O Governo ameaça cortar retroativamente parte daquilo que
recebem os aposentados da CGA, em termos definitivos. Os senhores da troika
incitam-nos a isso. Todos eles e os respetivos “cães de guarda” que os apoiam dissertam
solenemente sobre o evento como se tudo não passasse de um ajustamento de
números objetivamente necessário; e, ainda por cima, coincidente com uma vaga
equidade, sempre alegada e nunca demonstrada. Na realidade, essa fria operação
económica é a máscara de um simples roubo, tão real como o seria se alguém entrasse em
nossa casa e nos furtasse uma soma de dinheiro vivo de uma gaveta.
Na verdade, em cada mês, quando recebíamos o nosso salário,
ele não nos era pago por completo, já que
uma parte dele era retida para que mais tarde recebêssemos uma pensão de reforma. Poderíamos ter
recebido o salário completo e afetar uma parte dele a esse objetivo , por exemplo através de
uma mutualidade, mas não foi assim. Foi-nos imposto que as coisas se passassem
nos termos em que se passaram. Não nos foi dada outra opção.
Deve, no entanto, recordar-se que, quando acordámos prestar
o nosso trabalho, tendo o Estado como patrão, fizemo-lo dentro de regras previamente
conhecidas, que aliás foram por ele fixadas. Esse contrato de trabalho público
implicou que cada um de nós assumiu um conjunto de obrigações laborais com a
contrapartida de um salário. Salário esse desdobrado entre o que se recebia e o
que se deixava à guarda do Estado, no pressuposto de que nos era garantida uma
pensão de reforma calculada, de acordo com regras objetivamente determinadas e
desde logo conhecidas. Aceitámos prestar um determinado trabalho ao Estado no pressuposto
de que a contrapartida seria a que referi: uma parte em salários diretos, outra parte em
salários diferidos , traduzidos num certo tipo de direito a uma pensão e a
outras regalias sociais menores ,expressamente consignadas. Se as
contrapartidas fossem outras, mais fracas, talvez tivéssemos optado por outro caminho, não tendo sido
funcionários públicos, ou não tendo ficado em Portugal.
Portanto, qualquer corte retroativo nas pensões de reforma
dos funcionários públicos é um grosseiro rompimento de um contrato
protagonizado por uma entidade, que no âmbito de outras funções suas, é também garante
da legalidade e, portanto, do cumprimento dos contratos livremente celebrados,
como foi o caso. Assim, no plano da moral e de uma ética republicana (a ética
republicana impõe-se, naturalmente, em primeiro lugar às instituições da
República), um corte retroativo em pensões de reforma, seja de trabalhadores do
setor público ou do setor privado, é completamente ilegítimo. Simplesmente,
enquanto no setor privado o Estado atua como um terceiro, teoricamente
imparcial, que, podendo errar, não decide em causa própria, no setor público
assume uma dupla veste que lhe dá um poder de disposição absoluto, podendo
torná-lo beneficiário direto de alguns
dos seus próprios erros, como é o caso.
O esbulho em causa não é essencialmente diferente de uma
hipotética ocorrência que se traduzisse na possibilidade de um vendedor de um
prédio vir exigir, dez anos depois da venda, um paghamento de mais dez por cento, além do que já
tinha recebido, em virtude de uma qualquer conveniência sua; ou de um patrão
vir exigir a um seu antigo trabalhador a devolução de dez por cento dos salários
que lhe havia pago há dez anos atrás. Hipóteses escandalosamente eivadas de arbítrio, reflexos de uma autêntica barbárie social.
Mas esta realidade é algo que não gostam que se perceba, pelo que procuram ocultá-la com algumas cortinsa jurídicas, mais ou menos sofisticadas, cbem como com
algumas carradas de propaganda economicista travestida de ciência. Temos que desocultá-la para que seja completamente claro o grau de indecência que a impregna.
Como é ao Estado que compete a tipificação criminal, estas
proezas não são tipificadas como crimes em termos inequívocos. Os almofadinhas
da troika não são perseguidos por formação de quadrilha, nem são tratados como
delegados de uma qualquer internacional mafiosa. Mas do ponto de vista moral
estão muito mais próximos das associações de malfeitores do que da ética
republicana.
Por isso, as razões para um alarme democrático crescem, de
dia para dia. Resiste a zona nobre da legalidade democrática que nem os
alucinados governantes nem os mastins internacionais podem destruir, a
Constituição da República. Por isso, as hostes sombrias do conservadorismo
capitalista mais retrógrado tanto se assanham contra ela.
Há, no entanto, que dizer que o caminho seguido, quando se
tentam esbulhos como os que estamos a referir, além de ofender claramente, pelo
menos, os valores políticos e éticos plasmados no texto constitucional, atinge
o cerne do Estado democrático e desce abaixo dos limiares menos exigentes da
moralidade pública.
E para tornar tudo isto mais absurdo e mais grave, insiste-se num caminho cuja viabilidade objetiva
já começou a ser recusada por muitos dos seus arautos de ontem; caminho, cujo acerto ninguém consegue já sustentar sem correr o risco de cair no ridículo.Ou
seja, insistem em consumar um assalto, que faz parte de uma estratégia que até
os próprios já reconhecem como errada.
Por isso, é legítimo
que se receie que o poder político nacional e europeu, para além de reacionário
e retrógrado, verdadeiro caniche do grande capital financeiro, seja também um poder
desbussolado que se aproxima
perigosamente do cretinismo próprio dos pobres de espírito.