Atribuíram a José Sócrates (e ele já a confirmou) uma frase sobre a dívida de países como o nosso que suscitou um uivo generalizado na matilha mediática que infesta o espaço público. Mesmo gente, que se pretende exterior à filarmónica neoliberal, acabou por sentir-se obrigada a soltar ao menos um débil latido, temerosa da terrível acusação de ter ficado alheia a uma tão ampla uivaria.
O sentido da frase não terá andado longe da ideia de que nestes casos não se trata de planear uma liquidação completa e abrupta da dívida pública de cada Estado, mas de gerir com inteligência o seu montante. Ou seja, foi apenas sublinhado o óbvio. Algo, aliás, que está em harmonia com o que todos os países com dívida pública fazem (quantos a não têm?), normalmente. Por isso, o que é estranho não é que a frase tenha sido dita, mas que tantos caniches mediáticos se tenham precipitado de supetão, em tão insólito alarido.
Na verdade, imaginemos por absurdo que o Presidente dos USA manifestava publicamente a sua intenção de fazer baixar a zero nos próximos três meses a dívida pública americana, com a firmeza de quem vai realmente fazer aquilo que diz. Seguramente que, em menos de 48 horas, ele estaria internado num hospício psiquiátrico com forte medicação.
Por isso, insisto, a verdadeira notícia não é a frase atribuída a José Sócrates, mas o histérico ruído por ela suscitado. Ruído, aliás, suficientemente estranho para nos fazer desconfiar que, sendo demasiado estúpido que ele derive apenas do que nos quer fazer crer, na sua raiz só pode estar uma razão oculta.
E, entre todas essas possíveis razões, há uma que me ocorre como a mais provável: o oligopólio ideológico-financeiro que dirige e assombra o mundo, hoje especialmente concentrado em fazer esvair-se a Europa, precisa de transformar uma situação que dura há décadas (e que tem sido gerida com méritos e graus de êxito diferentes, mas com poucas rupturas), numa perversidade intrínseca dos povos envolvidos e numa fragilidade dos respectivos governos, pela pouca energia com que garroteiam esses povos. Ou seja, o criminoso precisa de inculcar na vítima a ficção da culpa desta, para lhe diminuir a resistência e garantir a impunidade própria.
Outrora, para os cristãos, a usura era um pecado grave, mas a dívida não usurária das pessoas era motivo de prisão. Tendo, entretanto, a usura recebido da ideologia dominante um atestado de virtude, ao mesmo tempo que as dívidas dos Estados são dia após dia mais e mais demonizadas, receio que possa chegar o tempo em que, tal como antigamente, se fechavam nas masmorras os devedores individuais, se queira ver regressados os velhos campos de concentração para se fecharem lá impiedosamente os povos dos Estados devedores.
E até chego a suspeitar que, quando esta ideia final chegar à superfície da insalubre atmosfera mediática que nos intoxica, a matilha de sombra que agora tanto uivou, ronronará submissa junto dos pés dos donos, melífluos elogios, deslumbradas concordâncias e frondosos aplausos.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
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1 comentário:
Rui, existe uma imprecisão como o Sócrates usa os termos de índole económica, e não de agora. Mas pior do que isso é constatar a linguagem pobre e vulgar com profere a conferência. Não é muito próprio de um ex-Primeiro Ministro. Enfim, um dia infeliz.
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