O jornalista e publicista brasileiro Mino Carta é uma referência intelectual e
política no panorama mediático do país irmão. Situado à esquerda, lúcido e
imparcial, ajuda-nos sempre a compreender melhor os temas de que nos fala. É um
dos responsáveis pela qualidade da revista de grande circulação onde escreve, a
CartaCapital.
É da respetiva página virtual que retirámos o texto da
sua autoria que abaixo transcrevemos. Um texto datado de 30 de maio, com um
título sugestivo:
“O golpe sem disfarces”.
As conversas gravadas por
Sérgio Machado, e até o momento divulgadas pela Folha de S.Paulo,
imprimem novo ritmo e novo rumo à manobra golpista
que afastou Dilma Rousseff e entregou o governo interino a Michel Temer, o
arguto professor de Direito Constitucional que rasga a Constituição.
Na semana passada
permitia-me prever a provável separação entre o poder togado e o poder
parlamentar, unidos pelo e no golpe. A hipótese agora se fortalece, e a
confirmação vem da própria mídia nativa. Não folheava os jornalões desde a
aprovação do impeachment pela Câmara e a partir de segunda 23 passei a
ler suas sessões políticas.
Na terça,
elegia-se Romero Jucá a
bode expiatório e como questão central apontava-se o “pacto” aventado na
conversa entre Machado e o ex-ministro para estancar a sangria desatada da Lava Jato.
A verdade factual
sacramenta outra evidência, ao alcance da compreensão até do mundo mineral:
ocorrido em março passado, o fatídico diálogo é, em primeiríssimo lugar, a
prova irrefutável do golpe em marcha, e apresenta inclusive as forças
envolvidas na trama. Ali se estabelece a premissa indispensável ao propósito do
“pacto”, derrubar Dilma.
Perguntei aos meus
estupefactos botões como haveria de revidar o poder togado à ameaça do poder
parlamentar. Mais, de que lado ficariam a casa-grande e a mídia nativa. Antes
que respondessem, Temer entra em cena e joga a carta do pacote econômico do
ministro Meirelles, o homem de todas as estações, a quem certamente não faltou
a colaboração de José Serra.
De quem recordo
uma frase retumbante, pronunciada na cozinha da minha casa, durante a campanha
eleitoral de 2002, enquanto jantávamos um risotto ai porcini: “Eu sou
muito mais de esquerda do que o Lula”.
Pois na tarde de
terça os economistas do governo interino, vendilhões do País, firmaram a
rendição ao mais cruel neoliberismo, a
doença que uma centena de multinacionais, especuladores e rentistas impõe ao
mundo para condenar à miséria a larga maioria e enriquecer mais e mais uma
ínfima minoria. Comedida, a mídia de quarta celebra em manchetes o corte de
gastos prometido pelo pacote e deixa em segundo plano a sua essência nefasta.
Convoco novamente
os botões: por quê? Parece óbvio que uma súbita dúvida assola a casa-grande. O
caminho do golpe tenderia a bifurcar-se, e a encruzilhada exige meditação
profunda ao tornar possível, quem sabe provável, uma escolha. Temer e o
Congresso ou Moro e o Supremo? A leitura dos jornalões induz os botões a
acentuarem a gravidade do momento e a dificuldade da opção.
Na quarta, a Folha
coloca em manchete o anúncio do corte dos gastos do governo e relega um
novo diálogo dos idos de março, entre o mesmo Machado e Renan
Calheiros, a uma chamada modesta na primeira página e relato na quarta.
Soletram os botões: mais uma conversação edificante para confirmar o golpe, o
pavor da Lava Jato de quem tem culpa em cartório e o envolvimento do Supremo na
grande tramoia urdida contra o Brasil.
A terceira conversa
gravada, entre machado e José Sarney, a menos significativa, revela apenas a
intenção do ex-presidente de livrar Machado do julgamento de Moro, ao mexer
pauzinhos não declinados.
CartaCapital preocupa-se com o destino do País brutalmente desigual e pratica o
jornalismo com honestidade e fidelidade canina à verdade factual. Fato é que o
governo Lula representa a quadra mais feliz na história do Brasil em termos de
paz e bem-estar interno e prestígio internacional.
O ex-metalúrgico
soube implementar um começo de política social e promover uma política exterior
independente. Contou com uma conjuntura mundial favorável, e este é fato, assim
como é fato que o PT no poder se portasse como todos os demais partidos.
Dilma Rousseff não
tem o carisma e o extraordinário tino político de Lula e cometeu erros graves
de pontos de vista variados. Em boa parte manteve, porém, as políticas sociais
do antecessor, ao meio de uma situação econômica cada vez mais adversa. Além
disso, trata-se de uma cidadã correta, corajosa e muito bem-intencionada.
Talvez um tanto ingênua, murmuram os botões.
Ouço-os, a
despeito do tom opaco: seria bom saber como reagiu às razões de João Roberto Marinho,
chamado em Palácio para escutar queixas em relação à constante agressividade
global, sempre disposta a inventar, omitir e mentir.
Sustentou então o
herdeiro do nosso colega Roberto não mandar nos seus empregados jornalistas,
livres de propalar o que bem entendem, e, de resto, não ter condições de
impedir o efeito manada na direção do golpe. Que fez a presidenta? Caiu das
nuvens? Respondeu à altura a tamanha desfaçatez? De todo modo, como se deu que
pudesse esperar por outro comportamento?
Cabem mais
interrogações: que disse Dilma ao chamar o presidente do STF para discutir as
posições do Supremo na perspectiva do golpe e ouvir a reivindicação de aumento
de salário? A situação se apinha de dúvidas e incógnitas. Por exemplo. Os
efeitos do pacote econômico, bastante agradáveis para a casa-grande, são
altamente daninhos para um povo acostumado há tempo a manifestar sua
insatisfação por ruas e praças.
Outra incógnita
diz respeito ao inter do processo de impeachment, a prever no
espaço máximo de 180 dias a sessão definitiva do Senado, presidida pelo
ministro Lewandowski, não se sabe se já premiado pelo invocado aumento.
Na entrevista a CartaCapital
da edição passada, a presidenta afastada referia-se à possibilidade de
conquistar seis votos no Senado, de sorte a invalidar a maioria que a afastou.
De fato, basta reverter dois votos em relação ao resultado da primeira sessão.
A chance não teria crescido diante dos últimos, surpreendentes eventos?
Há quem volte a
falar em eleições gerais antecipadas, quem sabe para outubro de 2017. Solução
sensata demais para ser viável. Ideal mesmo, declaram soturnamente os botões,
seria refundar o Brasil, tão favorecido pela natureza e infelicitado fatalmente
por uma dita elite, prepotente, arrogante, hipócrita, corrupta, egoísta e
incompetente. Ah, sim, ignorante. E movida a ódio de classe.
Abandono-me ao
devaneio ao imaginar a convocação de uma Constituinte finalmente exclusiva. E
me vem à memória a lição de Raymundo Faoro, contida em um dos seus livros mais
recentes, A Assembleia Constituinte – A legitimidade recuperada.
Comenta Faoro a
crença de que “só revoluções vitoriosas podem convocar Constituintes”. E
emenda: “Na verdade, sempre que há crises ou colapso de uma ordem
constitucional, ela só se recompõe pela deliberação constituinte, a deliberação
constituinte do povo, se democrático o sistema a instituir”.
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