[ retrato oficial -pintura de Júlio Pomar]
Nestes dias mais próximos, vão cair sobre Mário Soares todas
as palavras de pesar que a nossa imaginação alcança. Vão bater-lhe à porta,
quer as memórias sentidas de muitos amigos, quer a dor calorosa e triste do povo.
Justamente, vão alinhar-se junto ao seu nome as maiores solenidades
discursivas. Os mais eloquentes cultivarão, graves, o sabor das grandes frases.
As pompas mais crepusculares deitarão as suas sombras sobre as ruas.
Se Mário Soares se desse ao trabalho de acordar por um
momento, deixaria certamente escorrer
ligeiramente pelo seu rosto cansado a ponta de um sorriso e libertaria a sua
ironia mais funda para que se espreguiçasse um pouco.
Quem tenha escrito o que eu acabo de escrever não pode
associar-se, pura e simplesmente, ao coro das homenagens , mesmo que se
limite a deixar uma palavra de
tristeza e o esboço convencional de uma esperança coletiva, ainda que ténue, que possa fazer pensar que valeu a pena a gesta do homenageado.
Tem que procurar abrir alguma janela, ainda que pequena e forçosamente
breve. Ora, estava eu à procura dessa fugidia janela de arejamento, quando me
recordei da metáfora do caçador que talvez um dia eu tenha inventado.
Diz ela que era uma vez um
caçador que sabia tudo acerca da caça. Sabia tudo acerca dos coelhos,
sabia tudo acerca das perdizes. Sabia exatamente como aproveitar cada cão em cada momento da caçada. Quando
treinava tiro ao alvo, acertava sempre no mais íntimo do centro. Pontuação
máxima.
Começada a caçada, lançados os coelhos na desesperada fuga, o genial caçador, lesto e rápido,
disparava. Mas era o cão que gania sofredor, enquanto o coelho continuava a sua louca desfilada,
escapando. Súbita, soltava-se a perdiz
matreira num voo inesperado. O caçador,
forte da sua vasta erudição, disparava.
O chapéu do vizinho voava e a perdiz, essa, perdia-se nos insondáveis arbustos.
Mas Mário Soares era um outro tipo de caçador: precisamente o
oposto. Sabia sobre coelhos e sobre
perdizes apenas o que lhe dava prazer saber, o que lhe apetecia saber. Dos cães, limitava-se a ser amigo. Não tinha
paciência para treinar tiro ao alvo. Não treinava. Caçava.
E , no entanto, aberta
a caçada, não há memória de que alguma vez tenha acertado num cão e muito menos de que tenha
feito voar o chapéu de um companheiro de
caça. Mas as perdizes não lhe escapavam;
os coelhos muito menos. Tiro e queda. Com naturalidade e alegria.
E com um detalhe que não devemos esquecer: as suas felizes
caçadas foram a nossa vida.
Sem comentários:
Enviar um comentário