Brasil – o tempo dos
mordomos?
Era uma vez um mordomo
de um filme de terror. Era um mordomo engomado, vestido de um cinzento
nocturno, talvez soturno. Uma brilhantina, cheirando a antigo, domava-lhe
fortemente o cabelo. Um sorriso fino como lâmina saía-lhe friamente dos lábios.
Os seus passos quase de veludo não se sentiam. Deslizava. Seria um corvo, se
voasse. Olhado com os olhos da alma parecia chegar do reino das sombras.
Mágico, seduzia os
humanos como um encantador de serpentes. Mas o seu estilo subtil e deslizante
fazia dele próprio uma serpente. Uma serpente lenta, persistente, sem
pressas. A seu lado as pessoas abertas,
solares, frontais, pareciam crianças generosas e descuidadas que arriscavam a
vida quando deixavam a serpente deslizar entre elas. Respeitoso, solene,
discreto, o mordomo do filme de terror , como impiedosa aranha refinava e
aguçava o seu veneno. Aperfeiçoava-o um dia após outro, tornando-o
irremediavelmente fatal.
Quando foi preciso que
a chefe dos guerreiros tivesse alguém a seu lado, pensou-se num general que
fosse inteiro e leal, ou num poeta que
cativasse as musas, ou num político arguto
que desvendasse todos os labirintos, ou num jurista que conhecesse todos os
alçapões legais. Hesitou-se. Tergiversou-se. Talvez não fosse necessário. O
mordomo de um filme de terror estava ali. Disponível, solícito, suave. Sem
ruído, sem ondas, ostensivamente sem ambição. Sem perigo, portanto. Cómodo, fácil,
simples. E ficou. Silencioso e sombrio com um leve sorriso desembainhado, à
disposição da guerreira, aceitando a sombra da guerreira, da chefe, como uma
quietude desejada, um bálsamo.
A água correu debaixo
das pontes, o sol escondeu-se e reapareceu. Uma vez, muitas vezes. Os morcegos
cegos do dinheiro, o lixo negro das ruas, os punhais sem pudor da traição
cercaram a guerreira, cercaram os guerreiros, enredaram os poetas, secaram os
generais limpos, corroeram os políticos verticais, mancharam a parede branca da
justiça. As espadas da barbárie acordaram de novo. A guerreira foi cercada.
O mordomo sai então
lentamente da sombra como a última serpente de todas as desgraças.
Despe a aura de humildade que o cobria. Desembainha-se
sem pudor como punhal e vai directo ao
coração da guerreira, com um esgar final de prazer e traição. Espalha-se um perfume
negro por toda a planície. Parece ter aumentado a tristeza dos rios.
A guerreira desce lentamente
uma rua rodeada de outonos. Com amargura
, mas sem rendição. O mordomo fica à porta olhando o horizonte com o sorriso de
sempre , talvez um pouco mais frio, mais
cinzento, mais breve.
Matilhas de sombra vão
chegando ao Palácio. Estranha gente, vergada e untuosa. Antigos vassalos de outros
senhores, servindo agora na mediocridade doce do tempo dos mordomos.
No livro negro da
República, escreveu-se em gelo um novo ensinamento: “
Se deixares os mordomos de filmes de terror chegarem ao coração dos teus
poderes, corres o risco de te transformares,
tu própria, num filme de terror”.
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