1. As eleições autárquicas aproximam-se. Vão ser uma importante prova de fogo para o atual governo. Se ele encontrar um ângulo de análise dos resultados que traduza algo de positivo para os partidos que o apoiam, vai usar o seu poder mediático para o tornar no único relevante. Mas a frágil expressão municipal do CDS faz com que o PSD seja o fator decisivo no êxito ou no fracasso do governo. Contudo esta proeminência não deve fazer esquecer que os dois partidos do Governo vão coligados em muitos municípios, o que, uma vez que quase todas as coligações são encabeçadas pelo PSD, vai fazer com que este tenha provavelmente mais presidências de câmara do que aquelas que teria se concorresse sempre sozinho.
Naturalmente que as modificações no xadrez político, suscitadas por estas eleições também se vão repercutir nas oposições. O BE, condicionado pela sua inexpressiva implantação autárquica, diluiu-se em listas de independentes nalguns concelhos importantes, como é pelo menos o caso de Coimbra e de Braga. Fará certamente o balanço dos seus resultados, tendo em conta as duas vias que utilizou. Tudo indica que não conquistará qualquer nova presidência de câmara, faltando saber se conserva a única que já teve. Pode ostentar como êxitos o número de votos conseguidos e o número de eleitos, se for caso disso, mas o seu peso político nos resultados vai depender da medida em que contribua para que o PS perca presidências de câmara em benefício da direita.
O PCP vai procurar manter a sua implantação autárquica no Alentejo e na Grande Lisboa, sem deixar de tentar recuperar câmaras emblemáticas, antes perdidas para o PS, como é o caso de Beja e de Évora. O seu êxito vai medir-se pelo número e pela importância das presidências de câmaras conquistadas e perdidas. Se isso lhe convier, destacará também o número de votos obtido e o número de mandatos autárquicos. Provavelmente, o seu eventual êxito penalizará mais o PS do que o governo, no que diz respeito às presidências conquistadas.
O PS terá uma vitória expressiva se conquistar a presidência da Associação Nacional de Municípios. Dada a geografia eleitoral portuguesa e as coligações de direita existentes é uma vitória muito difícil para o PS, que aliás até já venceu politicamente as eleições autárquicas sem conseguir atingir esse patamar. Por isso, para o PS será uma vitória política a obtenção do maior número de votos, desde que vença num conjunto significativo de câmaras importantes. A imagem deste conjunto é uma imagem política e não estatística, mas poderíamos com alguma propriedade valorizar o conjunto das capitais de distrito e dos municípios com mais de cem mil habitantes.
2. Neste contexto, para o governo está principalmente em causa o número de presidências que o PSD conquiste. Num segundo plano, o PSD valorizará também a sua relação de forças com o PS. Uma derrota conjugada com um bom resultado do PS será pior para o PSD do que se for acompanhado por um mau resultado do PS. Hipótese aliás pouco provável, por implicar que no mesmo dia os eleitores punissem o PS numa parte do país e o premiassem na outra.
Note-se, que esse improvável comportamento eleitoral só poderia ter lugar em cerca de meia centena de municípios do Alentejo e da grande Lisboa. No resto do país, excluídos dois ou três casos de listas de independentes com hipóteses de disputar a vitória, só o PS ou o PSD (sozinho ou coligado) podem ganhar a presidência da câmara.
Por isso, em todos estes casos, um resultado eleitoral desagradável para os partidos do governo não o pode ser para o PS. Para desagradar ao PS, por perder presidências de câmara, tem que agradar ao governo, uma vez que, se o PS as perder, serão os partidos do governo quem as ganhará.
3. O PCP e o BE, com registos diversificados e intensidades variadas, têm apostado na ideia de que há que votar contra o governo e contra o PS. No atual mapa político português, como resulta do que atrás escrevi, esse é um caminho impossível. Os partidos do governo só serão vencidos, em termos de presidências de câmara conquistadas, à custa de uma vitória do PS; e o PS só será derrotado nesse plano à custa de uma vitória dos partidos do governo. Ignorar isto é ignorar a realidade. O que faz com que a luta do PCP e do BE contra o governo, nesta campanha eleitoral, esteja enredada numa contradição: ao colocarem o PS e o atual governo dentro do mesmo saco, anulam parte da energia que põem nos ataques ao governo; ao usarem esse ângulo de combate estão a neutralizar à partida uma parte dos efeitos que poderiam produzir se atacassem o governo, separando-o do PS.
Isto não é uma novidade. É um passo mais num caminho há muito trilhado. O senso comum já compreendeu que não haverá nenhuma alternativa de governo em Portugal aos governos de direita, excluindo-se o PS. Não creio que as direções do PCP e do BE o ignorem, mas aceito que não tenham ainda encontrado um modo não muito doloroso de procederem a essa dramática conversão estratégica. Vão oscilando entre um mirífico governo de esquerda sem o PS e um velho sonho de mais de quarenta anos de dividir o PS em duas partes, uma das quais se lhes juntaria. Duas hipóteses suficientemente improváveis para não poderem servir de base a uma estratégia verosímil.
Não quero com isto dizer que o PS nunca contribuiu, para dificultar uma conjugação de forças à esquerda, mas nesta campanha não há dúvida que tem concentrado nos partidos do governo o seu poder de fogo. Quanto às outras oposições, apenas tem respondido a alguns dos ataques recebidos; e, mesmo assim, esporádica e comedidamente.
Por outro lado, para além da conjugação das esquerdas, só ele dentro da esquerda pode tentar repetir uma maioria absoluta no plano parlamentar, embora seja visível a grande dificuldade que isso comporta. Todavia, uma maior capacidade cooperativa no seio das esquerdas continua a ser um elemento da maior relevância para atenuar as sequelas do cerco a que qualquer governo de esquerda está sujeito num contexto capitalista. Disto, é irrealista fugir-se.
Já se vê assim que o combate do PCP e do BE contra o PS nestas eleições agrava um dos mais poderosos fatores de fragilidade da resistência popular à deriva neoliberal. Se esse combate fosse um aspeto de uma estratégia insurrecional que usasse as disputas eleitorais institucionais, apenas para reforçar politicamente as forças disponíveis para uma insurreição, eu estaria contra essa estratégia, mas compreenderia a sua lógica. Mas renunciar à via insurreccional conservando os métodos, as atitudes, as avaliações e as crispações que lhe corresponderiam é que me parece incongruente.
4. De facto, dizer que a direita e o PS são a mesma coisa, ou, não o dizendo, tratá-los politicamente como se o fossem, é dar à direita um imerecido descanso e alienar uma área política sem a qual não se vislumbra como provável uma vitória eleitoral de qualquer bloco político que se oponha à direita. Mas dizê-lo em Portugal na vigência deste governo roça o absurdo, de tal modo ele se apurou a agravar tudo o que de desagradável possa ter resultado do anterior; e de tal modo inovou nas agressões aos cidadãos e se excedeu no aprofundar da desigualdade. Na verdade, só por puro sectarismo se não admite que o atual governo é qualitativamente diferente do anterior, para muito pior.
O combate ao neoliberalismo é uma luta política global. Tudo o que divida, enfraqueça, ou crispe entre si as áreas político-sociais por ele mais agredidas e por isso mais vocacionadas para o combaterem, é uma preciosa ajuda para os seus “cães de guarda”. Desse modo, em todos os combates políticos, por mais circunscritos que sejam, é importante, não só o que em cada um deles estiver em causa, mas também o que ele significa como parte do combate global. As próximas eleições autárquicas não fogem a essa regra.
Para concluir, vale a pena lembrar que em plena ascensão do nazismo alemão, com razões alegadamente fortíssimas, o Partido Comunista Alemão adotou uma palavra de ordem, clara e enérgica: “enterrar o nazismo sobre o cadáver da social-democracia”. Atuaram em conformidade e o resultado é conhecido: os nazis enterraram os comunistas e os sociais-democratas.
2 comentários:
ena pá, rui. iaiks. o voto útil não parece assim tão util - acordos com a troika, acordos sobre austeridade (agora já são mais a dizer que não funciona como estratégia, não é, como o PCP e o BE têm sempre dito, não é?), acordos sobre a liberalização do trabalho e sobre privatizações... o teu artigo fala de controlo de estruturas de poder, só, ou quase só, e trata as outras esquerdas como auxiliares da direita. e depois põe o PS como alternativa - e eles raramente têm estado na rua ou nos parlamentos contra o que a esquerda (social, geral, das cidades) tem tentado contestar. pelo que, como socialista, e como militante de esquerda, do bloco, acho que este texto se podia aplicar a qualquer eleição autárquica das ultimas décadas e teria, sempre, um certo ar de sectarismo. não podem o BE ou o PCP ou listas independentes declaradamente de esquerda (no sentido do horizonte da igual redistribuição dos recursos e do comum acima do privado) ter melhores projectos que o PS? eleger vereadores, gente nas assembleias municipais, etc, que defendam esses programas, mesmo que 'não ganhem as câmaras'? isso não pode influenciar nada? não entra na análise? ... quem é que tá a tratar o resto da esquerda como 'inimigo', agora?
um beijinho
O meu texto, naturalmente discutível, não menciona nunca o voto útil. Tu é que talvez penses que no atual contexto o voto no PS num largo conjunto de casos tem um significado que transcende muito uma manifestação de concordãncia. Mencionas várias queixas contra o PS, mas não demosntras que podes mudar seja o que for no plano institucional sem ele ou contra ele. Ignoras que o significado político dos resultados autárquicos se vai medir principalmente pelo número de presidências de cãmara. Não dizes como podes mudar as políticas sem obteres maiorias. A realidade é por vezes desagradável, mas a política visa transformar o que existe e não contrapor ao que existe o que cada um de nós ache que deveria existir.A utopia para influenciar a realidade social não pode ignorá-la.
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