O
CHARME INDISCRETO
1.Há
vozes de direita trauliteiras e há vozes de direita meigas. Há vozes de direita
que vociferam sempre e há vozes de direita que são hábeis nas tocaias, só
atacando quando acham oportuno. Há vozes de direita que explodem ao vermelho e
há vozes de direita que nunca perdem a calma. Há vozes de direita que atacam
sempre e há vozes de direita que só atacam quando nos vêem frágeis. Há vozes de
direita que atacam todas as esquerdas e há vozes de direita que atacam a parte
das esquerdas que em cada momento lhes convém. Há vozes de direita que não
disfarçam a sua acrimónia quanto à esquerda e há vozes de direita que batem nas
costas das esquerdas com a subtileza de quem procura o lugar onde um dia
cravarão o punhal.
Da
direita, seja ela trauliteira ou subtil, não se espere lisura e lealdade no
combate político. Da direita, seja ela trovejante ou melíflua, não se espere
uma distinção entre as esquerdas, quando as puder ferir seriamente. Para todas as
direitas, a esquerda enquanto alvo está sempre unida.
2.
Disto as esquerdas nunca se devem esquecer. As suas diferenças, se forem autênticas
e não destruírem a casa comum, são uma virtude e uma respiração natural. Repito:
se tiverem sempre em conta que são um alvo comum para todas as direitas, sejam
elas brutais ou melífluas.
E
que nenhuma das esquerdas se esqueça que, por mais mansa que pareça, qualquer
direita, pela sua própria natureza, sempre que puder cravará a faca nas costas
de qualquer das esquerdas.
3.Muitos
de nós podem ainda lembrar-se de como
era, quando a direita autoritária ocupava o poder sem freios, quando havia um
poder não democrático em Portugal .
E
se nem todas as direitas são iguais, todas cabem numa mesma palavra. Todas têm
no seu código genético como desígnios, a conservação da desigualdade, a
relativização da liberdade, a subalternização de facto das pessoas às coisas,
do trabalho ao capital. Todas vivem com base no pressuposto de que as esquerdas
são um empecilho ao paraíso dos privilégios. E só não afastam esse empecilho se não puderem.
4.Em
prol do mundo que almejam, o combate político das esquerdas deve ser sempre
leal e democrático. Mas isso não significa que possa assentar na ilusão de que
a direita adopta uma posição simétrica. A direita política é a formalização dos
poderes de facto no tipo de sociedade em
que vivemos. Só encara o futuro para o confiscar, de modo a torná-lo um espelho
cada vez mais pobre do presente.
Assim, no mundo em que vivemos a esquerda tem sobre a direita uma superioridade
trágica, que está longe de ser evidente, mas que se reforça dia a dia. Na
verdade, se a direita através do uso das suas vastas alavancas de poder
conseguisse destruir as esquerdas no mundo, reduzindo a nada qualquer resistência ao
capitalismo neoliberal, pouco tempo teria para celebrar a sua imaginária
vitória. Apenas teria passado a certidão de óbito, não à esquerda, mas à própria civilização humana e no limite à existência da própria espécie humana.
No mundo de hoje, o drama é pungente. E se cada país tem uma história própria, ela no essencial não difere de todas as
outras. Pricipalmente, não está imune a todas as outras.
Por
isso, devemos ter sempre presente, em analogia com a célebre metáfora do leve bater de asas de uma
borboleta na China que inundaria o mundo de imensas tempestades, que em política por
vezes uma pequena pulhice, mesmo envernizada, pode causar grandes tempestades. Tem um risco para o seu subtil autor: qualquer
tempestade leva sempre tudo à sua frente. Sem distinções.