Há
um vago sabor cinzento na piedosa solidariedade que se ostenta nesta quadra
festiva. É uma amargura mansa que paira discretamente sobre a exuberância das
alegrias, feitas de luzinhas, de sorrisos e de uma rasgada retórica de uma
generosidade forte. E pode muito bem surpreender-se um pequeno grão de
hipocrisia e untuosidade refugiado num discreto recanto dos grandes gestos, das
grandes festas e dos repetidos presépios, mais centrados na sua alegada autoimportância
do que naquele que deviam querer homenagear.
Muitos
dos que vampirizam os explorados e excluídos declaram-se, nesta quadra, como
irmãos das suas vítimas. Talvez julguem assim iludir os infernos que causam na
terra com a ilusão do céu que almejam para a sua própria eternidade. Uma eternidade
calafetada e amena que os eleve a uma condição agradável como aquela de que
disfrutam na terra.
Os
pobres, os excluídos, são agora personagens humilhados de jantares festivos que
as televisões devoram numa sofreguidão torpe. Matam a fome com o protagonismo
público da sua própria humilhação, para que fique clara aos olhos dos senhores
espectadores a generosidade das esposas dos maridos importantes e suas excelsas
filhas, sobrinhas e amantes.
Dirão:
antes isso do que estoirarem-no todo nas caraíbas do luxo ou em iates de sonho
em redor das ilhas gregas. Concordo. Mas certamente me desculparão por preferir
uma sociedade que estivesse organizada de uma outra maneira, de modo a que,
para um punhado de barrigas flácidas e de pernas elegantes possa sugar a
energia do sol e o sabor epostoflante do champanhe francês numa
praia recatada de um qualquer algarve ou
numa ilha brasileira plena de tropicalismo, uns milhões de cidadãos
esquecidos tenham que engolir a sua própria
fome, misturando-a com uma pequena coleção de jantares de natal com risco de
indigestão.
Claro
que do mal, o menos. Por mim, prefiro a suave embriaguez das caridades,
necessariamente pias e salvadoras de infernos, do que as bebedeiras homéricas
em mansões de luxúria. Aliás, uma luxúria irredutivelmente pecaminosa que pode
muito bem afastar os seus descuidados
cultores do almejado paraíso.
Mas
certamente compreenderão que, impenitentemente, como socialista, republicano e
laico, não ache bem que um punhado de
felizardos, por nascimento ou engenho ladino, compre um repouso de sesta para a
sua vida e dos seus, com a simples generosidade de uma bacalhoada regada com um
carrascão imbebível e com o envolvimento numa qualquer iniciativa jonética, mesmo que lucidamente determinada a manter os viciosos
pobres bem longe de qualquer boa
bifalhada , ainda que rara.
Tenho
mesmo uma impressão vivaz de que os generosos pais do nosso capitalismo e os seus
virtuosos pajens e capatazes não ganham legitimidade para pugnarem pela conservação de
um tipo de sociedade em que os pobres ficam arquivados
na sua má sorte ( ou são até vítimas da fatalidade
de estarem cada vez mais acompanhados), só porque promovem uma festa de
caridade pública com arroz doce e aletria à sobremesa, ou mandam uma legião de
dondocas das melhores famílias descer aos santuários de consumo das classes médias
para minorarem as desgraças que os seus chefes de família impessoalmente
criaram pela mão amiga e oculta do dinheiro.
Atrevo-me
mesmo a dizer que não é natalício que seja quem for possa colher tranquilamente
os frutos da grande fábrica de pobreza que é o sistema que nos rege, limitando-se a procurar compensar
esse egoísmo predador da vida de muitos, sentando-os de quando em quando à mesa da sua caridade.
Prefiro
a caminhada difícil rumo a uma sociedade justa pelos caminhos de uma solidariedade
democrática que procura tornar-se supérflua porque é emancipatória, do que uma
condenação eterna a uma sociedade de muitos pobres e poucos ricos, em que estes
se desculpem a si próprios, procurando compensar e temperar com a sua caridade a injustiça estrutural de
que beneficiam, cuja causa essencial são os seus próprios privilégios, é a sua
própria proeminência.
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