terça-feira, 30 de abril de 2013

O perfume do tempo




O perfume do tempo
inaugura o suave peso das horas

podemos senti-las na pele
como corcéis de silêncio

ou escrevê-las na parede da memória
como palavras mortas

ou colhê-las como pássaros lentos
para sempre interrompidos

O perfume do tempo
agarra-nos pela garganta
arrasta-nos inesperado
pelo prazer da memória

executa em rigor
os rituais da esperança
mostra sem rubor
a espada do desejo

adormecendo enfim
no despedir das tardes
como se nunca
tivesse acontecido

[ Rui Namorado]

domingo, 28 de abril de 2013

AINDA O CONGRESSO DO PS


Ao longe, escapa-me o elenco completo dos órgãos nacionais do PS. Estão agora a ser eleitos.

A experiência sugere-me um distanciamento desconsolado. A irremediável tentação da esperança leva-me a sonhar com uma Comissão Nacional composta com critérios objectivos, entre os quais a lucidez política e a capacidade de intervenção sejam tidas em conta.

Seria uma corrente amarrada às pernas do PS, fazer com que os congressistas elegessem uma plateia de espectadores, encarregada de aplaudir ou apupar duas ou três dezenas de artistas, destinados a dizerem periodicamente o esperado. Duas ou três vozes, escapadas ao crivo da rotina, não fariam a primavera.

Seria na verdade um retrocesso, não se aproveitar a circunstância para se estruturar a Comissão Nacional, de modo a transformá-la num órgão de autêntica direcção política, constituída por militantes experientes, esclarecidos e lutadores. De facto, uma direcção política deve estar mais próxima de um estado-maior militar do que duma plateia disciplinada de crentes. Uma direcção política deve ser muito mais parecida com um grupo de trabalho do que de um feixe de turistas, que vão ouvir, de quando em quando, um punhado de dirigentes , votando com aprumo favoravelmente as propostas que lhes fazem.

Enfim, talvez a réstia de esperança que me assaltou afinal se justifique.

sábado, 27 de abril de 2013

CONGRESSO DO PS


Aos oradores socialistas, com fraternidade.



Se o que disseres, mesmo com veemência, mesmo com palavras grandes e enérgicas, também puder ser dito por alguém de direita, desconfia.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

AINDA O 25 DE ABRIL


acenderam-se as horas   muitos anos   os meses
as palavras mais livres não ficaram cercadas

acenderam-se sílabas da mais pura revolta
e deixámos a cólera semear-se nos dedos

acendeu-se a memória como um cravo de gelo
nas cabeças fechadas pelo frio do terror

nós subimos os rios como um barco que cresce
foram nossos os meses passo a passo vencidos

olho agora as palavras em silêncio cansadas
pelos passos perdidos que tivemos que dar

muito longe da terra há um mar que nos espera
uma porta fechada que ainda vamos abrir

[ Rui  Namorado]

terça-feira, 23 de abril de 2013

O FADO DO CRESCIMENTO


O ministro pereira ressuscitou. Irrompeu com robustez no planeta do crescimento. Arrombou a porta da indecisão e, com um vigor quase colossal, apresentou o seu plano para o próximo milénio:

" Renhanhau... béu... béu... crescimento". "Béu...béu...béu. Renhau...nhau....nhau!"

Os mercados ficaram calmos como gatos de seda. Docemente miaram:"Miaaau!"

Os lobos do  FMI uivaram de contentamento: "Uuuuuuu...."

As hienas do BCE trotaram irrequietas.Ouviu-se: "mercaaaado"...

O ministro das insolvências insistiu, verdadeiramente ousado, subindo o tom: "Renhau...nhau...béu...béu. béu..."

Ao longe (e a norte) uma vaca leiteira, parecendo comover-se, mugiu.E, saindo subitamente da toca, um coelho amnésico olhou aflito para um relógio sem ponteiros e perguntou: "que troikas são" ? E o ministro pereira entusiasmado, num assomo final,  mostrou o último slide da sua genialidade económica: "Béu...béu...béu. Renhau,nhau nhau".

Foi então que  o fantasma de boliqueime, desvanecido pela voz atropelada do ministro, deu finalmente sinal de vida. Numa voz gulosa e arrastada gritou: "Maria, dá-me me um pastel de nata!!"


segunda-feira, 22 de abril de 2013

A REMODELAÇÃO SEM FIM - ocultação ou comédia?

Acabo de ler na página virtual do Diário de Notícias o texto que a seguir transcrevo:

"A saída dos secretários de Estado da Defesa e da Administração Interna estará relacionada com perdas de quase mil milhões de euros nos transportes públicos do Porto.
A auditoria que a Inspeção-Geral das Finanças (IGF) tem em curso às empresas públicas que efetuaram financiamentos de alto risco, causando um "buraco" de quase três mil milhões de euros, fez duas vítimas no Governo de Pedro Passos Coelho. Uma foi o secretário de Estado da Defesa, cuja substituição por Berta Cabral foi ontem anunciada. Outra foi a do secretário de Estado adjunto da Administração Interna, cuja saída não foi ainda confirmada oficialmente mas é dada como certa ao DN por várias fontes do Governo.
Em comum, Braga Lino e Juvenal Peneda têm a sua responsabilidade na gestão da empresa Metro Porto, na qual a IGF estima perdas potenciais de cerca de 800 milhões de euros em financiamentos de risco, em 15 contratos efetuados, no valor de 1,5 mil milhões de euros."

Agora compreendo melhor o alcance da remodelação "relvis causa" , que alguns consideraram gravemente como uma oportunidade perdida, outros qualificaram liquidamente como sendo "às pinguinhas". Afinal, ela teve muito mais de sorrateiro do que aquilo que pareceu. Mais do que uma simples remodelação, foi uma ocultação. Uma ocultação de alguns sinais exteriores que evidenciavam com demasiada nitidez a natureza última dos interesses ao serviço dos quais este Governo se esforça por estar.

Posso assim entender que na conturbada confusão de uma remodelação que de si própria se escondeu, alguém tenha estendido a confusão até ao ponto de ter pensado que era uma credencial sólida para encarregar alguém de uma tarefa governamental no Ministério da Defesa o facto de uma determinada senhora ser tida no ambiente laranja como uma "mulher de armas". Dizem que o sagaz Ministro Branco achou a ideia um verdadeiro tiro no porta-aviões. Oxalá que o irrequieto ministro não se convença de que está a jogar á "batalha naval".

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Poema ao 17 de Abril de 1969




no tempo dos desertos e das sombras
quando as manhãs custavam a chegar

fomos o gesto que não tem fronteiras
com sílabas sem medo com revolta

no pano negro que não tinha fim
rasgou-se então uma pequena luz

e as noites começaram a murchar
presas na teia do seu próprio fim

nos pátios tão augustos dos saberes
uma pequena luz foi inventada

sem o sabermos fomos a semente
do vento que chamou por outros ventos

[Rui  Namorado]

quarta-feira, 3 de abril de 2013

POLÍTICOS, CLASSE POLÍTICA E OUTRAS ASSOMBRAÇÕES


1. A onda branca que parece querer varrer, como se fossem lixo, os políticos, a classe política e a própria política, por generosas e limpas que sejam as intenções de alguns ou de muitos dos seus protagonistas é, na verdade, ideologicamente uma onda negra. Independentemente da subjectividade que mova os seus protagonistas , ou uma parte deles, se algum vento sopra através delas não é o da salvação democrática, mas pode ser o que nos traz a sombra negra de um populismo de cariz  fascista.

2. Nessa onda, em vez de se olhar a política como um dos aspectos da clivagem que divide toda a sociedade, ficciona-se uma oposição estruturante entre o Estado e a sociedade, imaginada sem Estado, demoniza-se indirectamente o Estado, imaginando-o uno através da demonização dos políticos,  como se estes fossem apenas o seu rosto. Um rosto único, unívoco e sem contradições dentro de si. Quanto à sociedade, ela é angelizada como se contivesse em si apenas virtudes, estando só  á espera de se ver liberta do Estado; e assim poder ser para todos uma felicidade geral . Uma sociedade também imaginada como paisagem uniforme, como se a igualdade fosse o seu modo de ser natural.

Ora, de facto, o Estado é uma emanação directa da sociedade que o gera e molda , ao mesmo tempo que a sociedade é inseparável da existência de um Estado que, sendo a sua espinha dorsal politico-administrativamente, espelha as suas características essenciais; e tem como sua bússola a necessidade de conservar o tipo de sociedade que o moldou. Quando o tipo de sociedade existente começa a ser pressionado pela História, rumo a uma metamorfose necessária, o funcionamento da sociedade tende a degradar-se e, em sinergia depressiva com ele, o funcionamento do Estado também. E, principalmente,  degrada-se o modo como o Estado se relaciona com a sociedade, o modo como o Estado contribui para que o tipo de sociedade atualmente dominante  se mantenha.

Desse modo, a luta por um outro tipo de sociedade, tendencialmente protagonizada (principal e estruturalmente) pelos que vivem este modelo como um sofrimento injusto,  tem que fazer-se articuladamente no Estado e na sociedade. Num e noutro caso , contando-se com a oposição dos que vivem este modelo de sociedade como garantia de privilégios  e de bem estar. Entre estes dois pólos globalmente nítidos, há um território intermédio, hesitante e flutuante, que a conjuntura e a História dividem quase sempre, fazendo que cada um dos pólos atraia um pedaço maior ou menos deste território intermédio. Por isso, se percebe bem como é arriscado para os de cima uma penalização excessiva deste território intermédio, desse modo mais pressionado para se coligar com os de baixo, tornando assim difícil aos de cima travarem a consumação da metamorfose social historicamente sempre em curso. Risco tanto maior , quanto, no plano individual, muitos dos intermédios são activos ao lado dos de baixo, ficando muito longe dos seus vizinhos que aceitam ser capatazes dos de cima. Fica assim claro que anatematizar os políticos em geral (o que implica indirectamente visar os Estado como se ele estivesse fora da sociedade) é um caminho que oculta os verdadeiros termos da luta a travar, fazendo, por isso, o jogo objectivo dos que lutam pela eternização do tipo de sociedade em que vivemos, uma sociedade predominantemente capitalista.

3. Nesta perspectiva, percebe-se que  envolva um efeito idêntico a utilização da noção de “classe política” como elemento operativo da reflexão político-ideológica. Ele exprime a mesma oposição entre os protagonistas institucionalmente cimeiros do aparelho de Estado, ficcionados como um conjunto homogéneo, e todo o resto da sociedade também ficcionada e encarada como se todos os seus protagonistas vivessem, sofressem e aproveitassem as sua características da mesma maneira. Dum lado, estariam os dirigentes e quadros de todos os partidos e do aparelho de Estado, sejam de direita ou de esquerda; do outro lado, estariam todos os outros, sejam eles multi-milionários ou sem abrigo, directores de banco ou porteiros do banco, capitães de indústria ou operários. O mesmo embuste ideológico, portanto, a mesma garantia de que a partir de um ponto de vista como este a conservação do essencial das sociedades presentes está garantida e, se o não estiver, a infecundidade desta via torna inevitável  que através dela ou nada se muda ou apenas se pode mergulhar numa regressão ainda mais funda.

4. E tudo isto torna mais fácil compreender que a desvalorização da política no seu todo  apenas conduz a enfraquecer os constrangimentos dos poderes de facto actualmente existentes, apenas lhes garante mais impunidade e maior liberdade de movimentos. Na verdade, para os de cima a política é, estrutural e predominantemente, um embaraço ao exercício da sua supremacia; mas, para os de baixo, é a única oportunidade para não serem vítimas dóceis e eternas dos de cima. Para os de cima a política é principalmente uma auto-defesa de privilégios  uma persistente gestação de uma cortina de fumo que oculte o essencial da realidade; para os de baixo é uma questão de sobrevivência, de dignidade , a única via para compreenderem realmente o que se passa na sociedade em que vivem; e assim poderem resistir melhor.

5. Por isso, o povo de esquerda tem que vencer as assombrações com que tentam afastá-lo da luta política, ou confundi-lo no modo como combate. Nunca se esquecendo que não tem sentido falar nos políticos em geral, em classe política como um todo homogéneo, em política como uma zona da vida social insalubre  e desqualificante. Os políticos não podem ser encarados em conjunto.Os de esquerda podem ser insuficientes, podem como qualquer ser humano errar, mas fazem parte das forças que tentam contribuir para acelerara a metamorfose das sociedades em que vivemos. Podem ser criticados, devem mesmo estar sujeitos a uma crítica exigente e continuada, para serem corrigidos ou, se for caso disso, substituídos. Mas não pode ser  nunca esquecido que eles são outra coisa, estão de um outro lado relativamente aos políticos de direita, ao pessoal político encarregado da conservação do tipo de sociedade actual,  no plano político-institucional. Os políticos de direita, podem ser naturalmente objecto das  críticas inerentes ao quotidiano da política, mas fundamentalmente eles devem ser criticados por integrarem o bloco que defende que, no essencial, o actual tipo de sociedade se eternize.

Repito, para o povo de esquerda  os políticos de esquerda devem ser rigorosamente escrutinados para se avaliar a qualidade  e a intensidade do seu contributo para a transformação da sociedade, no que podem ser insuficientes ou agir equivocadamente. É imprescindível que sejam fieis à ética republicana  e à legalidade democrática, mas também que globalmente sejam eficazes. Para o povo de esquerda os políticos de direita devem ser encarados como uma parcela das forças político-sociais  que o querem manter subalterno, explorado e sem horizontes e como tal combatidos. Interessa-nos que também cumpram a legalidade democrática e se pautem pela ética republicana, que saibam gerir bem o imediato, mas o resto da sua eficácia é-nos indiferente, ou até desvantajosa, no longo prazo.

Tudo isto deve alertar-nos para a necessidade de escolhermos bem os conceitos e as designações que usamos no nosso discurso crítico, de modo a evitarmos que, por erro, estejamos a favorecer aqueles que queremos combater.