Na sequência do texto que coloquei ontem neste blog, volto à Primeira Exortação Apostólica do atual
Papa.
Numa
perspectiva histórica, está ainda fresca a cumplicidade da Igreja Católica para com o salazarismo.
Não deve ser esquecida. Tal como
deve ser recordada a Santa Inquisição. Mas também não devem ser esquecidos os muitos católicos que, ao arrepio da hierarquia da sua Igreja, estiveram do lado
certo da História, partilhando a resistência com muitos e muitos portugueses que
nunca se conformaram com o fascismo português.
Mas, se não há que branquear as complacências
de quem quer que seja, em face das derivas opressivas que aflijam os povos,
seria estulto não acolher com júbilo as novas solidariedades na denúncia de uma
degradação neoliberal do capitalismo que, tornando-se mais e mais insuportável
para as suas vítimas maiores, exclui o tipo de sociedade em que nos estamos a transformar da legitimidade ética. De uma legitimidade ética gerada pela cultura como expressão consensual de um humanismo,
para onde convergiram várias ideologias e várias obediências religiosas. Que o
Papa se sinta impelido a ser uma testemunha do mundo todo e em especial dos que
mais sofrem, afastando-se com clareza do cartel dos poderes de facto que sorvem
as nossas vidas, só pode ser um acontecimento maior.
E isto obriga
também os agentes políticos colectivos, cuja existência tem na base a
resistência ao capitalismo e a ambição histórica de apressar a caminhada para
um mundo diferente, para um pós-capitalismo, a reexaminarem o cerne das suas
posições, a reapreciarem a medida em que o futuro impregna de facto como esperança as suas posições políticas como seria lógico. Mas se este desafio
envolve em primeira linha partidos e sindicatos, não deixa de fora cada militante
individualmente considerado, cada cidadão que se sinta parte do povo de
esquerda.
De facto, nada
de mais irónico ( e de mais trágico) do que as esquerdas (ou algumas delas),
descobrirem que a modorra ideológica e política em que se deixaram cair tenha
levado a que acordem um belo dia à direita do Papa.
Mas, vamos ao
substancial: analisemos com atenção mais um extrato do documento papal acima
referido e já ontem aqui parcelarmente transcrito:
“Assim como o mandamento «não
matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também
hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por
enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de
dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se
lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade
social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte,
onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes
massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem
perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo
que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do
«descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do
fenómeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão,
fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive
nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos
não são «explorados», mas resíduos, «sobras».
Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar.