna pelo poder entre dois clãs rivais, um deles encabeçado por um patriarca e outro por um seu ex-delfim. As vicissitudes da pugna saltaram para a comunicação social. Ficou claro que na discreta penumbra dos corredores do poder económico se esboçavam golpes e perpetravam traições florentinas, ao pé das quais as tão vituperadas lutas internas no seio dos partidos políticos, impiedosamente escrutinados pela opinião pública, não passavam de brincadeiras infantis.
Ou seja, esse lugar por excelência da competência empresarial portuguesa, onde a racionalidade imperava como uma atmosfera irremovível, distante das emoções e das pequenas perfídias dos mortais, era afinal um "ring" como qualquer outro, em que cada contendor põe o adversário KO, se puder.
De facto, quando o ex-delfim parecia afinal removido para a penumbra dos executivos perdidos, eis que alguém levanta subrepeticiamente um tapete , por debaixo do qual se acumulavam perturbantes indícios de estranhos favores que, por si sós, esboroaram a vitória anunciada do patriarca.
Indícios que, não significando uma condenação antecipada, puseram em movimento vários mecanismos de controle da legalidade e das regras jurídicas internacionais que regem o sector. Indícios mencionados com suficiente clareza para que seja evidente que, podendo haver lugar ou não para sanções penais ou administrativas, não foram respeitadas as regras mínimas da ética empresarial. As asas do patriarca, ungidas pela piedosa marca da Opus Dei, não eram afinal os preciosos instrumentos para os altos voos de uma gestão bancária impoluta, mas uma aconchegante oportunidade para se encobrirem favorecimentos e benesses, distribuídas com base nos cânones seguidos pelos pecadores comuns.
Os accionistas, movidos pela humana tentação de salvaguardarem os seus investimentos, procuraram um remédio que trouxesse a esperança salvífica de uma outra lógica, que funcionasse onde falhara a aura do mais prestigiado e mais santificado dos banqueiros. De facto, não sendo possível procurar uma excelência mais excelente do que a excelência falhada, apenas restava procurar a garantia de uma outra lógica, que induzisse outro estilo e fosse amiga de outros objectivos, desde que fosse claro que dispunha dos índices de tecnicidade empresarial suficientes.
A escolha do ex-Presidente da CGD foi , por isso, a consequência de um desmoronamento dentro da nata dos gestores da banca privada, para além, de ser evidente a sua competência no desempenho de funções do mesmo tipo. Representa uma ilustração clamorosa do carácter propagandístico de muitas das ideias correntes, quanto à excelência de tudo o que é privado e quanto á tacanhez de tudo o que é público. Mostra que, na hora da verdade, os accionistas agiram de acordo com aquilo que realmente pensam e não de acordo com a vulgata ideológica neoliberal, de que implicitamente se aproveitam.
Ver nisto uma conspiração do Governo é tão idiota que só pode ser uma manobra de encobrimento do que realmente importa. E como grande parte dos difusores públicos de tal conspiração nada têm de idiotas, estamos seguramente perante encobridores, tenham eles ou não consciência disso.
Por outro lado, é legítimo que cada um pense o que entender sobre o comportamento dos responsáveis pelo Banco de Portugal ou pela Comissão que regula o mercado dos valores mobiliários, mas afirmar ou sugerir que a culpa do que aconteceu é deles, esquecendo as possíveis irregularidades eventualmente cometidas, é uma tentativa de absolvição sem julgamento dos possíveis prevaricadores.
Sôfrego na sua vertigem de oposição ao Governo, o PSD entrou por este problema dentro, como "um elefante por uma loja de brinquedos". Exuberante em acusações ao Governo viu a realidade esvaziá-as aceleradamente. Náufrago de si próprio, multiplicou os dislates, mostrando como é um verdadeiro perigo público a sua actual liderança, por vezes devastadoramente radical, outras vezes quase melíflua, por vezes com pose de Estado, outras vezes quase infantil.
Foi então que um grupo de ex-banqueiros e gestores, alguns dos quais aposentados, resolveu lançar, com encenação puramente política, um candidatura à direcção de um banco privado. Em si mesma , esta candidatura de "revanche" era tão ostensivamente uma manobra política que se poderia até pensar que, levando à letra o que disse o seu líder, ela se apresentava contra si própria.
Enfim, não devemos deixar que se oculte o que de essencial está em jogo, com quaisquer manobras de diversão. O controle do poder económico pelo poder político democrático é uma necessidade política, para além de ser um princípio estruturante da Constituição Económica Portuguesa.É um imperativo democrático e constitucional e democrático, não é uma intromissão: também os banqueiros se têm que subordinar às leis.
4 comentários:
Em todo este processo, o que me parece mais estranho é o facto de accionistas privados aceitarem de bom grado, a intervenção dos poderes públicos na nomeação/indicação da nova administração.
Não estaremos aqui perante um trade-off do género " ou aceitam esta solução e mantemos tudo com está, ou avançamos para uma investigação mais profunda das actividades do BCP, com consequências imprevisiveis não só para o banco, e respectivos accionistas, como para a credibilidade do sistema financeiro nacional ?"
1º Não foi revelada qualquer prova de uma intervenção dos poderes públicos na nomeação da nova administração.
2º No actual sistema político e no contexto europeu,seria correr um enorme risco de um verdadeiro suicídio político propor a transacção que refere.
Logo, podendo em teoria pensar-se que o Governo seria suficientemente dúplice para proceder desse modo, já me parece absurdo considerá-lo tão estúpido que por tão pouco se arriscasse tanto.
E arriscar para quê? Que vantagem tão apreciável haveria em conseguir a solução baseada no ex-presidente da CGD?
Enfim, essa acusação não tem real sustentação, nem na lógica, nem na realidade conhecida.
Parece mais racional admitir a hipótese implícita na postagem comentada, sendo certo que a credibilidade do sistema financeiro nacional só será gravemente atingida se forem confirmadas falcatruas que depois fiquem impunes.
Caro RN
Não estou a fazer nenhuma acusação.
Apenas tento encontrar uma explicação lógica para o que se está a passar.
Afinal, quem interferiu/sugeriu o novo administrador do BCP?
Qual a lógica desta transferência ?
Por acaso não estará o governo (qualquer governo) sempre disponivel para salvar a imagem do sistema financeiro ?
Sem querer insistir demasiado nesta troca de comentários, e aceitando que pelo seu lado se trate mais de levantar hipóteses do que de formular acusações, sempre lhe digo que me parece que os principais accionistas do BCP devem conhecer suficientemente bem o mundo da banca para dependerem de sugestões externas. Mas, evidentemente, que só quem tenha participado em concreto no processo pode conhecer a resposta á questão que coloca.
Quanto à defesa da credibilidade do sitema financeiro, embora até pense que, na maior parte dos casos, a lógica que sugere é a mais provável, não acho nada positivo que isso aconteça.
Por mim, preferiria uma defesa da credibilidade do sistema que assentasse no rigoroso cumprimento da lei.
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