domingo, 22 de junho de 2014

Palavras de homenagem ao Osvaldo Castro




No passado dia 20 de junho, ocorreu em Lisboa, no Museu da Resistência e da República, uma Homenagem ao Osvaldo Castro, um ano depois de ele nos ter deixado. Foi-me dada a honra de ser um dos intervenientes. A sala repleta ilustrava a marca que o Osvaldo deixou entre nós. A sua família, que também se colocou com naturalidade dentro da nossa saudade e dentro do nosso afecto, sublinhou bem a tristeza e o júbilo que pairavam na sala.  Eis o texto que então li:

"Às vezes, o tempo atravessa-nos como um estilete implacável, para nos lembrar brutalmente como corre. É assim que os amigos nos deixam. Com ou sem aviso, mas inscrevendo sempre dentro de nós o rasto de uma saudade que, mesmo esbatendo-se melancolicamente, não passará.

E, quando partilhámos com eles desígnios, que foram muito para além da pequena dimensão de cada um de nós, essa saudade tinge-se de uma memória que a ergue sem tristeza, como se todo o passado que nos diz respeito estivesse afinal concentrado no futuro de que não desistimos.

Por isso, o Osvaldo está hoje aqui presente, não só como a sombra luminosa de uma saudade, mas também como camarada de um futuro que, mesmo quando parece afastar-se de nós pela crueldade fria da história, continua como horizonte irrenunciável das nossas vidas.
Corria o mês de Janeiro de 1968. Não sabíamos ainda que se aproximava um mês de Maio que inscreveria, uma vez mais, a França na legenda histórica do inconformismo e da revolta. Não sabíamos ainda que um velho ditador iria cair de uma cadeira e do poder, oito meses depois. E muito menos sabíamos que o garrote fascista que nos apertava o pescoço se desfaria em pó, pouco mais de seis anos depois.

Sete estudantes de Coimbra sentaram-se em volta de uma mesa para uma primeira reunião na cave da República do Ninho dos Matulões: o Osvaldo Castro, o Celso Cruzeiro, o Carlos Baptista, o Pio Abreu, o Jorge Strecht, o Jorge Aguiar e eu próprio. O Conselho das Repúblicas e os Organismos Autónomos haviam-nos escolhido para liderarmos o combate contra o estado de exceção na AAC, contra os delegados do Governo que usurpavam a direção da Associação Académica de Coimbra, contra a Comissão Administrativa que nos envergonhava.

A democracia tinha que regressar á nossa Associação, a Academia de Coimbra não queria ver prolongada a sua humilhação. Cabia-nos conseguir a realização de eleições.

Éramos, por isso, a Comissão pró-Eleições. Liderámos o movimento estudantil em Coimbra até ao início do ano seguinte, quando, tendo sido cumprido o encargo que recebemos, uma nova direção eleita para a AAC tomou o seu lugar na liderança do movimento estudantil em Coimbra.

Sinalizando uma continuidade procurada, o Osvaldo e o Celso faziam parte da nova direção, ao lado do Alberto Martins, da Fernanda da Bernarda, do Matos Pereira, do Gil Ferreira e do José Salvador.

Nessa tarde simples de um janeiro banal, começou de algum modo uma nova aventura. Aqueles primeiros sete estudantes, mas também os outros cinco, sabiam-se e queriam-se como apenas um punhado entre milhares. Gostavam de ler, de escrever, de viver o teatro, a música e o canto, de praticar desporto, de serem gente da boémia coimbrã e até de estudar. Gente comum que não tinha interesse em subir ao palco das pequenas glórias, que não estava impregnada pela vertigem ilusória das pequenas ambições. Uns acabados de entrar na juventude, outros navegando a meio do rio, outros ainda resistindo teimosamente a sair dela.

Não podíamos defraudar os que haviam confiado em nós. Não éramos heróis de coisa nenhuma, mas estávamos dispostos a vender cara a nossa pele. Não íamos cumprir um calendário de sofrimento. Íamos conseguir eleições. E houve eleições na AAC.

O fascismo, irritado com aquele primeiro passo, largou os mastins da violência contra os estudantes. Os estudantes resistiram. A luta entrou num patamar mais duro, novos protagonistas a lideraram nesta nova e mais difícil fase. A responsabilidade dirigente passara a um outro coletivo, no qual o Osvaldo também participava. Um outro coletivo, mas a mesma determinação e o mérito acrescido de terem navegado com êxito numa tormenta maior.

Sem tergiversarem, mas com a serena inteligência dos justos, com determinação, sempre olhando a realidade a partir dos estudantes, sem inúteis alaridos, mas sempre de pé, a Direcção-Geral da AAC ergueu-se com a Academia, tornando evidentes os limites que crescentemente apertavam o fascismo.

Nas reuniões assim como na liderança coletiva do movimento, o Osvaldo era o tecido conjuntivo que dava coesão às equipas, que transmitia serenidade e que limava com bonomia as arestas naturais das crispações de ocasião. Os companheiros de responsabilidade, os estudantes, não se limitavam a respeitá-lo. Gostavam dele.

O poder fascista não conseguiu esmagar a Academia de Coimbra. O governo não caiu, mas verificámos depois que algo se quebrou então dentro dele, arrastando-o para uma anemia crescente da qual nunca se viria a recompor.

Hoje, sabemos que aqueles anos mágicos vertebraram as nossa vidas sem que nos transformassem em antigos combatentes. O horizonte, que o Osvaldo partilhava com tantos de nós, continua vivo. É certo que talvez tenhamos encarado esse horizonte, ao longo da vida, de maneiras entre si diferentes, que nos levaram por vezes a enveredar por caminhos diversos, mas nenhum de nós deixou escapar as utopias em que realmente acreditava.

O tempo passou pelas nossas vidas como uma tempestade de esperança muitas vezes travada por melancolias e desilusões. O Osvaldo deixou sempre que a tempestade o levasse, não como folha perdida a que escapasse o norte, mas como a vontade firme e serena de quem quer fazer parte dela.

Mesmo quando os nossos caminhos se afastaram, sempre trocámos com naturalidade sinais de uma amizade intocável. Quando voltaram a convergir e nos reencontrámos na Assembleia da República como deputados do mesmo Partido, tudo se passou como se na semana anterior tivéssemos dito um até já, no fim de uma reunião. E haviam passado décadas.

Os anos haviam-no amadurecido, mas não o tinham mudado. Como deputado ou como governante, o Osvaldo, ainda mais apurado na sua competência, cultivou sempre como se voasse a memória dos anos mágicos, ouviu sempre com alegria o marulhar generoso das “repúblicas”, exerceu sempre sem embaraço a ironia aguçada da congeminação.

 Por isso, é hoje tão difícil saber se esta saudade é a melancolia de um outono que teima em nos invadir, ou a combustão virtuosa da esperança que nos faz viver, a todos nós, homens comuns vertebrados pelo futuro.

Concluo estas palavras de justa homenagem com um poema que escrevi em memória do Osvaldo, no meu blog, quando ele nos deixou:


Adeus, Osvaldo.


O tempo desabou sobre o teu nome
e o passado ocupou-te rudemente.

Um violento nó foi apertado
no coração mais triste da memória.

A tua ausência rasga-nos por dentro
como se toda a lembrança fosse dor.

Agora és a semente libertada
nas avenidas lentas do futuro.

Não chega!

É todo  o teu presente que nos falta
o sabermos que estavas nalgum lado.

Essa espera tranquila que sabia
ir ouvir-te de novo e abraçar-te.

É nova esta saudade e já sem fim.".


1 comentário:

Anónimo disse...

houve um tempo de convergência embora nuca fosse universitário. eram processos de pura luta contra aquilo a que alguém tenta esconder - o Fascismo -
foi na Marinha Grande" Maus tempos para o povo tal como agora.
Mudaram-se os tempos, mudaram-se os homens, mudaram-se as vontades!
certo.
Foram bons tempos enquanto duraram.
Tenho saudades de tantos trabalhadores anónimos, milhares , milhões deles...Que saudade das tertúlias populares, das reuniões objetivas que ele conduzia, senhor..!
Mas também o OSVALDO, COMPANHEIRO DE AGUERRIDAS LUTAS...depois MUDOU DE RUMO. fez-se Á SUA VONTADE...eu continuei "POR AÍ FORA" COM O MESMO RUMO DE então ANTI FASCISTA E REPUBLICANO e anti Unicidade Sindical.
Não sei se fez bem se fez mal. mas lembro que a responsabilidade dos guias dirigentes não é sobre eles mesmo que devem sortear os sectores, mas incorporar o geral.
Respeitosamente de o "Catraio"