Tornou-se evidente: o governo de direita que está no poder em Portugal é um fanático do seu próprio caminho. Talvez tenha um número excessivo de idiotas políticos, mas o que é realmente alarmante é guiar-se por um mapa errado. Um mapa errado que, todavia, para essa direita é a materialização absoluta da verdade. O perigo é por isso imenso. Os precipícios que não estão no mapa, para essa gente, não existem. Mas esse é precisamente o erro do mapa: mostra abismos que não existem e esquece outros, bem reais
Não foi um infeliz acaso que produziu esse insólito roteiro
desfasado da realidade. Foi a pulsão de sobrevivência do capitalismo que
naturalmente segregou a ilusão da impossibilidade de não ser eterno. Pulsão
traduzida em ideias falsas, em dados distorcidos, em preconceitos estéreis, em
omissões calculadas, em exacerbamentos dirigidos e inócuos. Tudo isso, muitas vezes, embrulhado em equações fatais, numa feitiçaria numerológica que se mascara de
verdade suprema, e em face da qual aos mortais nada mais parece restar do que
ajoelhar perante ela e seguir como rebanho triste os seus ditames.
Criou-se assim uma enorme máquina de exploração e de
opressão da grande maioria dos seres humanos, uma fábrica de produzir mais e
mais desigualdade. Fechou-se nela o mundo e teceu-se a ilusão de que essa máquina
artificial era, em primeiro lugar, eterna e, em segundo lugar, a expressão acabada
da própria realidade social. Fora dela, só existiriam a ilusão e o caos. Ironia
suprema, já que é essa ficção de realidade que representa o que há de mais
próximo de uma ilusão e do caos, embora isso se traduza em rios de leite e de
mel para um punhado de exploradores e em exclusão social, pobreza, perda de
futuro, medo e angústia, para uma larga maioria da humanidade.
Portugal é hoje uma ilustração particularmente nítida desta
realidade universal. Não é simples sair deste colete-de-forças. A máquina de
exploração que nos oprime conseguiu uma simbiose demasiado complexa com as
nossas vidas, para que seja possível destruir a máquina de um dia para o outro
num brusco gesto de desespero colectivo, sem pormos também em risco a nossa
própria sobrevivência enquanto seres humanos.
Mas se deixarmos que a máquina do capitalismo continue a
apertar o garrote que nos impede de respirar, a prazo, correremos o risco de
perecer numa aflição colectiva, ainda mais funda do que aquela que hoje nos atrofia.
Toda a navegação que leve a bandeira da esperança tem que aprender a passar
permanentemente entre estes dois escolhos. Não podemos destruir o capitalismo
num golpe súbito, porque se o conseguíssemos, o que não é certo, destruíamos
também a sociedade humana, ou regrediríamos séculos na história. Mas também não
podemos limitarmo-nos a inventar pequenos remédios e pequenos percursos,
subordinados à lógica de eternização do capitalismo. Não podemos procurar
apenas serrar os dentes do capitalismo, na esperança de que ele nos morda mais
suavemente. Se assim for, acabaremos por
ser ciclicamente arrastados para novos pesadelos colectivos, cada vez menos
suportáveis.
Se quisermos usar uma metáfora, para nos ajudar a
compreender o que está em causa nas sociedades capitalistas de hoje, podemos recorrer a uma
analogia com a metamorfose por que passam certas espécies animais. A lagarta
tem como seu horizonte a borboleta. Para lá chegar tem que ser antes uma
crisálida. Se a lagarta teimar em continuar lagarta, acabará por apodrecer e
morrer. Se na constância da lagarta, se pretender saltar bruscamente para a
borboleta, sem a complexa fase de ser crisálida, a lagarta acabará por morrer
também.
Por isso, o reformismo concebido como processo de
transformação efectiva das sociedades actuais é uma via possível e fecunda, se
nele tiver inscrita a mutação qualitativa implícita na metamorfose. Isto é, se
for um reformismo substancialmente revolucionário, na medida em que seja um
reformismo realmente transformador, globalmente transformador. O que, é bom que
se diga, nada tem a ver com os embustes intelectuais que se traduzem na
aposição da palavra reformismo a medidas avulsas e anódinas; e muito menos com
a contra-reforma neoliberal que , mistificatoriamente chama reformas
estruturais a regressões sociais e políticas
que materializam o retrocesso civilizacional protagonizado pelo neoliberalismo,
cujos frutos se tornam agora dramaticamente ostensivos.
Olharmos o caminho da esquerda como a materialização de uma
metamorfose necessária pode ajudar-nos muito a caminhar com segurança e acerto,
bem como a distinguir as medidas por que temos que nos bater e aquelas que é
imprescindível que evitemos. Esse caminho de saída do capitalismo,
necessariamente prolongado, não poderá , como é óbvio, estagnar ou arrastar-se
excessivamente no tempo, sob pena de implodir. Terá que ser pilotado
institucionalmente, mas decidir-se-á na transformação por que há-de passar o
tecido social. A simbiose destes dois planos será uma das condições do seu
êxito. Mas o seu inêxito, que não é impossível, tornará improvável a
sobrevivência da humanidade num registo que não seja de pesadelo.
Os ribeiros correm já, com a ambição de serem rios. E o mar é
o seu destino, crisálida que é necessário que consigamos ser colectivamente. A
orquestra de todas as lutas não precisa de um maestro, nem mesmo de uma oligarquia
de maestros. Precisa sim que os seus membros aprendam a solidariedade, a complementaridade,
a subtil conjugação das diferenças, a fraternidade das várias lutas, a emergência
rápida de um tempo sem fome, sem guerra, sem miséria, rumo a um futuro que é
necessário que pertença a todos.
Neste contexto, todas as lutas são úteis, todas as lutas são legítimas,
se apontarem para a urgência de uma metamorfoses que nos leve a superar o capitalismo
que nos garroteia, rumo a um futuro humano.Do mesmo modo, é cada dia mais gravosa a actual insuficiência
estratégica de todas as esquerdas organizadas, porque ela impede que
encontremos o caminho que nos espera, porque reduz uma política, que devia projectar-se
no futuro como esperança, numa mastigação triste de escolhas operacionais que
se repetem e de manobras tácticas mais ou menos previsíveis. E assim se deixa em paz o essencial do capitalismo, embora
sob uma vozearia aparentemente contundente. De facto, se é certo que a indignação dos explorados é estruturalmente justa,
legítima e necessária, se não lhe for dada a oportunidade para ser seiva de
um processo político global e transformador, pode esvair-se no desespero ou no desânimo.
4 comentários:
"-Porque chora?
-Choro, porque tenho medo que tudo isto seja em vão, e amanhã volte tudo ao mesmo" ... Resposta de uma jovem manifestante em Lisboa.
É um sentimento que se compreende. Mas tenho a certeza que muitos outros choraram porque sabem que o que aconteceu hoje, 15 de setembro, não vai ser em vão.
Aqui vamos nós lançados em quase família!
Não receio a vanidade desta acção que me emocionou até ao âmago.
As pessoas mostraram que sabem o que querem. Não vai haver truques, seja de quem for, que desmoralize,
que possa tapar o Sol com uma peneira. Mesmo depois de ouvir os comentaristas do costume. As palavras da rua não soavam a falso eram genuínas e puras.
Comentando o vosso artigo: só posso dizer que encheu-me as medidas!
Afinal, sempre nos importamos com a grande nau que somos nós portugueses.
Como já aqui disse nesta terra e neste povo da Moita que viu a republica a 4 de outubro de 1910 não vai parar, como saempre.
Um grande bem haja...
Sinto-me mais feliz...
Sinceramente...de "O Catraio"
Um valente anónimo, projectando-se a si próprio no insultado, fez um comentário insultuoso a uma pessoa exterior a este blog. Vou apagar esse comentário. Há lixo que escreve como se fosse gente. Mas este blog não é um caixote de lixo.
tu deves ser é esquizofrenico, falas sozinho pah
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