“Este é o papa da ruptura” : é o título de uma entrevista feita a Leonardo Boff teólogo brasileiro e um dos mais altos expoentes da teologia da libertação. Foi publicado no site da Deutsche Welle /Brasil . Foi feita antes da ida do papa ao Brasil, publicada no passado dia 22 de julho, podendo agora ser confrontada com o modo como a visita decorreu. A entrevista é mais um elemento para nos ajudar a compreender se há algo de potencialmente novo na Igreja Católica na esteira deste Papa. No caso português, apesar da marca conservadora predominante na hierarquia católica, não se pode deixar de valorizar tudo o que lhe diga respeito, tão significativa é a percentagem de portugueses que são católicos. Se o novo Papa conduzir realmente a Igreja Católica para dentro dos explorados e oprimidos, se a tornar amiga dos pobres e realmente inimiga da pobreza, muita coisa poderá mudar na paisagem político-social do nosso país.
Num pequeno texto que antecede a entrevista, Boff
é apresentado como , “um dos principais críticos do
conservadorismo católico”, referindo-se que ele “elogia Francisco, afirmando que ele começou
uma reforma do papado e pode dar início a uma
dinastia de papas de países do Terceiro Mundo.”
E prossegue : “O papa
Francisco vai inaugurar uma nova era para a Igreja Católica
durante a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. Essa é a convicção
do teólogo Leonardo Boff, que em 1992 deixou todos os cargos na igreja, após
ser censurado pelo Vaticano”.
E
o texto de apresentação continua : “Em entrevista à DW Brasil
na sua casa em
Petrópolis (RJ ), o teólogo elogiou Francisco, afirmando que
ele é o papa da ruptura. "Essa é a palavra que Bento 16 e João Paulo 2º
mais temiam. Eles acreditavam que a igreja tinha que ter continuidade",
avaliou Boff.
O
teólogo, um dos expoentes da Teologia da Libertação, disse acreditar que
Francisco vai falar sobre os recentes protestos no Brasil. "Ele fez uma
declaração corajosa em Roma, dizendo que os políticos têm que escutar os jovens
na rua; que a causa dos jovens é legítima, justa e que estaria em conformidade
com o evangelho."
DW Brasil: No
Rio de Janeiro, mais de um milhão de fiéis católicos vão se reunir e celebrar a
fé durante a Jornada Mundial da Juventude. No século 21, o cristianismo ainda
precisa da figura de um papa?
Leonardo Boff:
Fundamentalmente não precisaria de um papa. A igreja poderia se organizar numa
vasta rede de comunidades. Mas, à medida em que a igreja foi se transformando
numa instituição e assumindo uma função política no Império Romano, ela assumiu
também os símbolos do poder: o próprio nome "papa", que era exclusivo
dos imperadores, e aquela capinha cheia de ouro, que só os imperadores podiam
usar, mas que os papas todos usavam. Então, esse curso de uma igreja que tem
uma função política dentro do Império Romano em decadência obrigava a igreja a
ter um centro de referência. Francisco, quando ofereceram a ele aquela capinha,
disse "O carnaval acabou, não quero isso".
Então, esse papa chegou para mudar?
Eu acho que esse é o papa da ruptura. Essa é a palavra
que Bento 16 e João Paulo 2º mais temiam. Eles acreditavam que a igreja tinha
que ter continuidade, portanto o Concílio Vaticano Segundo não poderia
significar ruptura com o Primeiro. Mas não, agora há uma ruptura, a figura do
papa não é mais a clássica, é outra. Francisco não começou com a reforma da
cúria, começou com a reforma do papado.
O que você quer dizer com "reforma do
papado"?
Na Europa vivem só 24% dos católicos. Na América
Latina são 62%, e o restante está na África e na Ásia. Então hoje, o
cristianismo é uma religião do Terceiro Mundo, que um dia teve origem no
Primeiro Mundo. Acho que o
papa Francisco vai criar uma dinastia de papas do Terceiro
Mundo. Além disso, as nossas igrejas já não são mais igrejas de espelho,
imitando as europeias; são igrejas fonte, criaram suas tradições, têm os seus
mártires, seus mestres, suas formas de celebrar, têm suas teologias e profetas
e figuras importantes, como dom Hélder Câmara e Óscar Romero. Essas igrejas
estão dando vitalidade ao cristianismo.
Por que o senhor está tão otimista? Os
problemas da Igreja Católica continuam: a exclusão dos divorciados, a
discriminação dos homossexuais, a proibição de mulheres-sacerdotes...
O papa deu um exemplo claro. Ele soube que um pároco
em Roma negou o batismo ao filho de uma mulher solteira. E o papa disse:
"Esse padre está errado, porque não existe mãe solteira. Existe mãe e
filho. E ela tem o direito de ver o filho batizado, porque a igreja tem que ter
as portas abertas, pouco importa a condição moral da pessoa". E ele foi
mais fundo ao dizer que não se pode inventar um oitavo sacramento, proibindo os
fiéis que não se enquadrem na disciplina eclesiástica de participar da vida da
igreja e dos sacramentos. Até agora, os temas de moral sexual, de moral
familiar, de celibato e de homossexualidade eram proibidos de serem discutidos.
Se um teólogo ou um padre discutisse esse assunto, era logo censurado. Agora,
ele vai permitir a discussão.
No Brasil, nas últimas semanas, milhares
de jovens foram às ruas protestar contra os políticos corruptos e os altos
investimentos nos estádios de futebol. Qual é o recado que o papa vai dar aos
jovens?
Ele fez uma declaração corajosa em Roma, dizendo que
os políticos têm que escutar os jovens na rua; que a causa dos jovens é
legítima, justa e que estaria em conformidade com o evangelho. Eu acho que ele
vai fazer uma convocação crítica aos políticos, para que eles não sejam mais
corruptos e passem a servir mais ao povo. E vai fazer um desafio aos jovens de
continuar a transformação da sociedade, mas sem violência. E aí exclui todos
esses vândalos que nos últimos dias mostraram uma violência absolutamente
injustificável e estúpida.
O senhor disse que os programas sociais no
Brasil "incluíram uma Argentina inteira na sociedade brasileira". Por
que então as pessoas protestam contra o governo brasileiro?
Curiosamente, elas não são contra o PT, a Dilma ou o
Lula. Elas mostram uma insatisfação geral com o Brasil que temos, que é um país
com profundas desigualdades. São 5.000 famílias brasileiras que controlam 43%
de toda a riqueza nacional. Além disso, o próprio PT atingiu o seu teto. Ou ele
muda e refaz a sua relação orgânica com os movimentos sociais, ou ele se
transforma num partido como os demais, que buscam o poder e acabam se
corrompendo.
A classe média brasileira parece não estar
gostando tanto dos programas de inclusão social do governo brasileiro. Ela foi
deixada de lado?
Com Lula, os ricos ficaram mais ricos, e os pobres
saíram da pobreza. Todo mundo ganhou. Eu creio que o governo do PT não fez só
uma distribuição de renda, favorecendo os pobres, mas também fez uma
redistribuição. Tirando de quem tem e passando para quem não tem. Só que ele
não aplicou isso às grandes fortunas. Ele tirou da classe média, que ficou mais
pobre.
O senhor acredita que os políticos vão
atender ao recado do papa na Jornada Mundial da Juventude?
Eu acho que ele vai ser muito importante para a
América Latina, porque o modo de ser dele vai reforçar as novas democracias,
que nasceram na resistência aos militares e estão fazendo boas políticas
sociais para os pobres, com inclusão. Então, ele tem uma função política
importante. A Cristina Kirchner, que vivia em polêmica com ele, entendeu a
lição e fez as pazes. Mas por quê? Porque o papa move multidões. Talvez ninguém
no mundo hoje possa reunir um milhão de pessoas. Político nenhum, nem mesmo o
Obama.
Mas a Igreja Católica perdeu poder e
influência?
Institucionalmente, a igreja no Brasil está numa
profunda crise. Pelo número de católicos, deveríamos ter 100 mil padres. Temos
17 mil. Criou-se um vazio, pelo qual entraram as igrejas pentecostais. E com
razão. Como o povo é religioso, quem vem falar de Deus, ele [o povo] adere,
porque indo para Deus, podemos somar sempre. Para batismo, casamento e enterro,
é a Igreja Católica. Para saber o outro lado do mundo, ele vai para o
espiritismo. Para as questões de sorte e amor, ele vai num centro de macumba. O
povo não tem uma visão doutrinária, tem uma visão prática. É um supermercado
religioso, com muitos produtos, e o povo vai se servindo.
Com Francisco, a Teologia da Libertação
vai voltar?
Com este papa, ela vai ganhar visibilidade. Antes se
dizia que a Teologia da Libertação era uma teologia marxista. Agora se diz que
ela é uma teologia católica. Isso muda a atmosfera da igreja.
[Autoria: Astrid Prange, do
Rio de Janeiro
Edição: Alexandre Schossler ]
Edição: Alexandre Schossler ]
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