sexta-feira, 29 de maio de 2015

UM LIVRO, DOIS POEMAS - 12


 
Vou hoje partilhar convosco dois poemas de Cesário Verde, poeta português, nascido em 1855 em Lisboa, cidade onde viria a morrer em 1886. Foi vitimado pela tuberculose com pouco mais de 30 anos.

 O realismo que surpreendemos nele incorpora um olhar crítico e cosmopolita sobre a sociedade, tendo a ductilidade suficiente para se fundir com um  romantismo contido e aberto à presença de uma natureza campestre, em que por vezes o poeta parece descansar.

Em Abril de 1887,menos de um ano depois da morte do poeta, foi publicado em Lisboa, numa edição de 200 exemplares, “O Livro de Cesário Verde” que pela primeira vez reunia poemas antes apenas saídos em jornais e revistas. Deveu-se ao seu grande amigo Silva Pinto, apoiado pela família de Cesário Verde, esta edição, que viria a ser o essencial da obra do poeta.

Vamos hoje difundir dois poemas: “Avé-Marias” e “De Tarde”. O primeiro é dedicado a Guerra Junqueiro, abrindo uma pequena série de poemas ─ ”O Sentimento dum Ocidental” ─, onde se lhe seguem, “Noite Fechada”, “Ao Gás” e  “Horas Mortas”. É um poema que nos fala magistralmente de Lisboa, numa abordagem realista que, num colorido de detalhes que nos tocam, sabe sugerir o essencial, colocando-nos na sociedade de então. O segundo, publicado apenas postumamente, reflete a difícil simplicidade de um certo romantismo campestre, onde talvez se surpreenda uma subtil e discreta ironia, que o poeta parece não querer que apouque ou que agrida.

 

 AVÉ-MARIAS

      Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
 

      O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina
 

     Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países;
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!


       Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga os mestres carpinteiros.


      Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.


      E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!


      E o fim de tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.


      Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
   

      Vazam-se os arsenais e as oficinas
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
 

       Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
 

      Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
 

 
 
                                    DE  TARDE

Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!


segunda-feira, 25 de maio de 2015

UM LIVRO,UM POEMA - 11


Hoje vamos recordar um poema emblemático do grande poeta brasileiro Manuel Bandeira [ Recife, 19 de abril de 1886Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968]. O livro de onde transcrevo o poema está incluído  numa edição  de 1956, da Editorial Minerva ( Lisboa)." Obras Poéticas " é o título.                
No prefácio, de um algo inesperado Henrique Galvão, comenta-se e procura contextualizar-se a poesia de Manuel Bandeira.  Sucedem-se, ao longo de mais de quatrocentas páginas, vários  livros do autor até então publicados: A Cinza das Horas, Carnaval, O Ritmo Dissoluto, Libertinagem, Estrela da Manhã, Lira dos Cinquent'Anos, Belo  Belo e Opus 10.
 
Lembremos então o poema.
 
Vou-me embora pra Pasárgada



Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada



Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive



E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau de sebo
Tomarei banho de mar !
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada



Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar



E quando eu estiver mais triste
Mais triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

domingo, 24 de maio de 2015

UM LIVRO, DOIS POEMAS - 10


Hoje, o livro  escolhido é de Sidónio Muralha , “Poemas”, publicado pela Editorial Inova ( Porto) em 1971, onde se integram os livros até então por si dados à estampa.
O autor nasceu a 28 de Julho de 1920, no bairro da Madragoa, em Lisboa. Em 1943, emigra para o Congo  belga. No ano de 1960,  regressa à Europa fixando residência em Bruxelas durante dois anos.
No início dos anos 60, Sidónio Muralha chega ao Brasil, país em que viria a viver até ao fim da vida. Aí funda a Editora Giroflé, criando um novo padrão para as publicações dirigidas às crianças. Morre em Curitiba, capital do Estado do Paraná, a 8 de dezembro de 1982.
Em 1941, publica o seu primeiro livro de poemas : Beco. No ano seguinte, participa no Novo Cancioneiro, coleção emblemática do neorrealismo, com um novo livro : Passagem de Nível. Os dois poemas  hoje aqui recordados fazem parte deste livro.
 
 
SONETO  IMPERFEITO  DA CAMINHADA PERFEITA
 
Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é um bandeira desfraldada.
 
Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
─ O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas
 
 
Versos brandos… Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
 
que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
 
ROMANCE
´
 
Depois daquela noite os teus seios incharam;
as tuas ancas alargaram-se;
e os teus parentes admiraram-se
e falaram, falaram…
 
Porque falaram duma coisa tão bela,
tão simples, tão natural ?
Tu não parias uma estrela,
nem uma noite de vendaval …
 
Mas tudo terminou porque falaram.
Tu fraquejaste e tudo terminou.
─ Os teus seios desincharam;
só a tristeza ficou.
 
Ficou a tristeza duma coisa tão bela,
tão simples, tão natural…
 
─ Tu não parias uma estrela,
nem uma noite de vendaval...
 
 
 

terça-feira, 19 de maio de 2015

Convite


domingo, 17 de maio de 2015

UM LIVRO, ALGUNS POEMAS - 9


 


PABLO  NERUDA

Após algum tempo de pausa, regressa a série “um livro, um poema”. Talvez menos regular, mas mais prolongada. Dar-lhe-ei como título, de agora em diante, “Um livro, alguns poemas”, quando se der o caso difundir, numa só postagem, mais do que um poema
 Regresso com um poeta chileno, mas universal. De uma universalidade que chegou ao coração dos povos, antes de ter conduzido Pablo Neruda, ao clube restrito dos que conquistaram o Prémio Nobel da Literatura, em 1971. Um poeta que teceu uma épica emancipatória, enraizada no sofrimento dos explorados e dos oprimidos, exprimindo-a na paisagem calorosa das suas palavras, irmãs de planícies e de montanhas, e da larga respiração da esperança.
Regresso com um livro lendário ─ “Los versos del capitan” ─, publicado pela primeira vez em 1952, em Nápoles, numa edição restrita com omissão da identidade do autor.
 É um livro de júbilo e homenagem que tem as suas raízes num amor que se supõe concreto. São poemas de amor que não se deixam aprisionar na mulher que os inspira, porque constantemente fazem passar através dela, do seu corpo construído pelas palavras mágicas do poeta, o marulhar profundo da cólera dos povos.
Abre-o uma carta vinda de Havana, datada de outubro de 1951, escrita pela suposta musa que fez nascer o livro, Rosario De La Cerda. Como elemento da própria ocultação da identidade do autor, diz-nos ela: “Lamento não poder indicar o seu nome. Nunca soube qual era o verdadeiro, se Martinez, Ramirez ou Sanchez. Eu chamo-o simplesmente meu Capitão e este é o nome que quero conservar neste livro.”
Numa explicação, datada de novembro de 1963 (Isla Negra)  que abre a edição publicada na Argentina pela Editorial Losada, em 1964, escreveu Pablo Neruda :        “ Entrego, pois, este livro sem explicá-lo mais, como se fosse meu e não o fosse: basta que possa andar sozinho pelo mundo e crescer por sua conta. Agora que o reconheço espero que o seu sangue furioso me reconheça também.”
Vou hoje transcrever dois poemas de Pablo Neruda, extraídos de uma tradução em português de Albano Martins que a ambos dignifica. Esta edição do livro ”Os Versos do Capitão” foi publicada no Porto, pelo Campo das Letras, em 1996. Ei-los:


O OLEIRO


Há em todo o teu corpo
uma taça ou doçura a mim destinada.


Quando levanto a mão
encontro em cada lugar uma pomba
qua andava à minha procura, como
se te houvessem, meu amor, feito de argila
para as minhas mãos de oleiro.


Os teus joelhos, os teus seios,
a tua cintura,
faltam em mim como no côncavo
duma terra sedenta
a que retiraram
uma forma,
e, juntos,
estamos completos como um só rio,
como um só areal.

 
O TIGRE

 
Sou o tigre.
Espio-te entre as folhas
largas como lingotes
de mineral molhado.


O rio branco cresce
sob a névoa. Chegas.
Nua, mergulhas.
Espero.


Então, num salto
de fogo, sangue, dentes,
com uma pancada derrubo
teu peito, tuas ancas.



Bebo o teu sangue, despedaço-te
os membros um a um.


E fico a velar
durante anos, na selva,
teus osso, tua cinza,
imóvel, longe
do ódio e da cólera,
desarmado em tua morte,
enredado nos cipós,
imóvel à chuva,
sentinela implacável

do meu amor assassino.

sábado, 2 de maio de 2015

A CRISE DA DEMOCRACIA



  A crise da democracia

A crise da democracia é uma daquelas evidências excessivas que, servindo uma ou outra vez para esclarecer o obscuro, é muitas vezes usada para ocultar o óbvio.

Os mais ladinos capatazes da ideologia dominante usam a alegação dessa crise, principalmente, para corroer a legitimidade do poder político democrático, deixando assim à solta o poder de facto dos seus senhores, do capital financeiro e do seu séquito. A fragilidade da autovigilância crítica de alguns dos mais incendiados opositores afetivos do capitalismo faz com que, muitas vezes, inadvertidamente se associem, no essencial, aos supracitados capatazes.

No campo dos mais discretos e cautelosos, são inúmeras as tonalidades que assume a abordagem tolhida da chamada crise da democracia. Talvez seja acertado, no entanto, salientar, entre todos eles, aqueles que procuram responder a essa crise apenas com propostas, mais ou menos rebuscadas, de uma reforma das instituições do sistema político. Eles agem como se toda a crise em debate adviesse de uma deficiente qualidade da engenharia política utilizada na construção de cada um dos sistemas políticos existentes. Muitos deles, feridos por uma profunda ignorância jurídico-constitucional, deslizam para propostas obviamente toscas, que muitas vezes deixam inadvertidamente a descoberto um perfume fortemente autoritário. Usando a bandeira do combate à crise da democracia, mais não fariam do que agravá-la dramaticamente. Nesse mesmo registo, outros preconizam, para cada país, soluções que já vigoram noutros, com resultados idênticos aos que se querem evitar, menosprezando assim o facto de a chamada crise da democracia ocorrer em países com sistemas políticos de todos os tipos.

Ora, se é naturalmente evidente que, como tudo na vida, a democracia pode ser aperfeiçoada no plano das suas instituições, o que importa compreender é que as raízes mais fundas da sua crise não estão aí.

Numa abordagem sumária, poder-se-ia dizer que o cerne da crise da democracia está na sua autolimitação e na sua incompletude, como se a democracia só pudesse conservar o seu viço se mantivesse um ímpeto expansivo continuado que, além de a tornar  mais profunda em cada um dos seus aspetos, se fosse estendendo aos aspetos em que tem estado mais ausente.

 Ora, atualmente, a deriva autoritária, trazida no seu bojo pelo neoliberalismo, tem vindo a enfraquecer a democracia política, pela subalternização dos órgãos eleitos, em benefício dos poderes de facto do capital financeiro e seus acólitos. E, em perversa conjugação com essa anemia política crescente, tem bloqueado e contrariado tudo o que de democrático impregnava o social e tem procurado esconjurar, como pecado mortal, qualquer impregnação democrática da economia.

A crise da democracia não é pois o fruto natural de uma malandragem qualquer, de uma quadrilha oculta que sangra o sistema, de instituições politico-eleitorais tolhidas e inatuais para as quais qualquer cérebro medianamente dotado poderá encontrar em pouco tempo a solução milagrosa. É, isso sim, o fruto da não extensão da democracia aos aspetos sociais, económicos e culturais da vida em sociedade; e, em conjugação com isso, é também o fruto da corrosão da democracia política pelo agravar da deriva neoliberal sob a batuta do capital financeiro. Ou seja, quanto mais a lógica capitalista penetra na sociedade, quanto mais acossadas estiverem as lógicas distributivas e solidárias que, embora subalternas, se lhe opõem, mais a democracia está em perigo, maior é a sua crise.

Portanto, não menosprezando os aspetos consequenciais e colaterais  da crise da democracia, não nos esqueçamos nunca do que é essencial: o cerne da crise da democracia está na sua incompletude e na sua retração, ou seja, a crise da democracia é, fundamentalmente, um importante aspeto da hegemonia do capital financeiro, em contexto capitalista, expressa pelo neoliberalismo.