Recordando o Osvaldo Castro
Já
há alguns dias, a Teresa no FB e a Catarina, numa mensagem que me enviou,
evocaram o Osvaldo com saudade e amor. Associo-me a essa memória numa homenagem
fraterna e agradeço-lhes por me terem associado a essa lembrança. Deveria tê-lo
feito mais cedo, mas uma circunstancial urgência na conclusão de uma tarefa
útil absorveu-me a atenção por alguns dias. Escrevo agora.
Em
junho de 2014 fui honrado pelo convite de participar numa homenagem ao Osvaldo
Castro. É o texto que reproduz as palavras que então disse e que publiquei
neste mesmo blog que aqui vou transcrever.
"Às
vezes, o tempo atravessa-nos como um estilete implacável, para nos lembrar
brutalmente como corre. É assim que os amigos nos deixam. Com ou sem aviso, mas
inscrevendo sempre dentro de nós o rasto de uma saudade que, mesmo esbatendo-se
melancolicamente, não passará.
E,
quando partilhámos com eles desígnios, que foram muito para além da pequena
dimensão de cada um de nós, essa saudade tinge-se de uma memória que a ergue
sem tristeza, como se todo o passado que nos diz respeito estivesse afinal
concentrado no futuro de que não desistimos.
Por
isso, o Osvaldo está hoje aqui presente, não só como a sombra luminosa de uma
saudade, mas também como camarada de um futuro que, mesmo quando parece
afastar-se de nós pela crueldade fria da história, continua como horizonte
irrenunciável das nossas vidas.
Corria
o mês de Janeiro de 1968. Não sabíamos ainda que se aproximava um mês de Maio
que inscreveria, uma vez mais, a França na legenda histórica do inconformismo e
da revolta. Não sabíamos ainda que um velho ditador iria cair de uma cadeira e
do poder, oito meses depois. E muito menos sabíamos que o garrote fascista que
nos apertava o pescoço se desfaria em pó, pouco mais de seis anos depois.
Sete
estudantes de Coimbra sentaram-se em volta de uma mesa para uma primeira
reunião na cave da República do Ninho dos Matulões: o Osvaldo
Castro, o Celso Cruzeiro, o Carlos Baptista, o Pio Abreu, o
Jorge Strecht, o Jorge Aguiar e eu próprio. O Conselho das Repúblicas e os
Organismos Autónomos haviam-nos escolhido para liderarmos o combate contra o
estado de exceção na AAC, contra os delegados do Governo que usurpavam a
direção da Associação Académica de Coimbra, contra a Comissão Administrativa
que nos envergonhava.
A
democracia tinha que regressar á nossa Associação, a Academia de Coimbra não
queria ver prolongada a sua humilhação. Cabia-nos conseguir a realização de
eleições.
Éramos,
por isso, a Comissão pró-Eleições. Liderámos o movimento estudantil em Coimbra
até ao início do ano seguinte, quando, tendo sido cumprido o encargo que
recebemos, uma nova direção eleita para a AAC tomou o seu lugar na liderança do
movimento estudantil em Coimbra.
Sinalizando
uma continuidade procurada, o Osvaldo e o Celso faziam parte da nova direção,
ao lado do Alberto Martins, da Fernanda da Bernarda, do Matos
Pereira, do Gil Ferreira e do José Salvador.
Nessa
tarde simples de um janeiro banal, começou de algum modo uma nova aventura.
Aqueles primeiros sete estudantes, mas também os outros cinco, sabiam-se e
queriam-se como apenas um punhado entre milhares. Gostavam de ler, de escrever,
de viver o teatro, a música e o canto, de praticar desporto, de serem gente da
boémia coimbrã e até de estudar. Gente comum que não tinha interesse em subir
ao palco das pequenas glórias, que não estava impregnada pela vertigem ilusória
das pequenas ambições. Uns acabados de entrar na juventude, outros navegando a
meio do rio, outros ainda resistindo teimosamente a sair dela.
Não
podíamos defraudar os que haviam confiado em nós. Não éramos heróis de coisa
nenhuma, mas estávamos dispostos a vender cara a nossa pele. Não íamos cumprir
um calendário de sofrimento. Íamos conseguir eleições. E houve eleições na AAC.
O
fascismo, irritado com aquele primeiro passo, largou os mastins da violência
contra os estudantes. Os estudantes resistiram. A luta entrou num patamar mais
duro, novos protagonistas a lideraram nesta nova e mais difícil fase. A
responsabilidade dirigente passara a um outro coletivo, no qual o Osvaldo
também participava. Um outro coletivo, mas a mesma determinação e o mérito
acrescido de terem navegado com êxito numa tormenta maior.
Sem
tergiversarem, mas com a serena inteligência dos justos, com determinação,
sempre olhando a realidade a partir dos estudantes, sem inúteis alaridos, mas
sempre de pé, a Direcção-Geral da AAC ergueu-se com a Academia, tornando
evidentes os limites que crescentemente apertavam o fascismo.
Nas
reuniões assim como na liderança coletiva do movimento, o Osvaldo era o tecido
conjuntivo que dava coesão às equipas, que transmitia serenidade e que limava
com bonomia as arestas naturais das crispações de ocasião. Os companheiros de
responsabilidade, os estudantes, não se limitavam a respeitá-lo. Gostavam dele.
O
poder fascista não conseguiu esmagar a Academia de Coimbra. O governo não caiu,
mas verificámos depois que algo se quebrou então dentro dele, arrastando-o para
uma anemia crescente da qual nunca se viria a recompor.
Hoje,
sabemos que aqueles anos mágicos vertebraram as nossa vidas sem que nos
transformassem em antigos combatentes. O horizonte, que o Osvaldo
partilhava com tantos de nós, continua vivo. É certo que talvez tenhamos
encarado esse horizonte, ao longo da vida, de maneiras entre si diferentes, que
nos levaram por vezes a enveredar por caminhos diversos, mas nenhum de nós
deixou escapar as utopias em que realmente acreditava.
O
tempo passou pelas nossas vidas como uma tempestade de esperança muitas vezes travada
por melancolias e desilusões. O Osvaldo deixou sempre que a tempestade o
levasse, não como folha perdida a que escapasse o norte, mas como a vontade
firme e serena de quem quer fazer parte dela.
Mesmo
quando os nossos caminhos se afastaram, sempre trocámos com naturalidade sinais
de uma amizade intocável. Quando voltaram a convergir e nos reencontrámos na
Assembleia da República como deputados do mesmo Partido, tudo se passou como se
na semana anterior tivéssemos dito um até já, no fim de uma reunião. E haviam
passado décadas.
Os
anos haviam-no amadurecido, mas não o tinham mudado. Como deputado ou como
governante, o Osvaldo, ainda mais apurado na sua competência, cultivou sempre
como se voasse a memória dos anos mágicos, ouviu sempre com alegria o marulhar
generoso das “repúblicas”, exerceu sempre sem embaraço a ironia aguçada da
congeminação.
Por
isso, é hoje tão difícil saber se esta saudade é a melancolia de um outono que
teima em nos invadir, ou a combustão virtuosa da esperança que nos faz viver, a
todos nós, homens comuns vertebrados pelo futuro.
Concluo
estas palavras de justa homenagem com um poema que escrevi em memória do
Osvaldo, no meu blog, quando ele nos deixou:
Adeus, Osvaldo.
O tempo desabou sobre o teu nome
e o passado ocupou-te rudemente.
Um violento nó foi apertado
no coração mais triste da memória.
A tua ausência rasga-nos por dentro
como se toda a lembrança fosse dor.
Agora és a semente libertada
nas avenidas lentas do futuro.
Não chega!
É todo o teu presente que nos falta
o sabermos que estavas nalgum lado.
Essa espera tranquila que sabia
ir ouvir-te de novo e abraçar-te.
É nova esta saudade e já sem fim.