É inútil dissertar sobre as sondagens para, ao sabor do agrado ou desagrado que nos causem, as exaltarmos ou menorizarmos. Elas representam uma imagem das preferências dos eleitores numa dada conjuntura, embora não garantam que no futuro essas escolhas se mantenham. Mas menosprezá-las é desperdiçar um precioso indicativo do estado em que se encontra a opinião pública no plano político, num dado momento.
Se compararmos séries de sondagens, podemos ficar com uma ideia ainda mais consistente da provável evolução da relação de forças entre os vários partidos. Foi recentemente divulgada uma da responsabilidade do centro de sondagens da Universidade Católica que revelou, em comparação com uma outra anterior, um afundamento do PSD e uma subida relevante do PCP e do BE, bem como uma leve subida do CDS e uma ligeira descida do PS. Os partidos do governo reúnem agora 31 % das intenções de voto; e o conjunto de todas as oposições 55%. O trabalho de campo que suporta estes números foi feito depois das manifestações do passado dia 15, o que dá a estes resultados uma particular relevância. Sem ignorar o seu significado próprio, talvez valha a pena comparar os resultados das últimas três sondagens, levadas a cabo pela Universidade Católica
Um ano decorreu entre entre a primeira e a última. Verifica-se que o PSD perdeu 19%, mas que o PS, ao ter oscilado negativamente dois pontos, não conseguiu mais do que estagnar. Quanto ao CDS, ao ter subido um ponto, mesmo estando no governo, por comparação com o PSD pode dizer-se que evitou a usura de um governo impopular. O PCP progrediu 6% e o BE 5%, vendo-se assim que foram eles quem capitalizou parcelarmente a quebra do apoio ao Governo.
De facto, se compararmos os 49% de intenções de voto, que conseguiam os dois partidos do governo há um ano, com os 31 %, que conseguem agora, podemos ver o enorme grau de retracção desse apoio, aliás concentrada no partido dominante. Simetricamente, vê-se que o apoio concitado pela soma do PCP com o BE há um ano, 13%, quase duplicou, ao passar para 24%. Acrescentando-lhe os 31% do PS, ficamos com intenções de voto nos partidos de oposição, 24% acima das que se mantêm fieis aos partidos do governo. Eis uma diferença, cujo significado político não pode ser ignorado, tanto mais que ele será muito provavelmente sublinhado pela situação social.
Esta evolução deve ser lida em conjugação com a crise interna que explodiu no governo e com o clamor popular que teve uma ilustração expressiva nas grandes manifestações do passado dia 15. Expressividade tão marcante, que provocou uma patética manifestação de hipocrisia de vários apoiantes do governo, cujo desplante lhes permitiu sublinharam a presença de apoiantes do governo numa manifestação que, predominantemente, foi de resistência e protesto contra os seus desmandos.
As manobras institucionais, entretanto ensaiadas, não passaram de tímidas tentativas de ganhar tempo, talvez na esperança de que, por si só, ele desatasse o nó que o governo deu. É claro, que a presença reiterada de pequenas, médias e grandes manifestações, pedindo a demissão do governo, a expressa posição tomada nesse sentido pelo PCP e pelo BE, o salto qualitativo do PS na demarcação do governo, o rosnar matreiro do CDS para tentar limpar-se, a dessolidarização expressa de alguns barões do PSD, o desconforto das associações patronais, o subir de tom da CGTP na sua luta, a passagem da UGT para uma demarcação mais robusta da via seguida, somando-se, potenciam efeitos e contribuem para colocar o governo numa letargia desnorteada, que tende a reduzi-lo a um fantasma de si próprio. Tonou-se de facto um verdadeiro achado encontrar, fora do clube dos membros do governo e dos deputados do PSD e do CDS, alguém que assuma politicamente solidariedade com o governo. E mesmo dentro deste, sabemos como foi difícil o não estilhaçamento.
Mas se o governo da direita é agora um passeante furtivo dos corredores do poder, ansioso por que se esqueçam de que ainda existe, as oposições, instaladas na sua suculenta supremacia quanto a intenções de voto, não têm conseguido mais do que deixar na sombra a incómoda verdade de não serem, mesmo agora, capazes de abrir um caminho que possa ser percorrido por todo o povo de esquerda com naturalidade e esperança, sem hostilidades nem constrangimentos mútuos.Um caminho institucional que permita o exercício democrático do poder com uma base social sólida.
Pelo contrário, prosseguem com os seus proselitismos próprios, com agendas autónomas. E quase sempre fazem economia da questão das relações políticas entre si; mesmo que, uma ou outra vez, façam propostas de convergência das esquerdas. Mas fazem-nas de tal forma pré-condicionadas a mudanças nos outros potenciais parceiros que verdadeiramente parecem estar apenas a executar manobras de propaganda, tendentes a dourar o seu próprio brasão com o lustro da unidade, ao mesmo tampo que embaciam os alheios com o ónus da divisão.
Paralelamente, os cidadãos de esquerda, não organizados em partidos, agitam-se também. Os melhores querem realmente uma esquerda que possa unir-se num sistema de protagonismos conjugados. Alguns procuram mesmo entremear-se com militantes de partidos, para uma antecipação de dinâmicas interpartidárias fecundas. Estes são talvez os mais generosos ao aventurarem-se , sem reserva mental, a jogar num tabuleiro complexo e ingrato. Mas no estado actual das relações interpartidárias, será mais fácil encontrar militantes partidários que vejam nas realizações conjuntas oportunidades de pesca à linha, do que encontrarem-se cidadãos realmente abertos a contribuir para novas sínteses em que cada parte, sem dever renunciar à sua própria identidade política, não parta da premissa implícita de que é imperativo que as outras partes renunciem à sua identidade.
É claro que há também os místicos, ungidos de uma ilusão de auto-angelismo assente no facto de não serem militantes partidários; e, é claro, há também os "verdadeiros artistas" que se olham ao espelho com o optimismo imprudente de quem se acha em condições de procurar, sorrateiramente, em iniciativas politicamente abrangentes, o trampolim para mais ambiciosos alpinismos políticos. Ninguém é dispensável, nem mesmo os místicos e os artistas de pequena, média e grande dimensão, mas a bem de uma real obtenção de resultados, seria excelente uma pausa em todas as habilidades, renunciando cada partido e cada indivíduo à conversão dos infiéis, para se concentrar na conjugação de diferenças que provavelmente permanecerão.
Não esqueçamos que, aconteça o que acontecer, é improvável que com o centro fora dos partidos de esquerda se estruture uma alternativa, realmente aberta a um futuro. E mais do que isso, se o que é agora uma sombra episódica em algumas das manifestações ocorridas, ou seja, a rejeição de todos os partidos políticos pelo facto de o serem, evoluir para uma vendaval insalubre que marque novas conjunturas, corremos o risco de ficar à porta de um tempo vocacionado para acolher um qualquer fascismo. E, sem exagerar este risco mas sem o menosprezar, o mais certo é que ele só possa ser realmente apagado, se for conseguida uma saída de esquerda para a crise actual, um salto qualitativo no modo de ser da sociedade, que nos coloque numa rota de saída organizada do capitalismo, gradual , democrática e continuadamente.
Um consenso mínimo mas inequívoco quanto à necessidade de um caminho deste tipo é o ponto de partida indispensável para qualquer actuação conjunta, para a partilha de qualquer rota. Embora seja urgente chegar-se a esse consenso, não há dúvida que será difícil. O BE e o PCP têm que assumir que a tomada do poder pela força e o seu exercício posterior à margem da democracia desapareçam das suas agendas explícitas ou implícitas. O PS tem que se assumir como um partido reformista de transformação social rumo a um horizonte pós-capitalista, o qual para si há-de ser naturalmente socialista, rompendo com qualquer cumplicidade com as estratégias de regressão social e democrática que a ideologia neoliberal travestiu de "reformas estruturais".
Na verdade, se as rotinas de desunidade da esquerda se mantiverem intactas, não se vê que alternativa institucional poderá ser gerada numa perspectiva de superação da crise actual. Pensarão o BE e o PCP que podem apostar num crescimento que os leve a duplicar a força eleitoral que lhes atribui a última das sondagens referidas? Pensará o PS que pode romper com a estagnação, em que está mergulhado há uma ano no, para a converter em tempo útil numa inesperada expansão que o leve sozinho a uma maioria absoluta? Se assim acontecesse, em ambos os casos isso significaria que teria vencido o irrealismo.
Não é esta a ocasião para discutir esta questão em detalhe, mas, pelo menos no caso do PS, parece poder ter-se como adquirido que ele necessita urgentemente de inovação estratégica, já que nenhuma simples sucessão de alterações tácticas parece suficiente para o fazer dar o salto de que necessita. Talvez, por isso, o PS mais do que qualquer outro partido precisa de uma transformação profunda, ou seja, aquilo que alguns designam por metamorfose. Permanecer instalado no exercício burocrático da sua rotina politico-administrativa é uma passividade que lhe pode sair cara, levando-o a um risco crescente de irrelevância.