quarta-feira, 28 de outubro de 2009

As amargas amêndoas de Bolonha




Recebi do meu amigo e colega Júlio Mota o texto que abaixo transcrevo, supondo eu que tenha sido ele a traduzi-lo. Julgo que esta minha iniciativa corresponde bem a uma interpretação adequada do sentido que foi dado à sua difusão, a qual, aliás, fez com que eu o tivesse recebido.

O texto é da autoria de Paolo Tortonese, Professor na Universidade de Paris III – Sorbonne, tendo sido publicado no Le Monde de 23 de Outubro.


No essencial, é um comentário crítico a um outro texto publicado em 2 de Outubro no mesmo jornal, da autoria de um outro reputado universitário francês, Alain Renaut.
Eis o texto:

A profissionalização da Universidade não é solução,
formar diplomados generalistas não é formar desempregados

“No Le Monde de 2 de Outubro, Alain Renaut, professor de Filosofia em Paris-IV, entoa um hino à profissionalização dos ensino universitário.
Conhecemos esta ideia ao nível dos diversos governos e que tem passado da esquerda para a direita, desde a época de Claude Alegre (PS) até à actual de Valérie Pécresse (época Sarkosy). Renaut não acrescenta grande coisa a esta mesma ideia: afirma que a universidade deve fornecer uma formação profissional, mas não dá nenhuma explicação em que consistirão os seus cursos, no dia em que a profissionalização venha a ser uma realidade. Abandonará Renaut a exegese de Kant para se dedicar às técnicas da comunicação de empresa? Seria muito lamentável quer para os seus estudantes que ele sabe introduzir no universo dos filósofos quer para a comunicação ao nível da empresa, de que ele não conhece nada.

Quando se fala de profissionalismo, seria necessário ser claro e fazer imediatamente algumas distinções. A confusão reina, primeiro e sobretudo no decreto sobre o estatuto dos professores-investigadores, que atribui aos professores a tarefa da inserção profissional dos seus estudantes, enquanto que esta tarefa só pode e deve assentar na própria instituição.
Não compete ao professor ajudar os seus estudantes a procurar um trabalho depois de ter concluído os seus estudos. Esta função de apoio aos estudantes diplomados deve ser atribuída à serviços ad hoc, que convém criar em cada universidade. E não é necessário confundir uma política de ajuda aos estudantes aquando do seu acesso ao mercado de trabalho, com uma política de profissionalização dos ensinos.
Além disso - é a terceira distinção - não é absolutamente indiferente propor formações profissionais que se situam depois das formações generalistas e disciplinares, ou alternativamente propor a substituição destas segundas pelas primeiras, pelas formações profissionais. A primeira estratégia tem em conta uma necessidade de sempre, diferentemente satisfeita pela sociedade, pelas empresas e pelas instituições: que os jovens que tenham adquirido um saber adquirem também um correspondente saber fazer.
A segunda estratégia pretende impor a substituição do saber pelo "saber-fazer", sob pretexto da inutilidade dos conhecimentos teóricos. É um espanto vermos um excelente professor de Filosofia colocar-se do lado dos que pensam que o espírito crítico, a reflexão metodológica e a abstracção são coisas já fora de uso, obsoletas. Os universitários, sobretudo em ciências humanos, deveriam ao contrário reafirmar o que a sociedade corre o risco de esquecer: que o saber teórico tem também uma eficácia prática. Por outras palavras, que as competências se baseiam no conhecimento.
Renaut coloca como argumento em defesa da profissionalização o exemplo da filosofia: dado que um número muito limitado dos seus estudantes em Paris-IV consegue passar no concurso da agregação, será então necessário transformar as formações filosóficas de acordo com as orientações profissionais que não sejam as do ensino secundário. Mas Renaut não nos diz quais são estas profissões que deveriam, a partir de agora, dar forma e moldar pelas suas exigências os cursos dos professores e as teses dos estudantes. O seu raciocínio poderia ser posto ao contrário : desde há muito tempo, que os diplomados em filosofia, como os diplomados em letras ou em história, não se tornam maioritariamente professores.
Nós pensamos que se trata do principal mercado, em termos de saídas profissionais, destes estudos, mas unicamente porque ignoramos a trajectória profissional dos nossos estudantes. É uma ilusão da qual nos deveríamos desembaraçar para olhar de frente a realidade : os estudos em letras, em ciências humanas e sociais conduzem os estudantes para uma grande diversidade de empregos. Nestas condições, como reorganizá-lo de acordo com uma orientação profissional mais precisa?
Não vale melhor ter em conta notável riqueza destes ensinos, que permitem a integração em meios profissionais muito diversificados? Objectar-nos –ão que a preocupação incide não sobre os que encontram um emprego, mas sim sobre os que não o encontram. Mas ninguém conseguiu até agora o demonstrar o que se dá sempre a entender : que o carácter não especialista e disciplinar das formações seria responsável pela taxa de desemprego. Dá-se como adquirido o que é mais incerto: que não se encontra trabalho porque não se recebeu uma formação profissional bastante desenvolvida.
Há uma outra grande ilusão, inutilmente desmentida pelos economistas: pretende-se criar um sistema ideal, no qual a previsão das necessidades do mercado de trabalho permitiria planificar as formações, e de trazer às empresas exactamente que estas necessitam como recursos humanos. Podemos então ficar espantados com a paixão planificadora de que dão mostras os nossos liberais.

Os nossos liberais esquecem duas coisas: por um lado que os dirigentes de empresa são incapazes de saber o que irão necessitar como competências precisas daqui a cinco ou oito anos, tempo este que corresponde ao tempo de formação em mestrado e ao tempo de doutoramento; por outro lado, que os jovens não são apenas recursos humanos mas seres humanos, e que a sua motivação no momento de escolher a sua fileira de estudos superiores não é redutível a um projecto profissional.
É necessário ser burocrata e nunca não ter falado com um estudante, o que infelizmente, é o caso em números instâncias de decisão, para não compreender que esta motivação é complexa, e que responde à necessidades, aspirações, ansiedades pessoais que nenhum formulário de inscrição poderá alguma vez reflectir.
A conversão do filósofo Renaut à profissionalização forçada é tanto mais surpreendente quanto ele mesmo emitiu a este respeito, há alguns anos, importantes reservas. Permito-me recomendar-lhe a leitura do seu livro: O que fazer das universidades? (ED. Bayard, 2002). Há nesta obra uma discussão muito convincente sobre os perigos da profissionalização das páginas 90 à 94.
Depois de ter evocado a política profissionalizante seguida pelas universidades americanas nos anos 1960, Renaut escreveu então: “O risco parece grande, se se procede de maneira cega a uma semelhante profissionalização das fileiras, ao mesmo tempo que se destinam sectores importantes do saber (os que estão sem saída directa para as profissões) ao destino que se foi o dos estudos latinos ou gregos, de os fazer desaparecer definitivamente dos estabelecimentos superiores referidos qualquer dimensão verdadeiramente universitária. Por um lado, a componente constituída pela formação do saber dava o lugar , exactamente como nas escolas profissionais, a uma simples formação ao saber constituído e profissionalmente explorável. Por outro lado, a diversificação de sectores também compartimentados como o são as profissões acabaria por retirar qualquer sentido a este projecto de ajuntamento que exprime a ideia de universidade(p. 92).
A posição de Renaut era então matizada: abordava o problema pesando os prós e os contras e defendia-o fortemente a formação generalista no primeiro ciclo. O que é feito hoje destas matizes? É deplorável que a controvérsia política as tenha apagado.”

[Paolo Tortonese. Professeur de littérature française à l’Université de Paris III-Sorbonne, La professionnalisation de l’Université n’est pas la solution, former diplômés généralistes n’est pas produire chômeurs, Le Monde, 23 de Outubro de 2009].

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