quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O BRASIL em águas turvas


                                           - A generosidade da direita brasileira -

Durante os últimos dias teve lugar no Brasil mais um episódio politico-rocambolesco que justifica alguns comentários. Comecemos pelo princípio.

A Rede de Sustentabilidade, partido político liderado pela ex-candidata presidencial Marina Silva, que antes  fora dirigente do PT e pertencera ao governo de Lula, tomou uma posição de ambiguidade cúmplice, durante o golpe de Estado desferido contra Dilma Roussef. Os seus resultados nas eleições locais posteriores foram modestos. A sua posição perante a deriva neoliberal interpretada pelo governo do mordomo Temer é fluida e inócua.

Talvez, para fazer prova de vida, a Rede suscitou no Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF) um incidente de afastamento do Senador Renan Calheiros da Presidência do Senado. Incidente possibilitado pelo facto de o STF ter aberto um processo-crime contra ele por corrupção. No quadro do referido pedido de afastamento, foi tomada, por um juiz do STF, uma providência cautelar para que preventivamente se procedesse de imediato ao referido afastamento.

A mesa do Senado brasileiro não acatou a ordem judicial, alegando que aguardava a confirmação do ato do juiz pelo pleno do STF. Este tomou ontem uma decisão contrária ao juiz, permanecendo Calheiros na liderança do Senado. Mas, salomonicamente, decidiu que Calheiros, embora continuasse à frente do Senado, saía da linha sucessória da Presidência da República, tal como ela é desenhada pela Constituição brasileira.

Os jornais noticiaram com naturalidade que o Presidente da República  instalado ( Temer), lideranças do senado e juízes do STF tinam acordado a solução adotada num esforço de contenção de danos e riscos; e para ninguém perder a face . A Justiça destapou discretamente um dos seus olhos para ver o que estava em causa? Se o senador fosse do PT a decisão seria a mesma? Por método ou por viés rural  ─ duvido.

Enfim, para mim é um sinal de pré-Estado de Direito : juízes do tribunal supremo regateiam decisões com os outros poderes, admitindo implicitamente que não são apenas  escravos da lei mas também das conveniências políticas. E a mesma imprensa (os jornalões e as grandes cadeias televisivas) que nos espantava e desvanecia com a sua virtude democrático-justicialista, fustigando Dilma e santificando qualquer magistrado que arremetesse contra Lula ou o PT, congratula-se agora com o arranjinho politico-judicial , como se fosse um ato santo. E assim tingiu de um pouco mais de sombra a sua credibilidade.

É claro que é discutível o fundo jurídico da questão. E é certo que  nas decisões jurídicas de instâncias brasileiras de nível  jurídico-constitucional nada mais podemos estranhar ,depois desse extraordinário atropelo que se traduziu no envolvimento de um verdadeiro golpe de Estado numa falsa capa jurídico-constitucional que foi a destituição de Dilma. Mas o risco de um alto magistrado se fazer de parvo para assim tomar uma decisão ilegítima é  o de , daí por diante frequentemente,  passar a dizer e a fazer parvoíces; ou a  dar legitimidade a outros para, por sua vez, as dizerem e fazerem  quando lhes convier.

Na verdade, quando os senadores brasileiros, assumindo formal e legalmente o papel de supremos julgadores da  Presidente da República e assumindo desse modo a responsabilidade de revogarem a vontade democrática e legitimamente expressa por  muitas  dezenas de milhões de brasileiros, mostraram que na sua maioria não tinham a nem a capacidade nem densidade jurídica necessárias  para decidir uma multa de trânsito. E assim permitiram que um qualquer meritíssimo magistrado que ninguém elegeu pudesse um dia imaginar argumentos para lhes remover o presidente.

No entanto, o que aqui está em causa de essencial  verdadeiramente é que as altas figuras atuais do estado brasileiro, depois do golpe de Estado contra Dilma, acham bem lá no fundo que qualquer delas pode subitamente ver-se envolvida formalmente num grande escândalo de corrupção. E assim a linha de sucessão presidencial, em vez de ser uma fila de gente séria e de uma estatura  moral acima de qualquer suspeita, é afinal um painel de possíveis futuros réus, na pior das hipótese, um painel de futuros cadastrados. Moralmente, uma implícita vingança de Dilma.

O antigo Presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, impulsionador decisivo da destituição de Dilma, foi demitido e está preso. O atual Presidente do Senado que colaborou docilmente no golpe, já foi declarado arguido pelo STF. Acumulam-se referências a Temer nas delações premiadas, além de estar em curso um processo de anulação das eleições que o pode varrer do poder. A qualidade jurídica do trabalho dos magistrados brasileiros envolvidos nos processos com decorrências políticas e a sua imparcialidade são cada vez mais histórias da carochinha. Os seus parceiros no Congresso começam a ensaiar tentativas de lhes porem limites e limitações.

Dilma foi apeada , porém  entre   as dezenas e dezenas de nomes de atuais detentores do poder formal mencionados repetidamente em delações premiadas não consta o nome dela.

Pouco a pouco vai ganhando a credibilidade da evidência de que o que  fez o establishment politico-mediático brasileiro tentar expelir como corpos estranhos Lula, Dilma e o PT não foi a sua alegada imundície moral , completamente oposta ao poço de virtudes e de honestidade que sempre foi ( todos o sabemos) a direita brasileira, mas precisamente o contrário. É que mesmo assumindo alguns tiques do establishment brasileiro,  eles cheiravam demasiado a trabalho, cheiravam demasiado a esquerda, acreditavam de mais num futuro justo, estavam  demasiado próximos do povão , para não serem um perigo crescente. O lixo sentiu-o o perigo e a  necessidade de ficar mais tranquilo, menos acompanhado ─ e expeliu-os.


E da querela em torno da liderança do atual Senado brasileiro acabei por chegar ao lixo. O trágico é que talvez não tenha sido preciso andar muito.

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