- A generosidade da direita brasileira -
Durante
os últimos dias teve lugar no Brasil mais um episódio politico-rocambolesco que
justifica alguns comentários. Comecemos pelo princípio.
A
Rede de Sustentabilidade, partido político liderado pela ex-candidata
presidencial Marina Silva, que antes fora dirigente do PT e pertencera ao governo
de Lula, tomou uma posição de ambiguidade cúmplice, durante o golpe de Estado desferido
contra Dilma Roussef. Os seus resultados nas eleições locais posteriores foram
modestos. A sua posição perante a deriva neoliberal interpretada pelo governo
do mordomo Temer é fluida e inócua.
Talvez,
para fazer prova de vida, a Rede suscitou no Supremo Tribunal Federal do Brasil
(STF) um incidente de afastamento do Senador Renan Calheiros da Presidência do
Senado. Incidente possibilitado pelo facto de o STF ter aberto um processo-crime
contra ele por corrupção. No quadro do referido pedido de afastamento, foi tomada,
por um juiz do STF, uma providência cautelar para que preventivamente se procedesse
de imediato ao referido afastamento.
A
mesa do Senado brasileiro não acatou a ordem judicial, alegando que aguardava a
confirmação do ato do juiz pelo pleno do STF. Este tomou ontem uma decisão
contrária ao juiz, permanecendo Calheiros na liderança do Senado. Mas, salomonicamente,
decidiu que Calheiros, embora continuasse à frente do Senado, saía da linha sucessória
da Presidência da República, tal como ela é desenhada pela Constituição
brasileira.
Os
jornais noticiaram com naturalidade que o Presidente da República instalado ( Temer), lideranças do senado e
juízes do STF tinam acordado a solução adotada num esforço de contenção de
danos e riscos; e para ninguém perder a face . A Justiça destapou discretamente
um dos seus olhos para ver o que estava em causa? Se o senador fosse do PT a
decisão seria a mesma? Por método ou por viés rural ─ duvido.
Enfim,
para mim é um sinal de pré-Estado de Direito : juízes do tribunal supremo regateiam
decisões com os outros poderes, admitindo implicitamente que não são apenas escravos da lei mas também das conveniências
políticas. E a mesma imprensa (os jornalões e as grandes cadeias televisivas)
que nos espantava e desvanecia com a sua virtude democrático-justicialista, fustigando
Dilma e santificando qualquer magistrado que arremetesse contra Lula ou o PT,
congratula-se agora com o arranjinho politico-judicial , como se fosse um ato
santo. E assim tingiu de um pouco mais de sombra a sua credibilidade.
É
claro que é discutível o fundo jurídico da questão. E é certo que nas decisões jurídicas de instâncias brasileiras
de nível jurídico-constitucional nada
mais podemos estranhar ,depois desse extraordinário atropelo que se traduziu no
envolvimento de um verdadeiro golpe de Estado numa falsa capa jurídico-constitucional
que foi a destituição de Dilma. Mas o risco de um alto magistrado se fazer de
parvo para assim tomar uma decisão ilegítima é o de , daí por diante frequentemente, passar a dizer e a fazer parvoíces; ou a dar legitimidade a outros para, por sua vez,
as dizerem e fazerem quando lhes convier.
Na
verdade, quando os senadores brasileiros, assumindo formal e legalmente o papel
de supremos julgadores da Presidente da
República e assumindo desse modo a responsabilidade de revogarem a vontade democrática
e legitimamente expressa por muitas dezenas de milhões de brasileiros, mostraram
que na sua maioria não tinham a nem a capacidade nem densidade jurídica necessárias
para decidir uma multa de trânsito. E assim
permitiram que um qualquer meritíssimo magistrado que ninguém elegeu pudesse um
dia imaginar argumentos para lhes remover o presidente.
No
entanto, o que aqui está em causa de essencial verdadeiramente é que as altas figuras atuais
do estado brasileiro, depois do golpe de Estado contra Dilma, acham bem lá no
fundo que qualquer delas pode subitamente ver-se envolvida formalmente num
grande escândalo de corrupção. E assim a linha de sucessão presidencial, em vez
de ser uma fila de gente séria e de uma estatura moral acima de qualquer suspeita, é afinal um
painel de possíveis futuros réus, na pior das hipótese, um painel de futuros
cadastrados. Moralmente, uma implícita vingança de Dilma.
O
antigo Presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, impulsionador decisivo
da destituição de Dilma, foi demitido e está preso. O atual Presidente do
Senado que colaborou docilmente no golpe, já foi declarado arguido pelo STF.
Acumulam-se referências a Temer nas delações premiadas, além de estar em curso
um processo de anulação das eleições que o pode varrer do poder. A qualidade
jurídica do trabalho dos magistrados brasileiros envolvidos nos processos com decorrências
políticas e a sua imparcialidade são cada vez mais histórias da carochinha. Os seus
parceiros no Congresso começam a ensaiar tentativas de lhes porem limites e
limitações.
Dilma
foi apeada , porém entre as dezenas e dezenas de nomes de atuais
detentores do poder formal mencionados repetidamente em delações premiadas não
consta o nome dela.
Pouco
a pouco vai ganhando a credibilidade da evidência de que o que fez o establishment
politico-mediático brasileiro tentar expelir como corpos estranhos Lula,
Dilma e o PT não foi a sua alegada imundície moral , completamente oposta ao
poço de virtudes e de honestidade que sempre foi ( todos o sabemos) a direita
brasileira, mas precisamente o contrário. É que mesmo assumindo alguns tiques
do establishment brasileiro, eles cheiravam demasiado a trabalho, cheiravam
demasiado a esquerda, acreditavam de mais num futuro justo, estavam demasiado próximos do povão , para não serem
um perigo crescente. O lixo sentiu-o o perigo e a necessidade de ficar mais tranquilo, menos acompanhado
─ e expeliu-os.
E
da querela em torno da liderança do atual Senado brasileiro acabei por chegar
ao lixo. O trágico é que talvez não tenha sido preciso andar muito.
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