A crise da democracia
A crise da democracia é uma daquelas evidências
excessivas que, servindo uma ou outra vez para esclarecer o obscuro, é muitas
vezes usada para ocultar o óbvio.
Os mais ladinos capatazes da ideologia dominante
usam a alegação dessa crise, principalmente, para corroer a legitimidade do
poder político democrático, deixando assim à solta o poder de facto dos seus
senhores, do capital financeiro e do seu séquito. A fragilidade da
autovigilância crítica de alguns dos mais incendiados opositores afetivos do
capitalismo faz com que, muitas vezes, inadvertidamente se associem, no
essencial, aos supracitados capatazes.
No campo dos mais discretos e cautelosos, são
inúmeras as tonalidades que assume a abordagem tolhida da chamada crise da
democracia. Talvez seja acertado, no entanto, salientar, entre todos eles, aqueles
que procuram responder a essa crise apenas com propostas, mais ou menos
rebuscadas, de uma reforma das instituições do sistema político. Eles agem como
se toda a crise em debate adviesse de uma deficiente qualidade da engenharia
política utilizada na construção de cada um dos sistemas políticos existentes.
Muitos deles, feridos por uma profunda ignorância jurídico-constitucional,
deslizam para propostas obviamente toscas, que muitas vezes deixam inadvertidamente
a descoberto um perfume fortemente autoritário. Usando a bandeira do combate à
crise da democracia, mais não fariam do que agravá-la dramaticamente. Nesse
mesmo registo, outros preconizam, para cada país, soluções que já vigoram
noutros, com resultados idênticos aos que se querem evitar, menosprezando assim
o facto de a chamada crise da democracia ocorrer em países com sistemas políticos
de todos os tipos.
Ora, se é naturalmente evidente que, como tudo na vida,
a democracia pode ser aperfeiçoada no plano das suas instituições, o que
importa compreender é que as raízes mais fundas da sua crise não estão aí.
Numa abordagem sumária, poder-se-ia dizer que o
cerne da crise da democracia está na sua autolimitação e na sua incompletude,
como se a democracia só pudesse conservar o seu viço se mantivesse um ímpeto
expansivo continuado que, além de a tornar mais profunda em cada um dos seus aspetos, se
fosse estendendo aos aspetos em que tem estado mais ausente.
Ora,
atualmente, a deriva autoritária, trazida no seu bojo pelo neoliberalismo, tem
vindo a enfraquecer a democracia política, pela subalternização dos órgãos
eleitos, em benefício dos poderes de facto do capital financeiro e seus
acólitos. E, em perversa conjugação com essa anemia política crescente, tem
bloqueado e contrariado tudo o que de democrático impregnava o social e tem
procurado esconjurar, como pecado mortal, qualquer impregnação democrática da
economia.
A crise da democracia não é pois o fruto natural de
uma malandragem qualquer, de uma quadrilha oculta que sangra o sistema, de
instituições politico-eleitorais tolhidas e inatuais para as quais qualquer
cérebro medianamente dotado poderá encontrar em pouco tempo a solução milagrosa.
É, isso sim, o fruto da não extensão da democracia aos aspetos sociais,
económicos e culturais da vida em sociedade; e, em conjugação com isso, é
também o fruto da corrosão da democracia política pelo agravar da deriva
neoliberal sob a batuta do capital financeiro. Ou seja, quanto mais a lógica
capitalista penetra na sociedade, quanto mais acossadas estiverem as lógicas
distributivas e solidárias que, embora subalternas, se lhe opõem, mais a democracia
está em perigo, maior é a sua crise.
Portanto, não menosprezando os aspetos
consequenciais e colaterais da crise da
democracia, não nos esqueçamos nunca do que é essencial: o cerne da crise da
democracia está na sua incompletude e na sua retração, ou seja, a crise da democracia é, fundamentalmente,
um importante aspeto da hegemonia do capital financeiro, em contexto
capitalista, expressa pelo neoliberalismo.
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