quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

OS DOIS CAVACOS

A campanha para as eleições presidenciais continua a rolar, tão discretamente quanto possível, ao sabor dos poderes fácticos mediático-conservadores.

Nela deslizam dois Cavacos. Um, luminoso e institucional rodeado de figuras públicas, banhado melancolicamente pelo fado, desportivo entre os jovens, ostentando os galões de uma alegada competência como economista, piedoso perante as desgraças, vertendo uma lágrima furtiva pelos pobres e abandonados, avô de todas as crianças, moderníssimo na sofreguidão do ciberespaço. É o nosso presidente a navegar através das nossas angústias como um barco de serenidade. Arauto imodesto das suas vastíssimas virtudes é a segurança em forma de gente, embrulhada na bandeira nacional. É o vencedor coroado passando continuamente pelo seu arco do triunfo.

Mas há um o outro que, pouco a pouco, se vai afirmando como a sombra indelével do anterior. É um Cavaco hirto, tropeçando tenso nas palavras, escondendo ex-amigos debaixo do tapete, ficcionando glórias de governo num esforço para apagar a memória dos atalhos, por onde nos conduziu. Desliza como um felino pelas dificuldades da conjuntura, feroz e hipócrita para com os adversários internos, ronronante bichano perante os poderes fácticos internacionais que querem pôr um garrote no futuro do nosso país. Percorre os territórios densos da cultura, com o visível embaraço dos visitantes acidentais. Quando a pressão aperta, deixa vir à superfície a marca ostensiva da direita histórica que tão meticulosamente tem guardado no baú dos seus segredos.


Caminha através do seu própio discurso como se fugisse dele. As suas palavras são folhas secas que desenham outonos, mesmo quando revestidas pela previsibilidade do jargão mediático e pelo que há de mais “kitsch” no senso comum. As agências de imagem fazem tudo para o salvar. Em vão. As suas palavras atropelam-se com mais frequência, os seus gestos tornam-se mais hirtos, os seus discursos vivem em labirinto. As agências de imagem não desistem: esvaziaram-no meticulosamente da sua incerta humanidade, da contingente carne e do incómodo sangue. E aí está um candidato empalhado, movendo-se aos soluços numa sofreguidão de votos, distante de si próprio, reinventado pela direita numa saudade mórbida.

Estas dois Cavacos caminham a par no trajecto para as eleições presidenciais. O mais luminoso foge metodicamente da sombra que o persegue. O mais lunar não abandona a presa; e, como sombra que é, está sempre próximo e ameaçador.

Talvez não cheguem a encontrar-se, mas se isso vier a acontecer, o mais provável é que se abra um inesperado buraco negro político na direita portuguesa, ficando assim o povo em condições de poder respirar melhor.

1 comentário:

b m disse...

Gostei, Rui.
Só espero é que se abra mesmo o tal "buraco negro político".
E, atenção!,o homem só não puxa da pistola quando lhe falam de cultura, porque logo se estatela e perde a arma que traz escondida nas sombras da sua penumbra.
Abraço.