segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A República como superação da Monarquia


1.No caso português, entre os limites materiais das revisões constitucionais, encontra-se “a forma republicana de Governo”. Consta que alguns monárquicos sustentam a necessidade de remover esse limite, para depois se poder organizar um referendo que decida se os portugueses pretendem viver sob a égide de uma monarquia ou continuar sob uma república.

Se dissermos isto de uma outra maneira, fica claro que, no plano dos valores democráticos, a monarquia e a república não se equivalem. De facto, numa república nós escolhemos o Chefe de Estado periodicamente, o que significa que não só podemos mudá-lo de tantos em tantos anos, como asseguramos que os vindouros o possam continuar a fazer. Numa Monarquia somos condenados a ter como Chefe de Estado uma determinada pessoa, por mero facto de nascimento no seio de uma determinada família, sem possibilidade de a remover numa consulta popular livre. Pode-nos sair na rifa um génio ou um idiota, um autoritário ou um livre pensador. Pode-nos sair na rifa alguém que esteja em consonância com as opções maioritárias do povo ou que esteja contra elas.

Quando um dos valores básicos de um Estado de Direito é a igualdade dos cidadãos perante a lei, quando uma das áreas onde se têm gerado consensos interpartidários mais vastos é a que implica a valorização desse princípio, quando entre as traves mestras da nossa Constituição se encontram as várias repercussões desse princípio, se abríssemos na Constituição uma pequena porta que fosse à Monarquia estaríamos a instituir o risco da instituição de um privilégio de nascimento, para determinar quem ocuparia a cúpula do Estado. O maior privilégio que podia ser outorgado a alguém seria incrustado como um aleijão na nossa lei fundamental.

Mas não nos estaríamos apenas a condenar a um suicídio democrático no presente, estaríamos a expropriar as gerações futuras do direito de escolherem democraticamente quem vão querer como Chefe de Estado ao longo das suas vidas.

Ora, se é legítimo que se escolha quem deve ocupar este ou aquele cargo durante um certo período de tempo, não é legítimo que alguém decida hoje que os vindouros perdem o direito de decidir. E se já me parece difícil de sustentar que se use uma consulta democrática para legitimar uma possível perda do direito de ser consultado, mesmo que o eleitorado estivesse cem por cento de acordo, não me parece que pudesse confiscar aos vindouros o direito de decidirem quem deve ser o seu Chefe de Estado. Por tudo isso, me parece que, sem necessitar de outras considerações, o facto de a Constituição portuguesa não admitir a forma monárquica de regime, sendo essa inadmissibilidade um dos aspectos irremovíveis da sua lógica é coerente com o princípio democrático e com o valor da igualdade, da ilegitimidade geral de privilégios por nascimento. Não a admite, não por uma opção circunstancial e secundária que pode ser removida sem pôr em causa a sua estrutura e o seu sentido geral, mas sim pelo facto de essa mensagem normativa ser um elemento básico da sua identidade como um todo.
Por isso, verdadeiramente, aceitar na Constitução a possibilidade de uma monarquia não implicaria apenas retirar uma alínea dos limtes materiais da revisão constitcional, obrigaria também , pelo menos, a retirar dela o princípio da igualdade.

2. Isto é o principal, mas no caso português, podem juntar-se mais algumas considerações.

Desde logo, não podemos esquecer que o salazarismo em Portugal foi uma "república" apoiada pelos monárquicos ( salvas honrosas excepções que se não esquecem, mas que não podem servir para branquear a regra). E de tal o modo o foi, que com base nas alegadas preferências de Salazar, por mais do que uma vez pairou a hipótese de uma passagem suave da “república” salazarista para uma monarquia. Basta, por exemplo, consultar o jornal da “Causa Monárquica”publicado em plena ditadura, para se ver como estava identificado com o essencial da política do salazarismo.

E ,na actualidade, além de o PPM ser um pequeno partido de direita, entre os poucos cidadãos cuja opção monárquica é conhecida, a larga maioria é de gente claramente situada na direita política e ideológica. Também aqui, as honrosas excepções não podem servir para obnubilar a tendência largamente dominante. Aliás, bem sublinhada pelo Sr. Duarte Nuno, alegado pretendente ao trono português, um sujeito ideologicamente conservador e politicamente identificado com a direita portuguesa.

Ou seja, hoje, pode haver um Presidente ideologicamente de direita, como actualmente acontece, mas já houve os dois anteriores que eram de esquerda, todos eles escolhidos por voto popular. Se o Sr. Duarte Nuno fosse o Chefe de Estado vitalício, a direita teria instalado no topo do Estado um dos seus para sempre, seguindo-se-lhe os filhos e netos; e a esquerda, que representa mais de metade do eleitorado, ficaria reduzida a fazer vénias aos ungidos. Isto, desconsiderando provisoriamente o facto de, em circunstâncias normais, uma grande parte da direita preferir a República à Monarquia.

Com a agravante de, no caso concreto, o Sr. Duarte Nuno não estar sequer próximo de ter as capacidades e competências mínimas exigíveis a quem pretenda desempenhar a função de Chefe de Estado. Se o compararmos com qualquer dos Presidentes da República eleitos depois do 25 de Abril ou durante a 1ª República, percebemos a diferença e avaliamos melhor o risco da Monarquia.

Mas, mesmo que desembocássemos nesse absurdo histórico, por uma conjunção improvável de dislates, o Sr. Duarte Nuno não seria reconhecido como pretendente legítimo ao trono português, por uma boa parte dos monárquicos portugueses e desde logo pelo único partido monárquico existente, o PPM. De facto, o alegado pretendente descende do Infante D. Miguel que liderou os absolutistas na guerra civil que desencadeou contra os monárquicos liberais e que devastou Portugal no início do século XIX. Não descende dos reis liberais, mas sim do usurpador absolutista. Com ele não se chegaria a qualquer imaginário oásis de uma qualquer concórdia, mas a um provável acréscimo de confusão. Mesmo que se chegasse ao termo dos vários processos que conduzissem à Monarquia continuaria a não ser claro e pacífico quem podia ser rei.

Por último, quando se caminha para um mundo com instituições políticas globais, necessariamente democráticas e republicanas, que tornem mais provável a sobrevivência da espécie humana (no caso português, através de um projecto europeu que una os seus povos numa entidade que a todos represente e respeite), seria anacrónico devolver-nos ao pesadelo vivido um século atrás.

2 comentários:

José Teles disse...

Rui, esta é a melhor defesa da consagração da ideia da República na Constituição que vi até hoje. Só falhas num pormenor: o alegado pretendente ao trono chama-se Duarte Pio, o pai dele é que era o Duarte Nuno. Pio, ou Pius, dizia ele, e dizia a tia dele, numa das inúmeras cartas a Salazar, porque tinha tido como padrinho o Papa Pio XII. Estás a ver o perigo?! Já agora, se me permites, sobre as patifarias dos miguelistas e respectiva prole, devias ler "O Usurpador", do Nuno da Câmara Pereira. É razoavelmente mal escrito mas tem muita informação. abraço

José Teles disse...

Outra coisa: o Nuno da Câmara Pereira, o cantor, também está na "linha de sucessão ao trono de Portugal" por ser um dos descendentes da Infanta Ana de Jesus Maria que casou com o Duque de Loulé e era irmã de D. Pedro e D. Miguel. Se ainda valessem as leis anteriores à República... suponho que os direitos do Câmara Pereira valeriam mais do que os do Duarte Pio, mas essa é uma polémica ociosa, que não há trono para ninguém. D. Nuno, o cantor, pelo menos, sempre era um herdeiro e continuador da Monarquia Liberal. Quando se diz isso ao monárquicos eles ficam piores que estragados.