1.A vitória de Dilma Rousseff nas recentes eleições presidenciais brasileiras foi um golpe profundo nas aspirações de reversão do surto progressista que tem varrido a América Latina nestes primeiros anos do século XXI.
Na verdade, refletindo a diversidade histórica e sociopolítica dos vários países, diversas esquerdas, diferentes entre si sem deixarem de ser solidárias umas com as outras, ganharam eleições e governam (ou são hegemónicas nos governos de) diversos países. É o que ocorre no Brasil, na Argentina, na Venezuela, no Chile, no Uruguai, no Equador, na Nicarágua e em El Salvador. Governos que se poderiam integrar neste conjunto foram derrubados, ilegal e ilegitimamente pela força, no Paraguai e nas Honduras. A América Latina deixou de ser o quintal dos USA, uma espécie de protetorado simbólico que a guerra fria congelara. Cuba viu assim minorado o seu relativo isolamento na América Latina. Ela, a resistente que os USA sentiam como espinha encravada na garganta, bloqueando-a economicamente, sobrevivendo ao fim da guerra fria, só agora começa a ver no horizonte alguns sinais de normalização.
Se a direita tivesse regressado ao poder no Brasil, ainda que sob a capa de um centro-esquerda moderado, mas que realmente é uma espécie de iceberg heterogéneo na sua aparência, mas bem ancorado no que há de mais reacionário, o retrocesso em toda a América Latina podia ter sido grande. O fato de integrarem esse iceberg os ex-comunistas do PPS e os socialistas do PSB, não apaga o facto de depois das eleições que perderam terem saído às ruas manifestações de hostilidade ao resultado eleitoral quer incluíram, por diversas vezes, apelos expressos a um golpe militar com regresso à ditadura. O verniz estalou.
2.Dito isto, parece-me plenamente justificado e claramente útil recorrer mais uma vez à excelente revista brasileira de grande circulação CartaCapital, para do seu site, transcrever um esclarecedor texto de Roberto Amaral.
Para ilustrar a sua credibilidade e a sua inequívoca autoridade política, vale a pena sublinhar alguns aspetos da sua biografia política.
Nascido em 1939, foi ao longo da sua vida, jornalista, professor e político. Foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) até Outubro de 2014, quando renunciou ao cargo por ocasião do apoio dado por esse partido ao então candidato a Presidência da República pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Aécio Neves.
Com o fim da ditadura e a consequente redemocratização, em 1984 retoma a atividade política legal, transformando-se num dos mais importantes refundadores do Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1985.
Foi seu secretário-geral entre 1985 e 1993 e em seguida vice-presidente, assumindo a Presidência em 2005, quando o histórico Miguel Arraes morreu.
Em 1994 e 1998, no segundo turno de 2002 e em 2006, representou o PSB na coordenação das campanhas eleitorais de Luís Inácio Lula da Silva. Foi no Governo Lula e no Governo Dilma Rousseff, representante do PSB no Conselho Político da Presidência da República. Foi ministro de Ciência e Tecnologia de janeiro de 2003 a 2004, no Governo Lula.
No dia 13 de agosto de 2014, passou a ser o novo presidente do PSB, depois da morte do candidato à Presidência da República Eduardo Campos. Após o primeiro turno das eleições presidenciais de 2014, colocou-se contra o apoio do PSB a Aécio Neves e, após renúncia, foi substituído na presidência do partido.
3. Eis o texto:
Os tempos que virão pela frente não serão fáceis*
As primeiras e mais graves nuvens negras se dissiparam. Vencidas todas as guerras e guerrinhas que compreenderam, até, o arreganho golpista, a presidente foi diplomada e dia 1º de janeiro inicia seu segundo mandato, que pode ser um segundo ciclo no ciclo petista-popular governante desde 2003. Mas não conta a presidente Dilma com um 'céu de bigadeiro'. Superada uma crise – interna ou exógena, política ou econômica, real ou engendrada-- outras virão e as que não chegarem naturalmente serão geradas ou agravadas, com ou sem base fatual, por uma oposição raivosa comandada por uma imprensa hostil, como jamais se viu neste país, senão nos idos que prepararam o 'Agosto de 1954'.
A oposição – partidária e mediática — derrotada nas eleições e derrotada no intento de deslegitimar o pronunciamento eleitoral, recusa-se a ensarilhar as armas, voltadas agora à tentativa de, fragilizando a presidente, dificultar politica e administrativamente seu governo, e, assim, impedir a continuidade programática. Ou seja, como não foi possível impedir nem sua eleição nem a posse (com que ameaçaram JK), tentará a direita impedir seu governo – tornando-o politicamente inviável (Jango) até o limite do golpe, se não for possível impor a presidente à agenda conservadora, em nome da 'governabilidade'.
O cerco está à vista.
Derrotada, e derrotada em pleito que espelhou alto nível de politização do eleitorado, a oposição não se deu por vencida, e vem tentando impor com nomes e modelos a política econômica do governo Dilma e o ponto de partida é a satanização de qualquer política que não seja a velha cartilha do FMI e dos 'chicagos boys' que tanto prejuízo já causaram a este país. A imposição da velha e fracassada política não precisa justificar-se (trata-se de um dogma dos jornalões e isto basta), embora o que prometem já tenha sido visto e vivido por brasileiros, chilenos e argentinos: desemprego, desaceleração econômica e recessão, objetivo, aliás, fácil de alcançar, se considerarmos o desempenho do PIB brasileiro nos últimos dois anos. Por isso e também por isso não se discute a política econômica, senão a partir do mágico 'ajuste fiscal', com o qual nos ameaça o conluio dos capitães da imprensa com os barões do sistema financeiro, parasita e predador. A Avenida Paulista já festeja a expectativa de aumento continuado de juros, e os jornalões dedicam-se à tarefa de bombardear qualquer discurso desenvolvimentista. Tudo é aceitável, menos a retomada do crescimento que ensejou nos últimos 12 anos o ingresso de mais de 40 milhões de brasileiros — a maioria negros e nordestinos, e todos pobres ou muito pobres— no mercado de consumo. Muitos, milhares, alcançaram, até, o ingresso na universidade, antes exclusividade das chamadas classes médias.
O terreno é promissor para o desastre prometido: crise politica e econômica europeia, crise asiática (recessão japonesa) e a realização da esperada queda do crescimento do PIB chinês, desaceleração da economia latino-americana, crise no Mercosul e entre os BRICS. E desarranjos em nossa economia, uns reais, outros maximizados pela oposição e todos tonitruados pelos jornalões e pela revistona, e pelos 'economistas' midiáticos do grande canal de tevê.
O caminho será esse senão reagirmos, e a forma mais eficiente de reação é o apoio popular ao governo Dilma.
Tenhamos consciência, todavia, de que a presidente terá de enfrentar esses desafios tendo como retaguarda uma base parlamentar inconfiável e um Congresso (em crise moral, diga-se de passagem) que só lhe tem proporcionado dissabores, dissabores que inevitavelmente crescerão se o governo, como sugerem os dados de hoje, não conseguir controlar a Presidência da Câmara dos Deputados.
Esse é o pano de fundo do quadro político que, pelo menos aparentemente, orientou a composição do Ministério, a saber, a necessidade de, olhando para 2018, considerar o desempenho do governo pari passu com a 'governabilidade', que se resume em atender aos partidos da base e assegurar maioria no Congresso. As negociações com o poder econômico e outros 'poderes' se dão por outras vias.
Mas o ambiente, lamentavelmente, é este: Congresso conservador, oposição raivosa, imprensa agressivamente hostil e fragilidade parlamentar, a partir da fragilidade de sua própria base partidária, comandada por um PT tímido na ação política e inibido na liderança dos movimentos sociais – sua origem e sua razão de ser.
Falta ao governo Dilma hoje, e poderá faltar ainda mais em função do enfrentamento da crise, o apoio das ruas, aquele que Lula foi buscar em 2005. Mas apoio que não cai do céu como chuva, pois muito depende do discurso presidencial, de suas primeiras e segundas medidas. O apoio e mobilização das massas depende da doação de uma militância ainda retraída, à espera do anúncio dos rumos do governo, e, dessa forma, inconscientemente, renunciando a influir na sua concepção, talvez certamente mais importante do que a ocupação dos gabinetes da Esplanada dos Ministérios, com Joaquim ou Manuel, representantes desta ou daquela corrente partidária. É preciso resolver o impasse, pois a inação só favorece à direita.
Tudo isso o próximo governo terá de enfrentar – em meio a uma ameaçadora instabilidade política que se anuncia para os primeiros meses de 2015--- comandando uma estrutura estatal paralítica, uma burocracia inoperante, uma ordem administrativa absolutamente caótica, a clamar aos céus por uma reforma do modo de operação do Estado.
Ao contrário do que supõem lideranças partidárias e boas cabeças pensantes do Planalto, a reforma política não é panaceia para todos os males de nosso tempo, e a simples prioridade que lhe temos dado é significativa do atraso do processo politico brasileiro que já reclamou reformas estruturais e infraestruturas, as chamadas 'reformas de base' (anos 60) que ainda não realizamos, e que precisamos realizar nos próximos quatro anos: reforma agrária beneficiando o pequeno produtor, reforma do ensino e da universidade incluindo reforma do ensino militar, reforma do Judiciário, reforma fiscal, implicando a taxação das grandes propriedades e das grandes fortunas, reformas que requerem governo forte, como a regulamentação das empresas de comunicação de massa, que, ademais, depende de ampla e efetiva mobilização nacional. Tudo o que a direita quer evitar, e pode evitar se a mobilização das massas não for o outro lado do fracasso dos partidos: fracasso como instituições políticas, como instrumento da organização popular, fracasso como projeto de país e de governo. Fracasso que contaminou o movimento sindical partidarizado.
Está na hora de pensar grande, e assim consideramos pensar o amanhã despojado de parti pris. Rever tudo, as organizações partidárias e a crise particular da esquerda socialista e dos partidos de esquerda e os ditos partidos progressistas, rever nossos programas, nossos objetivos, nossos projetos, e buscar alternativas que favoreçam a emergência das massas, e enfrentem as ameaças veladas ou não que se levantam, por enquanto como mera prospeção, ao processo democrático duramente reconquistado pelo povo brasileiro. É fundamental rever o caráter das atuais relações entre partidos de esquerda e os movimentos sociais.
Cabe à esquerda – e nos valemos da expressão grafada por Darcy Ribeiro— passar a limpo o país a partir de sua própria autocrítica, preparando-se para a mobilização de todas as forças populares em uma grande frente progressista que compreenda parlamentares (independentemente de filiação partidária) que com seus princípios se vejam comprometidos, movimentos sociais, sindicatos e centrais sindicais, lideranças sociais e comunitárias, com o objetivo de fazer frente à ascensão da direita, defender o avanço social, a soberania e a nacionalidade, o Estado e seu papel de indutor do desenvolvimento nacional e, como coroamento, o aprofundamento da democracia.
* Nota: A frase que serve de título é atribuída por Carta Capital (ano XX, nº 830) ao ex-presidente Lula, em passagem recente por Brasília.