quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O INDIGESTO GOVERNO DE GESTÃO



O INDIGESTO  GOVERNO  DE  GESTÃO
1.As mais altas figuras da direita portuguesa estão envolvidas numa campanha política histérica, cujos limites não são ainda conhecidos. Nem os seus mais visíveis responsáveis políticos se têm distanciado dessa crispação estéril. Pode parecer estranho este acesso de passado, esta recaída autoritária de muitos que pareciam imbuídos de uma normal urbanidade democrática.  Mas a sua própria exaltação torna verosímil a ideia de que estão, no fundo, confrontados com o falhanço, para eles inesperado, da urdidura que haviam tecido para poderem governar, mesmo que não mantivessem a maioria absoluta anterior.
Davam para isso como certa a continuidade da falta de entendimento das esquerdas entre si e como destinada a vencer a pressão que iriam fazer sobre o PS para conceder à direita  condições de governabilidade. Para isso, o essencial era que a coligação tivesse mais votos do que o PS, objetivo dado como possível (ao contrário da repetição da maioria absoluta), que realmente alcançaram.
Como sabemos, apesar de terem conseguido isso, a realidade de outros factos ocorridos esvaziou esse  golpe subtil, deixando a direita perante o dilema de desistir ou de insistir desesperadamente nele, mesmo numa versão grosseira dificilmente admissível, à luz dos menos exigentes padrões europeus da legitimidade democráticas. Não desistiram, mergulhando nas águas desiludidas da sua própria frustração, ao protagonizarem o tosco festival em curso. Uma campanha que, para além da exuberância trovejante dos insultos e da intensidade dramática das poses, é um catálogo farto de distorções conceptuais e de deturpações factuais.
Hoje, vou discutir as questões que rodeiam a problemática do chamado governo de gestão, que um desafinado coro de vozes pífias vai trazendo para a ribalta política como coisa boa, ou pelo menos aceitável.
2. Mas essa promoção mediática tem sido mergulhada num festival de superficialidades e de imprecisões que lança no espaço público uma confusão apreciável. Não vou evidentemente recorrer às entarameladas considerações dos constitucionalistas de telejornal, quase sempre fieis a uma banalidade sólida, que apenas agravam esse clima insalubre ( é claro, que existem algumas poucas e honrosas exceções, entre as quais destaco Jorge Reis Novais ( da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), pelo rigor, pela clareza , pela frontalidade das posições que toma).
Vou seguir dois constitucionalistas da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Gomes Canotilho e Vital Moreira, de cuja alta competência em matéria constitucional só podem duvidar os ignorantes ou os fanáticos. Vou segui-los na 4ª edição revista (Vol. II) da sua “Constituição da República Portuguesa – Anotada” (Coimbra Editora, 2010).
Como se pode ler na anotação X ao art.º 186, “ o ciclo de vida normal de um Governo divide-se em três períodos (ou fases) ”. “ O 1º período é iniciado pela nomeação e posse do PM (…) e vai até á apreciação do programa do governo na AR; neste primeiro período o Governo tem poderes limitados “aos atos estritamente necessários” [ “para assegurar a gestão dos negócios públicos”] ( nº5) (pag.432).
E continuam:“ O 2º período inicia-se com a conclusão da apreciação do programa do Governo ─ se este não for rejeitado (pois neste caso o Governo não passa a esta nova fase)  ─, sendo o período de pleno exercício de funções por parte do Governo; este período, cujo horizonte máximo é o da legislatura em curso, termina necessariamente com a demissão do Governo (se não for por outro motivo, pelo menos com o início de nova legislatura).”
Prosseguem: “ O 3º período é o que se segue à demissão, por qualquer dos motivos que a podem provocar, passando o governo demitido a ter de novo poderes limitados, tal como na fase vestibular, esta fase terminal durará o tempo necessário para constituir novo Governo e até á tomada de posse do seu PM.”
E concluem:” Naturalmente, se o Governo vir rejeitado o seu programa na AR, não entra na 2ª fase, passando diretamente da 1ª para a 3ª, nunca chegando a funcionar como governo pleno, no exercício das respetivas funções constitucionais” (pag.432).
É neste tipo de governo que se integra o atual governo de Passos Coelho. Por isso, ele não é um verdadeiro governo de gestão, mas sim um governo abortado, um governo que não chegou a atingir a sua maturidade, a sua vigência plena. É um projeto de governo, cujo processo de formação não ficou completo. É um governo normal que não conseguiu atingir  a plenitude. Não é um governo de gestão, é um governo de competências constitucionalmente diminuídas, e por isso mesmo estruturalmente transitório, fruto de circunstâncias objetivas incontornáveis. Não está concebido como um tipo autónomo de governo a que o PR possa recorrer se lhe aprouver. É, repito, um governo que viu interrompido o processo que o conduziria à plenitude. É, nessa medida, um governo falhado que não pode existir para além do circunstancialismo que o suscitou.
3. Mas se, por absurdo, o PR insistisse em mantê-lo, através da não indigitação de um novo Governo, esse Governo normal abortado, nunca poderia exceder o âmbito a que expressamente a CRP o confina, quando considera que esse tipo de “Governo limitar-se-á à prática de atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos” (art.º 186- nº 5).
Quanto ao sentido a atribuir a esta expressão, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira: “O preceito não estabelece nenhum limite quanto à natureza dos atos, podendo portanto ser praticados atos de qualquer tipo (sem excluir os de natureza legislativa) e não apenas os de “gestão corrente”. Ponto é que, qualquer que seja a sua natureza, eles sejam “estritamente necessários”). E continuam: “ O conceito de estrita necessidade é suficientemente enfático para exigir uma definição bastante exigente. Essa definição há de encontrar-se fundamentalmente a partir de dois índices: (a) importância significativa dos interesses em causa, em tais termos que a omissão do ato afetasse de forma relevante a gestão dos negócios públicos, b) inadiabilidade, ou seja, impossibilidade de, sem grave prejuízo, deixar a resolução do assunto para o novo Governo (…). E acrescentam: “ O princípio da necessidade apresenta-se assim suficientemente densificado para servir de parâmetro de aferição da legitimidade dos atos de um Governo demitido (…) inclusive para efeitos de controle da respetiva constitucionalidade e legalidade. Dadas as imposições constitucionais, é de exigir a fundamentação da necessidade dos atos de Governo nessas condições” (pag.431).
Os autores lembram depois que os governos demitidos veem caducar as autorizações legislativas que pediram à AR, bem como as propostas de lei ali pendentes. E concluem: “ Os governos demitidos não ficam isentos da fiscalização parlamentar (desde logo quanto ao respeito pelos limites da sua ação) mas não podem exercer podres cujo exercício dependa da AR. O PR exerce também as funções de controlo da constitucionalidade destes atos estritamente necessários para assegurar a gestão de negócios públicos mediante os poderes de promulgação, assinatura e veto.”
Ou seja, se o PR teimasse em manter o atual Governo em funções, fá-lo-ia ao arrepio da Constituição, afrontando diretamente uma maioria de deputados na AR o que equivaleria a afrontar o órgão no seu todo. O Governo com poderes diminuídos saído dessa agressão á AR, suscitaria natural e legitimamente uma posição de resposta da AR que se estaria afinal a defender. O PR não podia humilhar a AR, para depois lhe pedir cooperação institucional; e não disporia até ao fim do seu mandato do poder de a dissolver.
O Governo ficaria á mercê de uma maioria parlamentar, contra a qua ele era em si uma afronta, pelo simples facto de existir. Ficaria praticamente tolhido, o país sem liderança política e mergulhado numa guerra institucional, facilmente convertível numa conflitualidade social de alta intensidade. Tudo isto, num contexto político-económico em que o país não teria sequer um orçamento de Estado aprovado. O fantasma grego poderia assim vir a assombrar-nos, não pela mão das esquerdas, mas por força das decisões do PR, como protagonista central de uma direita que o seguira.
4. Não estaríamos, portanto perante um verdadeiro governo de gestão, mas sim perante o uso abusivo de um governo abortado prolongado artificialmente para além da duração para que foi concebido. Por isso, quem se refira ao governo atual como um legítimo governo de gestão constitucionalmente legítimo está equivocado. As autoridades políticas que decidirem com base nesse equívoco estão a afrontar grosseiramente a Constituição, abrindo a porta a serem juridicamente responsabilizadas; e até talvez gerando um direito de resistência por parte dos que se sentirem agredidos.
De facto, continuando na esteira dos dois constitucionalistas acima citados, em regra :1. –“os governos são constituídos sem prazo para durarem até ao termo da legislatura”; 2. – e “são constituídos para exercerem os poderes constitucionais normais (salvo se foram demitidos logo pela  AR, com a rejeição do programa de Governo)”. Mas, acrescentam logo de seguida que: “podem as circunstâncias políticas determinar a constituição de governos a prazo mais ou menos certo (que se poderão designar por governos intercalares) e com poderes mais ou menos limitados ou especificados (ditos governos de gestão). Trata-se normalmente de governos como solução de recurso ou de transição ─” governos interinos”─, na impossibilidade de constituir governos “normais”, e por via de regra, formados para gerir negócios públicos na sequência de crises de governo e na pendência de eleições parlamentares que possam propiciar novas condições políticas”( pag.432).
Como se vê, mesmo a opção por um verdadeiro governo de gestão é uma via que se não adequa á situação que atualmente se vive em Portugal. E essa inadequação é tento mais clara quanto como lembram os autores que venho seguindo: “Naturalmente, apesar das suas características especiais, estes governos não deixam de passar pelo mesmo ciclo vital que a Constituição prevê para todos os governos, embora com as limitações decorrentes do modo da sua formação e do seu caracter transitório e de “recurso”. ( pag.432).
Isto é, um governo de gestão pressupõe um acordo prévio entre o PR e uma maioria de deputados na AR, sem o qual nem sequer entraria em funções por poder ser rejeitado. Deste modo, um governo de gestão que surja contra uma maioria parlamentar sujeita-se a não chegar sequer a nascer.
E assim não só a situação atual não justifica uma solução deste tipo, uma vez que há um possível governo que tem apoio maioritário no atual parlamento, mas também se o PR o tentasse impor contra uma maioria de deputados como seria o caso não teria qualquer hipótese de iniciar funções.

5. O que acabo de escrever mostra que nem o atual governo chega a ser  um verdadeiro governo de gestão, nem um governo de gestão seria viável na conjuntura presente. Mostra também que, na hipótese absurda de o PR insistir neste equívoco, de continuidade do Governo com poderes diminuídos atualmente em funções, ele estaria politicamente tolhido e incapaz de governar. Desse modo o PR estaria a ir contra os superiores interesses nacionais, contra a Constituição, contra a maioria dos deputados eleitos em outubro passado, contra a estabilidade política, contra a previsibilidade económica. Enfim, seria um desastre. 

Sem comentários: