1. A onda branca que parece querer varrer, como se fossem lixo, os políticos, a classe política e a própria política, por generosas e limpas que sejam as intenções de alguns ou de muitos dos seus protagonistas é, na verdade, ideologicamente uma onda negra. Independentemente da subjectividade que mova os seus protagonistas , ou uma parte deles, se algum vento sopra através delas não é o da salvação democrática, mas pode ser o que nos traz a sombra negra de um populismo de cariz fascista.
2. Nessa onda, em vez de se olhar a política como um dos aspectos da
clivagem que divide toda a sociedade, ficciona-se uma oposição estruturante
entre o Estado e a sociedade, imaginada sem Estado, demoniza-se indirectamente o
Estado, imaginando-o uno através da demonização dos políticos, como se estes fossem apenas o seu rosto. Um
rosto único, unívoco e sem contradições dentro de si. Quanto à sociedade, ela é
angelizada como se contivesse em si apenas virtudes, estando só á espera de se ver liberta do Estado; e assim poder ser para todos uma felicidade geral . Uma
sociedade também imaginada como paisagem uniforme, como se a igualdade fosse o seu modo de ser natural.
Ora, de facto, o Estado é uma emanação directa da sociedade
que o gera e molda , ao mesmo tempo que a sociedade é inseparável da existência
de um Estado que, sendo a sua espinha dorsal politico-administrativamente, espelha as suas
características essenciais; e tem como sua bússola a necessidade de conservar o
tipo de sociedade que o moldou. Quando o tipo de sociedade existente começa a
ser pressionado pela História, rumo a uma metamorfose necessária, o
funcionamento da sociedade tende a degradar-se e, em sinergia depressiva com ele, o funcionamento do Estado também. E, principalmente, degrada-se o modo
como o Estado se relaciona com a sociedade, o modo como o Estado contribui para
que o tipo de sociedade atualmente dominante
se mantenha.
Desse modo, a luta por um outro tipo de sociedade, tendencialmente
protagonizada (principal e estruturalmente) pelos que vivem este modelo como
um sofrimento injusto, tem que fazer-se
articuladamente no Estado e na sociedade. Num e noutro caso , contando-se com a
oposição dos que vivem este modelo de sociedade como garantia de privilégios e de bem estar. Entre estes dois pólos globalmente nítidos, há um território intermédio, hesitante e flutuante, que a
conjuntura e a História dividem quase sempre, fazendo que cada um dos pólos
atraia um pedaço maior ou menos deste território intermédio. Por isso, se
percebe bem como é arriscado para os de cima uma penalização excessiva deste
território intermédio, desse modo mais pressionado para se coligar com os de baixo,
tornando assim difícil aos de cima travarem a consumação da metamorfose social historicamente sempre em curso. Risco tanto maior , quanto, no plano individual,
muitos dos intermédios são activos ao lado dos de baixo, ficando muito longe
dos seus vizinhos que aceitam ser capatazes dos de cima. Fica assim claro que anatematizar
os políticos em geral (o que implica indirectamente visar os Estado como se ele
estivesse fora da sociedade) é um caminho que oculta os verdadeiros termos da
luta a travar, fazendo, por isso, o jogo objectivo dos que lutam pela eternização
do tipo de sociedade em que vivemos, uma sociedade predominantemente capitalista.
3. Nesta perspectiva, percebe-se que envolva um efeito
idêntico a utilização da noção de “classe política” como elemento operativo da
reflexão político-ideológica. Ele exprime a mesma oposição entre os protagonistas institucionalmente
cimeiros do aparelho de Estado, ficcionados como um conjunto homogéneo, e todo
o resto da sociedade também ficcionada e encarada como se todos os seus
protagonistas vivessem, sofressem e aproveitassem as sua características da
mesma maneira. Dum lado, estariam os dirigentes e quadros de todos os partidos e
do aparelho de Estado, sejam de direita ou de esquerda; do outro lado, estariam
todos os outros, sejam eles multi-milionários ou sem abrigo, directores de banco
ou porteiros do banco, capitães de indústria ou operários. O mesmo embuste
ideológico, portanto, a mesma garantia de que a partir de um ponto de vista
como este a conservação do essencial das sociedades presentes está garantida e,
se o não estiver, a infecundidade desta via torna inevitável que através dela ou nada se muda ou apenas se
pode mergulhar numa regressão ainda mais funda.
4. E tudo isto torna mais fácil compreender que a desvalorização
da política no seu todo apenas conduz a enfraquecer
os constrangimentos dos poderes de facto actualmente existentes, apenas lhes
garante mais impunidade e maior liberdade de movimentos. Na verdade, para os de
cima a política é, estrutural e predominantemente, um embaraço ao exercício da
sua supremacia; mas, para os de baixo, é a única oportunidade para não serem vítimas
dóceis e eternas dos de cima. Para os de cima a política é principalmente uma
auto-defesa de privilégios uma persistente gestação de uma cortina de fumo que oculte o
essencial da realidade; para os de baixo é uma questão de sobrevivência, de
dignidade , a única via para compreenderem realmente o que se passa na
sociedade em que vivem; e assim poderem resistir melhor.
5. Por isso, o povo de esquerda tem que vencer as assombrações
com que tentam afastá-lo da luta política, ou confundi-lo no modo como combate.
Nunca se esquecendo que não tem sentido falar nos políticos em geral, em classe política como um todo homogéneo, em política como uma
zona da vida social insalubre e
desqualificante. Os políticos não podem ser encarados em conjunto.Os de esquerda podem ser insuficientes, podem como
qualquer ser humano errar, mas fazem parte das forças que tentam contribuir para
acelerara a metamorfose das sociedades em que vivemos. Podem
ser criticados, devem mesmo estar sujeitos a uma crítica exigente e continuada,
para serem corrigidos ou, se for caso disso, substituídos. Mas não pode ser nunca esquecido que eles são outra coisa, estão de um outro lado relativamente aos políticos
de direita, ao pessoal político encarregado da conservação do tipo de sociedade
actual, no plano político-institucional. Os
políticos de direita, podem ser naturalmente objecto das críticas inerentes ao quotidiano
da política, mas fundamentalmente eles devem ser criticados por integrarem o
bloco que defende que, no essencial, o actual tipo de sociedade se eternize.
Repito, para o povo de esquerda os políticos de esquerda devem ser
rigorosamente escrutinados para se avaliar a qualidade e a intensidade do seu contributo para a transformação
da sociedade, no que podem ser insuficientes ou agir equivocadamente. É imprescindível que sejam fieis à ética republicana e à legalidade democrática, mas também que globalmente sejam eficazes. Para o povo de esquerda os políticos de direita
devem ser encarados como uma parcela das forças político-sociais que o querem manter subalterno, explorado e
sem horizontes e como tal combatidos. Interessa-nos que também cumpram a legalidade
democrática e se pautem pela ética republicana, que saibam gerir bem o imediato, mas o
resto da sua eficácia é-nos indiferente, ou até desvantajosa, no longo prazo.
Tudo isto deve alertar-nos para a necessidade de escolhermos
bem os conceitos e as designações que usamos no nosso discurso crítico, de modo a
evitarmos que, por erro, estejamos a favorecer aqueles que queremos combater.
1 comentário:
Muito bem!
Sem o Estado, a política e os políticos, vigoraria sem restrições a lei do mais forte.
Há muito que defendo a evidência de que as pessoas não nascem livres nem iguais (nascem ricas ou pobres, inteligentes ou estúpidas, saudáveis ou deficientes). É a lei, o Estado, a política, que as declara livres e iguais e promove essa liberdade e essa igualdade.
Uma das grandes fraquezas da esquerda portuguesa é essa mania estúpida e analfabeta de dizer que os políticos são todos iguais. Muitos dos que são as maiores vítimas da sociedade capitalista pensam assim, e depois não votam ou votam contrariamente aos seus interesses, e depois...é o que se vê!
Enviar um comentário