sábado, 27 de junho de 2020

Recordando o Osvaldo Castro




Recordando o Osvaldo Castro
Já há alguns dias, a Teresa no FB e a Catarina, numa mensagem que me enviou, evocaram o Osvaldo com saudade e amor. Associo-me a essa memória numa homenagem fraterna e agradeço-lhes por me terem associado a essa lembrança. Deveria tê-lo feito mais cedo, mas uma circunstancial urgência na conclusão de uma tarefa útil absorveu-me a atenção por alguns dias. Escrevo agora.
Em junho de 2014 fui honrado pelo convite de participar numa homenagem ao Osvaldo Castro. É o texto que reproduz as palavras que então disse e que publiquei neste mesmo blog que aqui vou transcrever.

"Às vezes, o tempo atravessa-nos como um estilete implacável, para nos lembrar brutalmente como corre. É assim que os amigos nos deixam. Com ou sem aviso, mas inscrevendo sempre dentro de nós o rasto de uma saudade que, mesmo esbatendo-se melancolicamente, não passará.
E, quando partilhámos com eles desígnios, que foram muito para além da pequena dimensão de cada um de nós, essa saudade tinge-se de uma memória que a ergue sem tristeza, como se todo o passado que nos diz respeito estivesse afinal concentrado no futuro de que não desistimos.
Por isso, o Osvaldo está hoje aqui presente, não só como a sombra luminosa de uma saudade, mas também como camarada de um futuro que, mesmo quando parece afastar-se de nós pela crueldade fria da história, continua como horizonte irrenunciável das nossas vidas.
Corria o mês de Janeiro de 1968. Não sabíamos ainda que se aproximava um mês de Maio que inscreveria, uma vez mais, a França na legenda histórica do inconformismo e da revolta. Não sabíamos ainda que um velho ditador iria cair de uma cadeira e do poder, oito meses depois. E muito menos sabíamos que o garrote fascista que nos apertava o pescoço se desfaria em pó, pouco mais de seis anos depois.
Sete estudantes de Coimbra sentaram-se em volta de uma mesa para uma primeira reunião na cave da República do Ninho dos Matulões: o Osvaldo Castro, o Celso Cruzeiro, o Carlos Baptista, o Pio Abreu, o Jorge Strecht, o Jorge Aguiar e eu próprio. O Conselho das Repúblicas e os Organismos Autónomos haviam-nos escolhido para liderarmos o combate contra o estado de exceção na AAC, contra os delegados do Governo que usurpavam a direção da Associação Académica de Coimbra, contra a Comissão Administrativa que nos envergonhava.
A democracia tinha que regressar á nossa Associação, a Academia de Coimbra não queria ver prolongada a sua humilhação. Cabia-nos conseguir a realização de eleições.
Éramos, por isso, a Comissão pró-Eleições. Liderámos o movimento estudantil em Coimbra até ao início do ano seguinte, quando, tendo sido cumprido o encargo que recebemos, uma nova direção eleita para a AAC tomou o seu lugar na liderança do movimento estudantil em Coimbra.
Sinalizando uma continuidade procurada, o Osvaldo e o Celso faziam parte da nova direção, ao lado do Alberto Martins, da Fernanda da Bernarda, do Matos Pereira, do Gil Ferreira e do José Salvador.
Nessa tarde simples de um janeiro banal, começou de algum modo uma nova aventura. Aqueles primeiros sete estudantes, mas também os outros cinco, sabiam-se e queriam-se como apenas um punhado entre milhares. Gostavam de ler, de escrever, de viver o teatro, a música e o canto, de praticar desporto, de serem gente da boémia coimbrã e até de estudar. Gente comum que não tinha interesse em subir ao palco das pequenas glórias, que não estava impregnada pela vertigem ilusória das pequenas ambições. Uns acabados de entrar na juventude, outros navegando a meio do rio, outros ainda resistindo teimosamente a sair dela.
Não podíamos defraudar os que haviam confiado em nós. Não éramos heróis de coisa nenhuma, mas estávamos dispostos a vender cara a nossa pele. Não íamos cumprir um calendário de sofrimento. Íamos conseguir eleições. E houve eleições na AAC.
O fascismo, irritado com aquele primeiro passo, largou os mastins da violência contra os estudantes. Os estudantes resistiram. A luta entrou num patamar mais duro, novos protagonistas a lideraram nesta nova e mais difícil fase. A responsabilidade dirigente passara a um outro coletivo, no qual o Osvaldo também participava. Um outro coletivo, mas a mesma determinação e o mérito acrescido de terem navegado com êxito numa tormenta maior.
Sem tergiversarem, mas com a serena inteligência dos justos, com determinação, sempre olhando a realidade a partir dos estudantes, sem inúteis alaridos, mas sempre de pé, a Direcção-Geral da AAC ergueu-se com a Academia, tornando evidentes os limites que crescentemente apertavam o fascismo.
Nas reuniões assim como na liderança coletiva do movimento, o Osvaldo era o tecido conjuntivo que dava coesão às equipas, que transmitia serenidade e que limava com bonomia as arestas naturais das crispações de ocasião. Os companheiros de responsabilidade, os estudantes, não se limitavam a respeitá-lo. Gostavam dele.
O poder fascista não conseguiu esmagar a Academia de Coimbra. O governo não caiu, mas verificámos depois que algo se quebrou então dentro dele, arrastando-o para uma anemia crescente da qual nunca se viria a recompor.
Hoje, sabemos que aqueles anos mágicos vertebraram as nossa vidas sem que nos transformassem em antigos combatentes. O horizonte, que o Osvaldo partilhava com tantos de nós, continua vivo. É certo que talvez tenhamos encarado esse horizonte, ao longo da vida, de maneiras entre si diferentes, que nos levaram por vezes a enveredar por caminhos diversos, mas nenhum de nós deixou escapar as utopias em que realmente acreditava.
O tempo passou pelas nossas vidas como uma tempestade de esperança muitas vezes travada por melancolias e desilusões. O Osvaldo deixou sempre que a tempestade o levasse, não como folha perdida a que escapasse o norte, mas como a vontade firme e serena de quem quer fazer parte dela.
Mesmo quando os nossos caminhos se afastaram, sempre trocámos com naturalidade sinais de uma amizade intocável. Quando voltaram a convergir e nos reencontrámos na Assembleia da República como deputados do mesmo Partido, tudo se passou como se na semana anterior tivéssemos dito um até já, no fim de uma reunião. E haviam passado décadas.
Os anos haviam-no amadurecido, mas não o tinham mudado. Como deputado ou como governante, o Osvaldo, ainda mais apurado na sua competência, cultivou sempre como se voasse a memória dos anos mágicos, ouviu sempre com alegria o marulhar generoso das “repúblicas”, exerceu sempre sem embaraço a ironia aguçada da congeminação.
 Por isso, é hoje tão difícil saber se esta saudade é a melancolia de um outono que teima em nos invadir, ou a combustão virtuosa da esperança que nos faz viver, a todos nós, homens comuns vertebrados pelo futuro.
Concluo estas palavras de justa homenagem com um poema que escrevi em memória do Osvaldo, no meu blog, quando ele nos deixou:

Adeus, Osvaldo.

O tempo desabou sobre o teu nome
e o passado ocupou-te rudemente.

Um violento nó foi apertado
no coração mais triste da memória.

A tua ausência rasga-nos por dentro
como se toda a lembrança fosse dor.

Agora és a semente libertada
nas avenidas lentas do futuro.

Não chega!

É todo  o teu presente que nos falta
o sabermos que estavas nalgum lado.

Essa espera tranquila que sabia
ir ouvir-te de novo e abraçar-te.

É nova esta saudade e já sem fim.


4 comentários:

Unknown disse...

Que homenagem tão bela! Eu não convivi com o Osvaldo mas sabia do vosso apreço comum.

Victor Moura disse...


É nova esta saudade e já sem fim.

Bonita, esta reflexão. E quando o mal não tem remédio só posso desejar que a saudade tenha daquelas pilhas que duram, duram..duram...

Arlindo Oliveira disse...

Lindo poema Rui Namorado.!! Fizeste-me lembrar Coimbra e as tias do Quebra do Costas, que me abriram as portas logo que cheguei da Madeira, a Coimbra, enquanto não arranjava casa.!! Acabei por ser vizinho das tias e na mesma rua - as nossas tertúlias eram no dr Mário dono do Oásis. Foi o mundo novo que se me abriu e apesar de nunca ter perdido uma cadeira na faculdade de ciências, aprendi mais fora dos bancos da Universidade do que nas aulas - fora de aulas aprendi a ser um homem inteiro e a ver o País e o mundo tal como eram.!! Vinha de África meio baralhado e confuso, pertencente à uma família pobre e humilde e sem “GPS“ que me orientasse, não fosse os amigos e colegas mais esclarecidos e a crise académica acabou por funcionar como o divã do psiquiatra, colocando os pensamentos em ordem, sem necessidade de medicamento algum, mas de cultura e liberdade a que os livros da coleccao D. Quixote, alguns vendidos no mercado negro, ajudaram muito. Até o Canto e as Armas do Manuel Alegre andei a vender, para auxílio aos pescadores da Figueira, em greve. Na crise não faltei a nada e pertenci aos comités de vigilância para impedir os fura greves de irem aos exames, em 69. Um abraço Rui e que Osvaldo de Castro, mais tarde nosso colega na AR, descanse em paz.!!

Fernanda Margarida Neves de Sá disse...

QUANDO A SAUDADE APERTA, PROCURA-SE!

Hoje, procurando "matar" uma saudade que sempre pesou na minha existência, de ALGUÉM exemplar, único, muito amado e nunca esquecido - Osvaldo Alberto do Rosário Sarmento e Castro. Encontrei este belo texto. Li-o emocionada recordando um passado que para sempre me tem acompanhado e acompanhará até ao fim da minha existência. Partiu, mas nunca deixou qualquer ponta de vazio ou algum tipo de crítica, muito menos censura em nenhum dos seus valorosos atos.

Visualizei, também o nosso querido Rui Sarmento e Castro. Tanta saudade, Rui e como eu gostaria de te olhar e recordar todas as nossas vivências de Amizade e Familiares na nossa juventude. As tuas tias? TU, como estás dentro da tua nova situação de aposentado? Desconheço se alguma destas palavras chegará até ti. Só sei que, já nos meus 75 anos, gostaria muito de te encontrar, de te ver.

Pensando num bom infortúnio, deixo aqui uma Página que oriento, depois de ter fundado a primeira "Associação Portuguesa de Doentes com Fibromialgia" - APDF, hoje seguida através da Página "Fibromiálgicos Unidos Pela Saúde". Se, por acaso, estas letras chegarem até ti, só quero deixar o meu elevado desejo de encontrar-te e fazer votos de uma boa e tranquila Aposentação para ti.

Grande Abraço Amigo para ti e família.

Fernanda Margarida (Nany)