sábado, 27 de junho de 2020

Recordando o Osvaldo Castro




Recordando o Osvaldo Castro
Já há alguns dias, a Teresa no FB e a Catarina, numa mensagem que me enviou, evocaram o Osvaldo com saudade e amor. Associo-me a essa memória numa homenagem fraterna e agradeço-lhes por me terem associado a essa lembrança. Deveria tê-lo feito mais cedo, mas uma circunstancial urgência na conclusão de uma tarefa útil absorveu-me a atenção por alguns dias. Escrevo agora.
Em junho de 2014 fui honrado pelo convite de participar numa homenagem ao Osvaldo Castro. É o texto que reproduz as palavras que então disse e que publiquei neste mesmo blog que aqui vou transcrever.

"Às vezes, o tempo atravessa-nos como um estilete implacável, para nos lembrar brutalmente como corre. É assim que os amigos nos deixam. Com ou sem aviso, mas inscrevendo sempre dentro de nós o rasto de uma saudade que, mesmo esbatendo-se melancolicamente, não passará.
E, quando partilhámos com eles desígnios, que foram muito para além da pequena dimensão de cada um de nós, essa saudade tinge-se de uma memória que a ergue sem tristeza, como se todo o passado que nos diz respeito estivesse afinal concentrado no futuro de que não desistimos.
Por isso, o Osvaldo está hoje aqui presente, não só como a sombra luminosa de uma saudade, mas também como camarada de um futuro que, mesmo quando parece afastar-se de nós pela crueldade fria da história, continua como horizonte irrenunciável das nossas vidas.
Corria o mês de Janeiro de 1968. Não sabíamos ainda que se aproximava um mês de Maio que inscreveria, uma vez mais, a França na legenda histórica do inconformismo e da revolta. Não sabíamos ainda que um velho ditador iria cair de uma cadeira e do poder, oito meses depois. E muito menos sabíamos que o garrote fascista que nos apertava o pescoço se desfaria em pó, pouco mais de seis anos depois.
Sete estudantes de Coimbra sentaram-se em volta de uma mesa para uma primeira reunião na cave da República do Ninho dos Matulões: o Osvaldo Castro, o Celso Cruzeiro, o Carlos Baptista, o Pio Abreu, o Jorge Strecht, o Jorge Aguiar e eu próprio. O Conselho das Repúblicas e os Organismos Autónomos haviam-nos escolhido para liderarmos o combate contra o estado de exceção na AAC, contra os delegados do Governo que usurpavam a direção da Associação Académica de Coimbra, contra a Comissão Administrativa que nos envergonhava.
A democracia tinha que regressar á nossa Associação, a Academia de Coimbra não queria ver prolongada a sua humilhação. Cabia-nos conseguir a realização de eleições.
Éramos, por isso, a Comissão pró-Eleições. Liderámos o movimento estudantil em Coimbra até ao início do ano seguinte, quando, tendo sido cumprido o encargo que recebemos, uma nova direção eleita para a AAC tomou o seu lugar na liderança do movimento estudantil em Coimbra.
Sinalizando uma continuidade procurada, o Osvaldo e o Celso faziam parte da nova direção, ao lado do Alberto Martins, da Fernanda da Bernarda, do Matos Pereira, do Gil Ferreira e do José Salvador.
Nessa tarde simples de um janeiro banal, começou de algum modo uma nova aventura. Aqueles primeiros sete estudantes, mas também os outros cinco, sabiam-se e queriam-se como apenas um punhado entre milhares. Gostavam de ler, de escrever, de viver o teatro, a música e o canto, de praticar desporto, de serem gente da boémia coimbrã e até de estudar. Gente comum que não tinha interesse em subir ao palco das pequenas glórias, que não estava impregnada pela vertigem ilusória das pequenas ambições. Uns acabados de entrar na juventude, outros navegando a meio do rio, outros ainda resistindo teimosamente a sair dela.
Não podíamos defraudar os que haviam confiado em nós. Não éramos heróis de coisa nenhuma, mas estávamos dispostos a vender cara a nossa pele. Não íamos cumprir um calendário de sofrimento. Íamos conseguir eleições. E houve eleições na AAC.
O fascismo, irritado com aquele primeiro passo, largou os mastins da violência contra os estudantes. Os estudantes resistiram. A luta entrou num patamar mais duro, novos protagonistas a lideraram nesta nova e mais difícil fase. A responsabilidade dirigente passara a um outro coletivo, no qual o Osvaldo também participava. Um outro coletivo, mas a mesma determinação e o mérito acrescido de terem navegado com êxito numa tormenta maior.
Sem tergiversarem, mas com a serena inteligência dos justos, com determinação, sempre olhando a realidade a partir dos estudantes, sem inúteis alaridos, mas sempre de pé, a Direcção-Geral da AAC ergueu-se com a Academia, tornando evidentes os limites que crescentemente apertavam o fascismo.
Nas reuniões assim como na liderança coletiva do movimento, o Osvaldo era o tecido conjuntivo que dava coesão às equipas, que transmitia serenidade e que limava com bonomia as arestas naturais das crispações de ocasião. Os companheiros de responsabilidade, os estudantes, não se limitavam a respeitá-lo. Gostavam dele.
O poder fascista não conseguiu esmagar a Academia de Coimbra. O governo não caiu, mas verificámos depois que algo se quebrou então dentro dele, arrastando-o para uma anemia crescente da qual nunca se viria a recompor.
Hoje, sabemos que aqueles anos mágicos vertebraram as nossa vidas sem que nos transformassem em antigos combatentes. O horizonte, que o Osvaldo partilhava com tantos de nós, continua vivo. É certo que talvez tenhamos encarado esse horizonte, ao longo da vida, de maneiras entre si diferentes, que nos levaram por vezes a enveredar por caminhos diversos, mas nenhum de nós deixou escapar as utopias em que realmente acreditava.
O tempo passou pelas nossas vidas como uma tempestade de esperança muitas vezes travada por melancolias e desilusões. O Osvaldo deixou sempre que a tempestade o levasse, não como folha perdida a que escapasse o norte, mas como a vontade firme e serena de quem quer fazer parte dela.
Mesmo quando os nossos caminhos se afastaram, sempre trocámos com naturalidade sinais de uma amizade intocável. Quando voltaram a convergir e nos reencontrámos na Assembleia da República como deputados do mesmo Partido, tudo se passou como se na semana anterior tivéssemos dito um até já, no fim de uma reunião. E haviam passado décadas.
Os anos haviam-no amadurecido, mas não o tinham mudado. Como deputado ou como governante, o Osvaldo, ainda mais apurado na sua competência, cultivou sempre como se voasse a memória dos anos mágicos, ouviu sempre com alegria o marulhar generoso das “repúblicas”, exerceu sempre sem embaraço a ironia aguçada da congeminação.
 Por isso, é hoje tão difícil saber se esta saudade é a melancolia de um outono que teima em nos invadir, ou a combustão virtuosa da esperança que nos faz viver, a todos nós, homens comuns vertebrados pelo futuro.
Concluo estas palavras de justa homenagem com um poema que escrevi em memória do Osvaldo, no meu blog, quando ele nos deixou:

Adeus, Osvaldo.

O tempo desabou sobre o teu nome
e o passado ocupou-te rudemente.

Um violento nó foi apertado
no coração mais triste da memória.

A tua ausência rasga-nos por dentro
como se toda a lembrança fosse dor.

Agora és a semente libertada
nas avenidas lentas do futuro.

Não chega!

É todo  o teu presente que nos falta
o sabermos que estavas nalgum lado.

Essa espera tranquila que sabia
ir ouvir-te de novo e abraçar-te.

É nova esta saudade e já sem fim.


domingo, 7 de junho de 2020

15 - UM LIVRO, UM POETA - Vinicius de Moraes




15 - UM LIVRO, UM POETA -   Vinicius de Moraes

1.      Com a evocação de hoje, chega ao fim a publicação da série de 15 poetas que já tinham sido lembrados neste mesmo blog, em 2015 e em 2017 . A partir de hoje, o ritmo de evocações será mais lento, bem mais espaçada a recordação de novos poetas. Tendo que escrever textos novos para novas escolha,  espero não vir a ser demasiado lento.
Vou recordar  Vinicius de Moraes, poeta brasileiro do século XX [Rio de Janeiro -1913/1980] que se espraiou pela vida com alegria e genialidade. Diplomata, cronista e jornalista, intrometeu-se na música brasileira, misturando verbo, voz e música, na sua fraternidade boémia com Tom Jobim, João Gilberto e Chico Buarque. Usando o seu próprio modo de dizer, como poeta voou alto.
Este é o único caso da série de quinze em que não vou publicar os mesmos poemas com que antes  evoquei Vinicius de Moraes, em 14 de janeiro de 2017. Nessa data, relembrei dois dos seus poemas  incluídos no seu "Livro de Sonetos", publicada no Rio de Janeiro em 1987. Num deles é homenageado Pablo Neruda, noutro é exaltado o futebol brasileiro através do lendário Garrincha.
Em vez deles, hoje vou publicar “ O operário em construção”. É com ele que é encerrada a ”Antologia Poética”, editada em 2001 pelas Publicações Dom Quixote. Não tendo sido de lá que o transcrevi, achei apesar disso que devia deixar aqui esta informação.
É um poema longo, talvez inadequado pela sua extensão a ser aqui publicado. Mas é um poema indispensável neste momento negro que atravessa o povo brasileiro, uma homenagem aos trabalhadores brasileiros, uma subida ao essencial, um relembrar das raízes.
Mantenho como uma espécie de oferta adicional a lembrança de uma fotografia que ilustra a passagem de Vinicius por Coimbra, nos anos 60.



O operário em construção
Rio de Janeiro , 1959
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.


Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.


************ 


Em Coimbra, nos anos 60, na República Baco, confraternizando com estudantes, Vinicius, de óculos escuros, com o braço sobre o ombro de Joaquim Namorado. De costas no primeiro plano, Zé Niza; mexendo no nariz, Quim Brandão. Recentemente, o Rui Pato lembrou que também lá estava com a sua viola, acompanhando a noite com o talento de sempre.

sábado, 6 de junho de 2020

14-UM LIVRO, UM POETA - Álvaro Feijó





14UM LIVRO, UM POETA - Álvaro Feijó

1. Em 2017, escrevi aqui o texto que se segue, quando retomei uma série de evocações de poetas que havia interrompido:

Incluí neste blog uma série de evocações de poetas que , por uma ou outra razão, por um ou outro poema, produziram em mim um eco mais fundo. Fi-lo através de uma seção específica, “Um livro, um poema”, mas que por vezes incluiu para cada autor mais do que um poema.

Desde 2 junho de 2015 que a interrompi. Até então, a um ritmo irregular havia recordado: Daniel Filipe, G. Ungaretti, Carlos de Oliveira, Manoel de Barros, Egito Gonçalves, B.Brecht, Reinaldo Ferreira, João Cabral de Melo Neto, Pablo Neruda, Sidónio Muralha, Manuel Bandeira, Cesário Verde e António Nobre.

Uma e outra vez decidi retomar essas evocações. Por uma razão ou por outra, isso foi não acontecendo.

O facto de, na homenagem prestada no Mosteiro dos Jerónimos a Mário Soares aquando da sua recente morte, ter sido incluída a transmissão de dois poemas  de Álvaro Feijó declamados por Maria Barroso, foi o impulso que me fez retomar a série há tanto interrompida. Vou pois transcrever esses dois poemas: “ Os dois sonetos de amor da hora triste”.

Embora  dando continuidade à série, vou introduzir uma ligeira alteração na sua designação que passará a ser: “ Um livro, um poeta”. Ela traduz mais fielmente o que ela tem sido e que penso que venha a ser.


2.Álvaro Feijó nasceu em Viana do Castelo em 1916 e morreu em Coimbra em 1941, onde era estudante de direito, antes de completar 25 anos. Com outos jovens estudantes de Coimbra , como Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, João José Cochofel e Fernando Namora, fez parte do grupo neo-realista  do Novo Cancioneiro. Um livro seu viria a ser publicado nesta coleção já depois da sua morte sob o título de :”Os poemas de Álvaro Feijó”.



                                                             
Os dois sonetos de amor da hora triste


Quando eu morrer - e hei-de morrer primeiro
do que tu - não deixes fechar-me os olhos
meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos
e ver-te-ás de corpo inteiro

como quando sorrias no meu colo.
E, ao veres que tenho toda a tua imagem
dentro de mim, se, então, tiveres coragem,
fecha-me os olhos com um beijo.

Eu, Marco Pólo,

farei a nebulosa travessia
e o rastro da minha barca
segui-lo-ás em pensamento. Abarca

nele o mar inteiro, o porto, a ria...
E, se me vires chegar ao cais dos céus,
ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus.

II
Não um adeus distante
ou um adeus de quem não torna cá,
nem espera tornar. Um adeus de até já,
como a alguém que se espera a cada instante.

Que eu voltarei. Eu sei que hei-de voltar
de novo para ti, no mesmo barco
sem remos e sem velas, pelo charco
azul do céu, cansado de lá estar.

E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação.
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora

assim, mente. E, se quiseres partir e o coração
to peça, diz-mo. A travessia é longa... Não atino
talvez na rota. Que nos importa, aos dois, ir sem destino.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

13 - UM LIVRO, UM POETA - António Nobre





13 - UM LIVRO, UM POETA -  António Nobre

Hoje, vamos lembrar António Nobre, poeta português do fim do século XIX, nascido no Porto em 1867, cidade onde viria a morrer em 1900. Evocá-lo a seguir a Cesário Verde permite-nos sentir as diferenças e a proximidade que os unem. Ambos se abriram a uma modernidade que cada um a seu modo prenunciou. António Nobre explorou a fundo a melancolia do sofrimento, como se a tristeza fosse a sua respiração, sem deixar de acolher os reflexos da natureza que o rodeava, quase como um sonho que sentia ser breve.

"Só", a sua principal obra, foi editada em Paris em 1892. António Nobre havia-se matriculado em Direito, na Universidade de Coimbra. Tendo reprovado por duas vezes, optou por ir para Paris, frequentar a “École Libre des Sciences Politiques”, onde se licenciou em Ciências Políticas em 1895.

Vamos recordar extratos de um poema incluído no “Só”, para o seu autor “o livro mais triste que há em Portugal”, cujos poemas foram na sua maior parte escritos em Paris. “Carta a Manoel” foi escrito em Coimbra, entre 1888 e 1890. É uma evocação de Coimbra e do modo como o poeta a sentiu, sem transigências, mas com afeto. Coimbra não o esqueceu. A Torre d’Anto, onde o poeta viveu, é dos ex-libris da cidade, uma homenagem permanente.




Carta a Manoel

Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paisagem triste, triste,
A cuja influencia a minha alma não reziste,
Queres notícias? Queres que os meus nervos falem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se calem...
E pede ao vento que não uive e gema tanto:
Que, enfim, se sofre abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Pior que as sabatinas
Dos ursos na aula, pior que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Pior que um diamante a riscar na vidraça!
Pior eu sei lá, Manoel, pior que uma desgraça!
Ó Rio Doce! túnel d’água e de arvoredo!
Por onde Anto vogava em o wagon d'um bote...
E, ao sol do meio-dia, os banhos em pelote,
Quando íamos nadar, á Ponte de Tavares!
Tudo se foi! Espuma em flocos pelos ares!
Tudo se foi...
    Hoje, mais nada tenho que esta
Vida claustral, bacharelática, funesta,
N'uma cidade assim, cheirando, essa indecente!
Por toda a parte, desde a Alta á Baixa, a lente!
Bem me dizias tu, como que adivinhando
O que isto para mim seria, Amigo, quando
O ano passado, vim contra tua vontade
Matricular-me, aí, n'essa Universidade:
«Anto não vás...» dizias tu. Eu, fraco, vim.
Mas certamente, é natural, não chego ao fim.
Ah quanto fora bem melhor a formatura,
Na Escola-Livre da Natureza, Mãe pura!
Que ótimas preleções as preleções modernas,
Cheias de observação e verdades eternas,
Que faz diariamente o Prof. Oceano!
Já tinha dado todo o Coração Humano,
Manoel! faltava um ano só para acabar
Meu curso de Psicologia com o Mar.
Porque troquei pela Coimbra inútil, vã,
Essa Escola sem par, cujo reitor é Pan?
Talvez... preguiça, eu sei... A cabra é a cotovia:
As aulas, lá, começam mal aponta o dia!
Que tédio o meu, Manoel! Antes de vir, gostava.
Era a distância, o além, que me impressionava:
Tinha a poesia do sol-pôr, d'uma esperança.
Mas, mal cheguei (que espanto! eu era uma criança...)
Tudo rolou no solo! A Tasca das Camelas
Para mim, era um sonho, o céu cheio de estrelas:
Nossa Senhora a dar de cear aos estudantes
Por 6 e 5! Mas ah! foi-se a Virgem d'antes,
Tia Camela... só ficou a camelice.
Contudo, em meio d'esta fútil coimbrice,
Que lindas coisas a lendária Coimbra encerra!
Que paisagem lunar que é a mais doce da Terra!
Que extraordinárias e medievas raparigas!
E o rio e as fontes? e as fogueiras? e as cantigas?
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Olha... São os Gerais, no intervalo das aulas.
Bateu o quarto. Vê! Vem saindo das jaulas
Os estudantes, sob o olhar pardo dos lentes:
Ao vê-los, quem dirá que são os descendentes
Dos navegantes do seculo XVI?
Curvam a espinha, como os áulicos aos reis!
E magros! tristes! de cabeça derreada!
Ah! Como hão-de, amanhã, pegarem uma espada!
- E os doutores? - Aí, os tens graves, á porta.
Porque te ris? Olha-los tanto... Que te importa?
Há duas exceções: o mais, são todos um,
Quaresma d'alma, sexta-feira de jejum...
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Manoel, vamos por aí fora
Lavar a alma, furtar beijos, colher flores,
Por esses lindos, deliciosos arredores,
Que vistos uma vez, ah! não se esquecem mais:
Torres, Condeixa, Santo António de Olivais,
Lorvão, Cernache, Nazaré, Tentúgal, Celas!
Sítios sem par! Onde há paisagens como aquelas?
Santos Lugares, onde jaz meu coração!
Cada um é para mim uma recordação...
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quinta-feira, 4 de junho de 2020

12- UM LIVRO, UM POETA- Cesário Verde




12- UM LIVRO, UM POETA-  Cesário Verde

Vou hoje partilhar convosco dois poemas de Cesário Verde, poeta português, nascido em 1855 em Lisboa, cidade onde viria a morrer em 1886. Foi vitimado pela tuberculose com pouco mais de 30 anos.

 O realismo que surpreendemos nele incorpora um olhar crítico e cosmopolita sobre a sociedade, tendo a ductilidade suficiente para se fundir com um  romantismo contido e aberto à presença de uma natureza campestre, em que por vezes o poeta parece descansar.

Em Abril de 1887,menos de um ano depois da morte do poeta, foi publicado em Lisboa, numa edição de 200 exemplares, “O Livro de Cesário Verde” que pela primeira vez reunia poemas antes apenas saídos em jornais e revistas. Deveu-se ao seu grande amigo Silva Pinto, apoiado pela família de Cesário Verde, esta edição, que viria a ser o essencial da obra do poeta.

Vamos hoje difundir dois poemas: “Avé-Marias” e “De Tarde”. O primeiro é dedicado a Guerra Junqueiro, abrindo uma pequena série de poemas ─ ”O Sentimento dum Ocidental” ─, onde se lhe seguem, “Noite Fechada”, “Ao Gás” e  “Horas Mortas”. É um poema que nos fala magistralmente de Lisboa, numa abordagem realista que, num colorido de detalhes que nos tocam, sabe sugerir o essencial, colocando-nos na sociedade de então. O segundo, publicado apenas postumamente, reflete a difícil simplicidade de um certo romantismo campestre, onde talvez se surpreenda uma subtil e discreta ironia, que o poeta parece não querer que apouque ou que agrida.


 AVÉ-MARIAS

      Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
 
      O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina
 
     Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países;
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

       Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga os mestres carpinteiros.

      Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

      E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

      E o fim de tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

      Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
   
      Vazam-se os arsenais e as oficinas
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
 
       Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
 
      Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
 

                                    DE  TARDE
Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!