domingo, 8 de janeiro de 2017

HOMENAGEM EM CONTRA-MÃO A MÁRIO SOARES



                                                         [ retrato oficial -pintura de Júlio  Pomar]

Nestes dias mais próximos, vão cair sobre Mário Soares todas as palavras de pesar que a nossa imaginação alcança. Vão bater-lhe à porta, quer as memórias sentidas de muitos amigos, quer  a dor calorosa e triste do povo.

Justamente, vão alinhar-se junto ao seu nome as maiores solenidades discursivas. Os mais eloquentes cultivarão, graves, o sabor das grandes frases. As pompas mais crepusculares deitarão as suas sombras sobre as ruas.

Se Mário Soares se desse ao trabalho de acordar por um momento, deixaria  certamente escorrer ligeiramente pelo seu rosto cansado a ponta de um sorriso e libertaria a sua ironia mais funda para que se espreguiçasse um pouco.

Quem tenha escrito o que eu acabo de escrever não pode associar-se, pura e simplesmente, ao coro das homenagens , mesmo  que se  limite  a deixar uma palavra de tristeza e o esboço convencional de uma  esperança coletiva, ainda que ténue,  que possa fazer  pensar que valeu a pena a gesta do homenageado.

Tem que procurar abrir alguma janela, ainda que pequena e forçosamente breve. Ora, estava eu à procura dessa fugidia janela de arejamento, quando me recordei da metáfora do caçador que talvez um dia eu tenha inventado.

Diz ela que era uma vez um  caçador que sabia tudo acerca da caça. Sabia tudo acerca dos coelhos, sabia tudo acerca das perdizes. Sabia exatamente como aproveitar  cada cão em cada momento da caçada. Quando treinava tiro ao alvo, acertava sempre no mais íntimo do centro. Pontuação máxima.

Começada a caçada, lançados os coelhos na desesperada fuga, o genial  caçador, lesto e rápido, disparava. Mas era o cão que gania sofredor, enquanto  o coelho continuava a sua louca desfilada, escapando. Súbita,  soltava-se a perdiz matreira num voo inesperado. O  caçador, forte da sua vasta erudição,  disparava. O chapéu do vizinho voava e a perdiz, essa, perdia-se nos  insondáveis arbustos.

Mas Mário Soares era um outro tipo de caçador: precisamente o oposto.  Sabia sobre coelhos e sobre perdizes apenas o que lhe dava prazer saber, o que lhe apetecia saber.  Dos cães, limitava-se a ser amigo. Não tinha paciência para treinar tiro ao alvo. Não treinava. Caçava.

E , no entanto, aberta  a caçada, não há memória de que alguma vez tenha  acertado num cão e muito menos de que tenha feito voar  o chapéu de um companheiro de caça.  Mas as perdizes não lhe escapavam; os coelhos muito menos. Tiro e queda. Com naturalidade e alegria.


E com um detalhe que não devemos esquecer: as suas felizes caçadas foram a nossa vida.

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