sábado, 15 de setembro de 2012

DO PESADELO À METAMORFOSE


Tornou-se evidente: o governo de direita que está no poder em Portugal é um fanático do seu próprio caminho. Talvez tenha um número excessivo de idiotas políticos, mas o que é realmente alarmante é guiar-se por um mapa errado. Um mapa errado que, todavia, para essa direita é a materialização absoluta da verdade. O perigo é por isso imenso. Os precipícios que não estão no mapa, para essa gente, não existem. Mas esse é precisamente o erro do mapa: mostra abismos que não existem e esquece outros, bem reais

Não foi um infeliz acaso que produziu esse insólito roteiro desfasado da realidade. Foi a pulsão de sobrevivência do capitalismo que naturalmente segregou a ilusão da impossibilidade de não ser eterno. Pulsão traduzida em ideias falsas, em dados distorcidos, em preconceitos estéreis, em omissões calculadas, em exacerbamentos dirigidos e inócuos. Tudo isso, muitas vezes, embrulhado em equações fatais, numa feitiçaria numerológica que se mascara de verdade suprema, e em face da qual aos mortais nada mais parece restar do que ajoelhar perante ela e seguir como rebanho triste os seus ditames.

Criou-se assim uma enorme máquina de exploração e de opressão da grande maioria dos seres humanos, uma fábrica de produzir mais e mais desigualdade. Fechou-se nela o mundo e teceu-se a ilusão de que essa máquina artificial era, em primeiro lugar, eterna e, em segundo lugar, a expressão acabada da própria realidade social. Fora dela, só existiriam a ilusão e o caos. Ironia suprema, já que é essa ficção de realidade que representa o que há de mais próximo de uma ilusão e do caos, embora isso se traduza em rios de leite e de mel para um punhado de exploradores e em exclusão social, pobreza, perda de futuro, medo e angústia, para uma larga maioria da humanidade.

Portugal é hoje uma ilustração particularmente nítida desta realidade universal. Não é simples sair deste colete-de-forças. A máquina de exploração que nos oprime conseguiu uma simbiose demasiado complexa com as nossas vidas, para que seja possível destruir a máquina de um dia para o outro num brusco gesto de desespero colectivo, sem pormos também em risco a nossa própria sobrevivência enquanto seres humanos.

Mas se deixarmos que a máquina do capitalismo continue a apertar o garrote que nos impede de respirar, a prazo, correremos o risco de perecer numa aflição colectiva, ainda mais funda do que aquela que hoje nos atrofia. Toda a navegação que leve a bandeira da esperança tem que aprender a passar permanentemente entre estes dois escolhos. Não podemos destruir o capitalismo num golpe súbito, porque se o conseguíssemos, o que não é certo, destruíamos também a sociedade humana, ou regrediríamos séculos na história. Mas também não podemos limitarmo-nos a inventar pequenos remédios e pequenos percursos, subordinados à lógica de eternização do capitalismo. Não podemos procurar apenas serrar os dentes do capitalismo, na esperança de que ele nos morda mais suavemente. Se assim for,  acabaremos por ser ciclicamente arrastados para novos pesadelos colectivos, cada vez menos suportáveis.

Se quisermos usar uma metáfora, para nos ajudar a compreender o que está em causa nas sociedades capitalistas de hoje, podemos recorrer a uma analogia com a metamorfose por que passam certas espécies animais. A lagarta tem como seu horizonte a borboleta. Para lá chegar tem que ser antes uma crisálida. Se a lagarta teimar em continuar lagarta, acabará por apodrecer e morrer. Se na constância da lagarta, se pretender saltar bruscamente para a borboleta, sem a complexa fase de ser crisálida, a lagarta acabará por morrer também.

Por isso, o reformismo concebido como processo de transformação efectiva das sociedades actuais é uma via possível e fecunda, se nele tiver inscrita a mutação qualitativa implícita na metamorfose. Isto é, se for um reformismo substancialmente revolucionário, na medida em que seja  um reformismo realmente transformador, globalmente transformador. O que, é bom que se diga, nada tem a ver com os embustes intelectuais que se traduzem na aposição da palavra reformismo a medidas avulsas e anódinas; e muito menos com a contra-reforma neoliberal que , mistificatoriamente chama reformas estruturais a regressões sociais  e políticas que materializam o retrocesso civilizacional protagonizado pelo neoliberalismo, cujos frutos se tornam agora dramaticamente ostensivos.

Olharmos o caminho da esquerda como a materialização de uma metamorfose necessária pode ajudar-nos muito a caminhar com segurança e acerto, bem como a distinguir as medidas por que temos que nos bater e aquelas que é imprescindível que evitemos. Esse caminho de saída do capitalismo, necessariamente prolongado, não poderá , como é óbvio, estagnar ou arrastar-se excessivamente no tempo, sob pena de implodir. Terá que ser pilotado institucionalmente, mas decidir-se-á na transformação por que há-de passar o tecido social. A simbiose destes dois planos será uma das condições do seu êxito. Mas o seu inêxito, que não é impossível, tornará improvável a sobrevivência da humanidade num registo que não seja de pesadelo.

Os ribeiros correm já, com a ambição de serem rios. E o mar é o seu destino, crisálida que é necessário que consigamos ser colectivamente. A orquestra de todas as lutas não precisa de um maestro, nem mesmo de uma oligarquia de maestros. Precisa sim que os seus membros aprendam a solidariedade, a complementaridade, a subtil conjugação das diferenças, a fraternidade das várias lutas, a emergência rápida de um tempo sem fome, sem guerra, sem miséria, rumo a um futuro que é necessário que  pertença a todos.

Neste contexto, todas as lutas são úteis, todas as lutas são legítimas, se apontarem para a urgência de uma metamorfoses que nos leve a superar o capitalismo que nos garroteia, rumo a um futuro humano.Do mesmo modo, é cada dia mais gravosa a actual insuficiência estratégica de todas as esquerdas organizadas, porque ela impede que encontremos o caminho que nos espera, porque reduz uma política, que devia projectar-se no futuro como esperança, numa mastigação triste de escolhas operacionais que se repetem e de manobras tácticas mais ou menos previsíveis. E assim  se deixa em paz o essencial do capitalismo, embora sob uma vozearia aparentemente contundente. De facto, se é certo que  a indignação dos explorados é estruturalmente justa, legítima e necessária, se não lhe for dada a oportunidade para ser seiva de um processo político global e transformador, pode esvair-se no desespero ou no desânimo.


4 comentários:

JGama disse...

"-Porque chora?
-Choro, porque tenho medo que tudo isto seja em vão, e amanhã volte tudo ao mesmo" ... Resposta de uma jovem manifestante em Lisboa.
É um sentimento que se compreende. Mas tenho a certeza que muitos outros choraram porque sabem que o que aconteceu hoje, 15 de setembro, não vai ser em vão.

Anónimo disse...

Aqui vamos nós lançados em quase família!

Não receio a vanidade desta acção que me emocionou até ao âmago.

As pessoas mostraram que sabem o que querem. Não vai haver truques, seja de quem for, que desmoralize,
que possa tapar o Sol com uma peneira. Mesmo depois de ouvir os comentaristas do costume. As palavras da rua não soavam a falso eram genuínas e puras.

Comentando o vosso artigo: só posso dizer que encheu-me as medidas!

Afinal, sempre nos importamos com a grande nau que somos nós portugueses.

Como já aqui disse nesta terra e neste povo da Moita que viu a republica a 4 de outubro de 1910 não vai parar, como saempre.
Um grande bem haja...
Sinto-me mais feliz...
Sinceramente...de "O Catraio"

Rui Namorado disse...

Um valente anónimo, projectando-se a si próprio no insultado, fez um comentário insultuoso a uma pessoa exterior a este blog. Vou apagar esse comentário. Há lixo que escreve como se fosse gente. Mas este blog não é um caixote de lixo.

Anónimo disse...

tu deves ser é esquizofrenico, falas sozinho pah