Uma vez mais, recorro ao site da excelente revista brasileira de
grande circulação CartaCapital. Hoje, vou
transcrever um texto de Luiz Gonzaga Belluzzo, um
reputado economista e universitário brasileiro, que colabora regularmente na revista em causa. O
tema é sugestivo : Foucault e o neoliberalismo. Numa
curta frase destacada como apoio do título diz-se: “O
filósofo francês, um dos pensadores mais fecundos do século XX, não era
economista. Talvez por isso entendeu com maior profundidade o neoliberalismo.” Eis
o texto:
“O mundo se abriu para o novo milênio dominado por certezas que hoje se
desmancham sob a ação demolidora da crise financeira. A ideologia neoliberal,
quase sem resistências, tentou demonstrar que, com a queda do Muro de Berlim, o
espaço político e econômico tornou-se mais homogêneo, menos conflitivo, com a
concordância a respeito das tendências da economia e das sociedades. Não há
mais razão, diziam, para se colocar em discussão questões anacrônicas, como a
reprodução das desigualdades ou as tendências dos mercados a sair dos trilhos,
frequentemente destrambelhados pelos excessos nascidos de suas engrenagens.
Após a crise, os
porta-vozes desse quase consenso, economistas e que tais, recolheram-se ao
silêncio. Passado o vendaval que ajudaram a semear, já agarrados aos
salva-vidas lançados pela famigerada intervenção dos governos, entregaram-se a
tortuosas e acrobáticas manobras para justificar suas convicções.
Michel Foucault, um
dos pensadores mais fecundos do século XX, não é economista. Talvez por isso
tenha compreendido com maior abrangência e profundidade o significado do
neoliberalismo. Contrariamente ao que imaginam detratores e adeptos, diz ele, o
neoliberalismo é uma “prática de governo” na sociedade contemporânea. O credo
neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, “introduzir a
regulação do mercado como princípio regulador da sociedade”.
Foucault dá
importância secundária à hipótese mais óbvia sobre a arte neoliberal de
governar, a que afirma a imposição do predomínio das formas mercantis sobre o
conjunto das relações sociais. Para o filósofo, “a sociedade regulada com base
no mercado em que pensam os neoliberais é uma sociedade em que o princípio
regulador não é tanto a troca de mercadorias quanto os mecanismos da
concorrência... Trata-se de fazer do mercado, da concorrência, e, por
consequência, da empresa, o que poderímos chamar de ‘poder enformador da
sociedade’”.
As transformações
ocorridas nas últimas décadas deram origem a fenômenos correlacionados que não
se coadunam com os princípios do liberalismo clássico e sua imaginária
concorrência perfeita protagonizada por um enxame de pequenas empresas sem
poder de mercado.
A nova concorrência
louvada pelos neoliberais admite a “centralização” da propriedade e o controle
dos blocos de capital. O processo se deu pela escalada dos negócios de fusões e
aquisições, alentada pela forte capitalização das bolsas de valores nos anos
80, 90 e 2000, a
despeito de episódios de “ajustamento de preços”. A “terceirização” das funções
não essenciais à operação do core business aprofundou a divisão social do
trabalho e propiciou a especialização e os ganhos de eficiência microeconômica,
além de avanços na produtividade social do trabalho.
A grande empresa que
se lança às incertezas da concorrência global necessita cada vez mais do apoio
de condições institucionais e legais – sobretudo na derrogação das regras de
proteção aos trabalhadores – que a habilitem à disputa com os rivais em seu
próprio mercado e em outras regiões.
Elas dependem do
apoio e da influência política de seus Estados Nacionais para penetrar em
terceiros mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes etc.), não
podem prescindir do financiamento público para exportar nos setores mais
dinâmicos, não devem ser oneradas com encargos tributários excessivos e correm
o risco de serem deslocadas pela concorrência sem o benefício dos sistemas
nacionais de educação e de ciência e tecnologia.
Tanto a “nova ordem
mundial” como a sua crise foram construídas e deflagradas no jogo estratégico
disputado entre as empresas globais e seus respectivos Estados. Esse fenômeno
político-econômico envolveu os protagonistas relevantes da cena global: os
Estados Unidos, apoiados em sua liderança financeira e monetária, e a China,
ancorada em sua crescente superioridade manufatureira.
A superação da crise
atual não depende apenas da ação competente dos Tesouros Nacionais e dos Bancos
Centrais, mas supõe um delicado rearranjo das relações políticas e
concorrenciais que sustentaram o modelo sino-americano. Parece que não é fácil.
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