No passado dia 20 de junho, ocorreu em Lisboa, no Museu da Resistência e da República, uma Homenagem ao Osvaldo Castro, um ano depois de ele nos ter deixado. Foi-me dada a honra de ser um dos intervenientes. A sala repleta ilustrava a marca que o Osvaldo deixou entre nós. A sua família, que também se colocou com naturalidade dentro da nossa saudade e dentro do nosso afecto, sublinhou bem a tristeza e o júbilo que pairavam na sala. Eis o texto que então li:
"Às
vezes, o tempo atravessa-nos como um estilete implacável, para nos lembrar
brutalmente como corre. É assim que os amigos nos deixam. Com ou sem aviso, mas
inscrevendo sempre dentro de nós o rasto de uma saudade que, mesmo esbatendo-se
melancolicamente, não passará.
E,
quando partilhámos com eles desígnios, que foram muito para além da pequena
dimensão de cada um de nós, essa saudade tinge-se de uma memória que a ergue
sem tristeza, como se todo o passado que nos diz respeito estivesse afinal
concentrado no futuro de que não desistimos.
Por
isso, o Osvaldo está hoje aqui presente, não só como a sombra luminosa de uma
saudade, mas também como camarada de um futuro que, mesmo quando parece
afastar-se de nós pela crueldade fria da história, continua como horizonte
irrenunciável das nossas vidas.
Corria
o mês de Janeiro de 1968. Não sabíamos ainda que se aproximava um mês de Maio
que inscreveria, uma vez mais, a França na legenda histórica do inconformismo e
da revolta. Não sabíamos ainda que um velho ditador iria cair de uma cadeira e
do poder, oito meses depois. E muito menos sabíamos que o garrote fascista que
nos apertava o pescoço se desfaria em pó, pouco mais de seis anos depois.
Sete
estudantes de Coimbra sentaram-se em volta de uma mesa para uma primeira
reunião na cave da República do Ninho dos Matulões: o Osvaldo Castro, o
Celso Cruzeiro, o Carlos
Baptista , o Pio
Abreu , o Jorge Strecht, o Jorge Aguiar e eu próprio. O
Conselho das Repúblicas e os Organismos Autónomos haviam-nos escolhido para
liderarmos o combate contra o estado de exceção na AAC, contra os delegados do
Governo que usurpavam a direção da Associação Académica de Coimbra, contra a
Comissão Administrativa que nos envergonhava.
A
democracia tinha que regressar á nossa Associação, a Academia de Coimbra não
queria ver prolongada a sua humilhação. Cabia-nos conseguir a realização de
eleições.
Éramos,
por isso, a Comissão pró-Eleições. Liderámos o movimento estudantil em Coimbra
até ao início do ano seguinte, quando, tendo sido cumprido o encargo que
recebemos, uma nova direção eleita para a AAC tomou o seu lugar na liderança do
movimento estudantil em Coimbra.
Sinalizando
uma continuidade procurada, o Osvaldo e o Celso faziam parte da nova direção,
ao lado do Alberto
Martins, da Fernanda da Bernarda, do Matos Pereira , do
Gil Ferreira e do José Salvador.
Nessa
tarde simples de um janeiro banal, começou de algum modo uma nova aventura.
Aqueles primeiros sete estudantes, mas também os outros cinco, sabiam-se e
queriam-se como apenas um punhado entre milhares. Gostavam de ler, de escrever,
de viver o teatro, a música e o canto, de praticar desporto, de serem gente da
boémia coimbrã e até de estudar. Gente comum que não tinha interesse em subir
ao palco das pequenas glórias, que não estava impregnada pela vertigem ilusória
das pequenas ambições. Uns acabados de entrar na juventude, outros navegando a
meio do rio, outros ainda resistindo teimosamente a sair dela.
Não
podíamos defraudar os que haviam confiado em nós. Não éramos heróis de coisa
nenhuma, mas estávamos dispostos a vender cara a nossa pele. Não íamos cumprir
um calendário de sofrimento. Íamos conseguir eleições. E houve eleições na AAC.
O
fascismo, irritado com aquele primeiro passo, largou os mastins da violência
contra os estudantes. Os estudantes resistiram. A luta entrou num patamar mais
duro, novos protagonistas a lideraram nesta nova e mais difícil fase. A
responsabilidade dirigente passara a um outro coletivo, no qual o Osvaldo também
participava. Um outro coletivo, mas a mesma determinação e o mérito acrescido de
terem navegado com êxito numa tormenta maior.
Sem
tergiversarem, mas com a serena inteligência dos justos, com determinação,
sempre olhando a realidade a partir dos estudantes, sem inúteis alaridos, mas
sempre de pé, a Direcção-Geral da AAC ergueu-se com a Academia, tornando
evidentes os limites que crescentemente apertavam o fascismo.
Nas
reuniões assim como na liderança coletiva do movimento, o Osvaldo era o tecido
conjuntivo que dava coesão às equipas, que transmitia serenidade e que limava
com bonomia as arestas naturais das crispações de ocasião. Os companheiros de
responsabilidade, os estudantes, não se limitavam a respeitá-lo. Gostavam dele.
O poder
fascista não conseguiu esmagar a Academia de Coimbra. O governo não caiu, mas verificámos
depois que algo se quebrou então dentro dele, arrastando-o para uma anemia
crescente da qual nunca se viria a recompor.
Hoje,
sabemos que aqueles anos mágicos vertebraram as nossa vidas sem que nos
transformassem em
antigos combatentes. O horizonte, que o Osvaldo partilhava
com tantos de nós, continua vivo. É certo que talvez tenhamos encarado esse
horizonte, ao longo da vida, de maneiras entre si diferentes, que nos levaram
por vezes a enveredar por caminhos diversos, mas nenhum de nós deixou escapar
as utopias em que realmente acreditava.
O tempo
passou pelas nossas vidas como uma tempestade de esperança muitas vezes travada
por melancolias e desilusões. O Osvaldo deixou sempre que a tempestade o
levasse, não como folha perdida a que escapasse o norte, mas como a vontade
firme e serena de quem quer fazer parte dela.
Mesmo
quando os nossos caminhos se afastaram, sempre trocámos com naturalidade sinais
de uma amizade intocável. Quando voltaram a convergir e nos reencontrámos na
Assembleia da República como deputados do mesmo Partido, tudo se passou como se
na semana anterior tivéssemos dito um até já, no fim de uma reunião. E haviam
passado décadas.
Os anos
haviam-no amadurecido, mas não o tinham mudado. Como deputado ou como
governante, o Osvaldo, ainda mais apurado na sua competência, cultivou sempre
como se voasse a memória dos anos mágicos, ouviu sempre com alegria o marulhar
generoso das “repúblicas”, exerceu sempre sem embaraço a ironia aguçada da
congeminação.
Por isso, é hoje tão difícil saber se esta
saudade é a melancolia de um outono que teima em nos invadir, ou a combustão
virtuosa da esperança que nos faz viver, a todos nós, homens comuns vertebrados pelo futuro.
Concluo
estas palavras de justa homenagem com um poema que escrevi em memória do Osvaldo ,
no meu blog, quando ele nos deixou:
Adeus, Osvaldo.
O tempo desabou sobre o
teu nome
e o passado ocupou-te
rudemente.
Um violento nó foi
apertado
no coração mais triste
da memória.
A tua ausência rasga-nos
por dentro
como se toda a lembrança
fosse dor.
Agora és a semente
libertada
nas avenidas lentas do
futuro.
Não chega!
É todo o teu presente que nos falta
o sabermos que estavas
nalgum lado.
Essa espera tranquila
que sabia
ir ouvir-te de novo e
abraçar-te.
É nova esta saudade e já
sem fim.".
1 comentário:
houve um tempo de convergência embora nuca fosse universitário. eram processos de pura luta contra aquilo a que alguém tenta esconder - o Fascismo -
foi na Marinha Grande" Maus tempos para o povo tal como agora.
Mudaram-se os tempos, mudaram-se os homens, mudaram-se as vontades!
certo.
Foram bons tempos enquanto duraram.
Tenho saudades de tantos trabalhadores anónimos, milhares , milhões deles...Que saudade das tertúlias populares, das reuniões objetivas que ele conduzia, senhor..!
Mas também o OSVALDO, COMPANHEIRO DE AGUERRIDAS LUTAS...depois MUDOU DE RUMO. fez-se Á SUA VONTADE...eu continuei "POR AÍ FORA" COM O MESMO RUMO DE então ANTI FASCISTA E REPUBLICANO e anti Unicidade Sindical.
Não sei se fez bem se fez mal. mas lembro que a responsabilidade dos guias dirigentes não é sobre eles mesmo que devem sortear os sectores, mas incorporar o geral.
Respeitosamente de o "Catraio"
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