O INDIGESTO GOVERNO
DE GESTÃO
1.As
mais altas figuras da direita portuguesa estão envolvidas numa campanha
política histérica, cujos limites não são ainda conhecidos. Nem os seus mais
visíveis responsáveis políticos se têm distanciado dessa crispação estéril.
Pode parecer estranho este acesso de passado, esta recaída autoritária de
muitos que pareciam imbuídos de uma normal urbanidade democrática. Mas a sua própria exaltação torna verosímil a ideia
de que estão, no fundo, confrontados com o falhanço, para eles inesperado, da
urdidura que haviam tecido para poderem governar, mesmo que não mantivessem a
maioria absoluta anterior.
Davam
para isso como certa a continuidade da falta de entendimento das esquerdas
entre si e como destinada a vencer a pressão que iriam fazer sobre o PS para
conceder à direita condições de
governabilidade. Para isso, o essencial era que a coligação tivesse mais votos
do que o PS, objetivo dado como possível (ao contrário da repetição da maioria
absoluta), que realmente alcançaram.
Como
sabemos, apesar de terem conseguido isso, a realidade de outros factos ocorridos
esvaziou esse golpe subtil, deixando a
direita perante o dilema de desistir ou de insistir desesperadamente nele,
mesmo numa versão grosseira dificilmente admissível, à luz dos menos exigentes
padrões europeus da legitimidade democráticas. Não desistiram, mergulhando nas
águas desiludidas da sua própria frustração, ao protagonizarem o tosco festival
em curso. Uma campanha que, para além da exuberância trovejante dos insultos e
da intensidade dramática das poses, é um catálogo farto de distorções
conceptuais e de deturpações factuais.
Hoje,
vou discutir as questões que rodeiam a problemática do chamado governo de
gestão, que um desafinado coro de vozes pífias vai trazendo para a ribalta
política como coisa boa, ou pelo menos aceitável.
2.
Mas essa promoção mediática tem sido mergulhada num festival de
superficialidades e de imprecisões que lança no espaço público uma confusão
apreciável. Não vou evidentemente recorrer às entarameladas considerações dos
constitucionalistas de telejornal, quase sempre fieis a uma banalidade sólida,
que apenas agravam esse clima insalubre ( é claro, que existem algumas poucas e
honrosas exceções, entre as quais destaco Jorge Reis Novais ( da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa), pelo rigor, pela clareza , pela
frontalidade das posições que toma).
Vou
seguir dois constitucionalistas da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, Gomes Canotilho e Vital Moreira, de cuja alta competência em matéria
constitucional só podem duvidar os ignorantes ou os fanáticos. Vou segui-los na
4ª edição revista (Vol. II) da sua “Constituição
da República Portuguesa – Anotada” (Coimbra Editora, 2010).
Como
se pode ler na anotação X ao art.º 186, “ o ciclo de vida normal de um Governo
divide-se em três períodos (ou fases) ”. “ O 1º período é iniciado pela
nomeação e posse do PM (…) e vai até á apreciação do programa do governo na AR;
neste primeiro período o Governo tem poderes limitados “aos atos estritamente
necessários” [ “para assegurar a gestão dos negócios públicos”] ( nº5)
(pag.432).
E
continuam:“ O 2º período inicia-se com a conclusão da apreciação do programa do
Governo ─ se este não for rejeitado (pois neste caso o Governo não passa a esta
nova fase) ─, sendo o período de pleno
exercício de funções por parte do Governo; este período, cujo horizonte máximo
é o da legislatura em curso, termina necessariamente com a demissão do Governo (se
não for por outro motivo, pelo menos com o início de nova legislatura).”
Prosseguem:
“ O 3º período é o que se segue à demissão, por qualquer dos motivos que a
podem provocar, passando o governo demitido
a ter de novo poderes limitados, tal como na fase vestibular, esta fase
terminal durará o tempo necessário para constituir novo Governo e até á tomada
de posse do seu PM.”
E
concluem:” Naturalmente, se o Governo vir rejeitado o seu programa na AR, não
entra na 2ª fase, passando diretamente da 1ª para a 3ª, nunca chegando a
funcionar como governo pleno, no exercício das respetivas funções
constitucionais” (pag.432).
É
neste tipo de governo que se integra o atual governo de Passos Coelho. Por
isso, ele não é um verdadeiro governo de gestão, mas sim um governo abortado,
um governo que não chegou a atingir a sua maturidade, a sua vigência plena. É
um projeto de governo, cujo processo de formação não ficou completo. É um
governo normal que não conseguiu atingir a plenitude. Não é um governo de gestão, é um
governo de competências constitucionalmente diminuídas, e por isso mesmo estruturalmente
transitório, fruto de circunstâncias objetivas incontornáveis. Não está
concebido como um tipo autónomo de governo a que o PR possa recorrer se lhe
aprouver. É, repito, um governo que viu interrompido o processo que o
conduziria à plenitude. É, nessa medida, um governo falhado que não pode
existir para além do circunstancialismo que o suscitou.
3.
Mas se, por absurdo, o PR insistisse em mantê-lo, através da não indigitação de
um novo Governo, esse Governo normal abortado, nunca poderia exceder o âmbito a
que expressamente a CRP o confina, quando considera que esse tipo de “Governo
limitar-se-á à prática de atos estritamente necessários para assegurar a gestão
dos negócios públicos” (art.º 186- nº 5).
Quanto
ao sentido a atribuir a esta expressão, escrevem Gomes Canotilho e Vital
Moreira: “O preceito não estabelece nenhum limite quanto à natureza dos atos, podendo portanto ser praticados atos de qualquer
tipo (sem excluir os de natureza legislativa) e não apenas os de “gestão
corrente”. Ponto é que, qualquer que seja a sua natureza, eles sejam
“estritamente necessários”). E continuam: “ O conceito de estrita necessidade é
suficientemente enfático para exigir uma definição bastante exigente. Essa
definição há de encontrar-se fundamentalmente a partir de dois índices: (a)
importância significativa dos interesses em causa, em tais termos que a omissão
do ato afetasse de forma relevante a gestão dos negócios públicos, b)
inadiabilidade, ou seja, impossibilidade de, sem grave prejuízo, deixar a
resolução do assunto para o novo Governo (…). E acrescentam: “ O princípio da
necessidade apresenta-se assim suficientemente densificado para servir de
parâmetro de aferição da legitimidade dos atos de um Governo demitido (…)
inclusive para efeitos de controle da respetiva constitucionalidade e
legalidade. Dadas as imposições constitucionais, é de exigir a fundamentação da
necessidade dos atos de Governo nessas condições” (pag.431).
Os
autores lembram depois que os governos demitidos veem caducar as autorizações
legislativas que pediram à AR, bem como as propostas de lei ali pendentes. E
concluem: “ Os governos demitidos não ficam isentos da fiscalização parlamentar
(desde logo quanto ao respeito pelos limites da sua ação) mas não podem exercer
podres cujo exercício dependa da AR. O PR exerce também as funções de controlo
da constitucionalidade destes atos estritamente necessários para assegurar a
gestão de negócios públicos mediante os poderes de promulgação, assinatura e
veto.”
Ou
seja, se o PR teimasse em manter o atual Governo em funções, fá-lo-ia ao
arrepio da Constituição, afrontando diretamente uma maioria de deputados na AR
o que equivaleria a afrontar o órgão no seu todo. O Governo com poderes
diminuídos saído dessa agressão á AR, suscitaria natural e legitimamente uma
posição de resposta da AR que se estaria afinal a defender. O PR não podia
humilhar a AR, para depois lhe pedir cooperação institucional; e não disporia
até ao fim do seu mandato do poder de a dissolver.
O
Governo ficaria á mercê de uma maioria parlamentar, contra a qua ele era em si
uma afronta, pelo simples facto de existir. Ficaria praticamente tolhido, o
país sem liderança política e mergulhado numa guerra institucional, facilmente
convertível numa conflitualidade social de alta intensidade. Tudo isto, num
contexto político-económico em que o país não teria sequer um orçamento de
Estado aprovado. O fantasma grego poderia assim vir a assombrar-nos, não pela
mão das esquerdas, mas por força das decisões do PR, como protagonista central
de uma direita que o seguira.
4.
Não estaríamos, portanto perante um verdadeiro governo de gestão, mas sim
perante o uso abusivo de um governo abortado prolongado artificialmente para
além da duração para que foi concebido. Por isso, quem se refira ao governo atual
como um legítimo governo de gestão constitucionalmente legítimo está
equivocado. As autoridades políticas que decidirem com base nesse equívoco
estão a afrontar grosseiramente a Constituição, abrindo a porta a serem
juridicamente responsabilizadas; e até talvez gerando um direito de resistência
por parte dos que se sentirem agredidos.
De
facto, continuando na esteira dos dois constitucionalistas acima citados, em
regra :1. –“os governos são constituídos sem prazo para durarem até ao termo da
legislatura”; 2. – e “são constituídos para exercerem os poderes
constitucionais normais (salvo se foram demitidos logo pela AR, com a rejeição do programa de Governo)”.
Mas, acrescentam logo de seguida que: “podem as circunstâncias políticas
determinar a constituição de governos a prazo mais ou menos certo (que se
poderão designar por governos
intercalares) e com poderes mais ou menos limitados ou especificados (ditos
governos de gestão). Trata-se
normalmente de governos como solução de recurso ou de transição ─” governos
interinos”─, na impossibilidade de constituir governos “normais”, e por via de
regra, formados para gerir negócios públicos na sequência de crises de governo
e na pendência de eleições parlamentares que possam propiciar novas condições
políticas”( pag.432).
Como
se vê, mesmo a opção por um verdadeiro governo de gestão é uma via que se não
adequa á situação que atualmente se vive em Portugal. E essa inadequação é
tento mais clara quanto como lembram os autores que venho seguindo:
“Naturalmente, apesar das suas características especiais, estes governos não
deixam de passar pelo mesmo ciclo vital que a Constituição prevê para todos os
governos, embora com as limitações decorrentes do modo da sua formação e do seu
caracter transitório e de “recurso”. ( pag.432).
Isto
é, um governo de gestão pressupõe um acordo prévio entre o PR e uma maioria de
deputados na AR, sem o qual nem sequer entraria em funções por poder ser
rejeitado. Deste modo, um governo de gestão que surja contra uma maioria
parlamentar sujeita-se a não chegar sequer a nascer.
E
assim não só a situação atual não justifica uma solução deste tipo, uma vez que
há um possível governo que tem apoio maioritário no atual parlamento, mas
também se o PR o tentasse impor contra uma maioria de deputados como seria o
caso não teria qualquer hipótese de iniciar funções.
5.
O que acabo de escrever mostra que nem o atual governo chega a ser um verdadeiro governo de gestão, nem um
governo de gestão seria viável na conjuntura presente. Mostra também que, na
hipótese absurda de o PR insistir neste equívoco, de continuidade do Governo
com poderes diminuídos atualmente em funções, ele estaria politicamente tolhido
e incapaz de governar. Desse modo o PR estaria a ir contra os superiores
interesses nacionais, contra a Constituição, contra a maioria dos deputados
eleitos em outubro passado, contra a estabilidade política, contra a
previsibilidade económica. Enfim, seria um desastre.
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