terça-feira, 24 de janeiro de 2012

HOMENAGEM, SAUDADE E MEMÓRIA













1. Prestemos homenagem aos que partem, com saudade mas sem melancolia. É isso que lhes devemos. Hoje, evoco um amigo, há pouco desaparecido, que não via há quase meio século: o Francisco Delgado.


O Xico Delgado foi expulso da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na sequência da Crise Académica de 1962. Algumas dezenas de estudantes, entre os quais me incluí, partilharam com ele a honra de terem sido expulsos da Universidade pelo governo fascista, vergonhosamente acolitado para o efeito pelo Senado da Universidade de Coimbra. Mas, além dele, só os membros da Direcção-Geral da AAC foram expulsos de todas as universidades portugueses. Todos os outros foram expulsos apenas da Universidade de Coimbra, pelo que puderam mudar de Universidade no ano seguinte. Um comunicado, saído em maio de 1962 em Coimbra, divulga os nomes dos estudantes expulsos e as penas que lhes foram aplicadas. O seu número 2 diz-lhe respeito : "Acusado de “ser de certo modo, mentor da consciencialização colectiva” (sic): Com dois anos de exclusão de frequência de todas as escolas nacionais: Francisco Delgado (CITAC)". Foi assim empurrado para o exílio. Na Suiça, passou do estudo da Filosofia para o da Psicologia, no âmbito da qual se viria a profissionalizar. Tal como aconteceu com outros exilados, não regressou a Portugal com o 25 de Abril de 1974. Veio cá muitas vezes, mas continuou a viver na Suiça.


2. Em Coimbra, a nossa cumplicidade adensou-se com a participação de ambos na aventura poética dos "Poemas Livres", cujo primeiro número saiu em plena crise de 1962. Nesta colectânea de poesia de resistência, além dele e de mim, participaram também o César Oliveira, o Ferreira Guedes e a Margarida Losa.

Dois meses depois, aos dois primeiros, ao Xico Delgado e a mim, juntaram-se o António Augusto Menano, o Fernando Assis Pacheco, o José Carlos de Vasconcelos, o Manuel Alegre e o Rui Polónio Sampaio, para uma nova iniciativa poética: "A Poesia Útil". Com um poema de cada um, o fruto das respectivas vendas reverteu para um fundo, destinado a compenesar as perdas inerentes à não realização da Queima das Fitas, votada pelos estudantes por causa da crise. Em 1963, foi publicado o nº 2 dos "Poemas Livres". Além dos cinco participantes no primeiro número, colaboraram nesta nova colectânea o António Manuel Lopes Dias, o Eduardo Guerra Carneiro, o José Carlos de Vasconcelos e o Manuel Alegre.


O Xico Delgado e alguns dos outros não participaram no terceiro número dos "Poemas Livres", saído em 1968. Mas nesta terceira colectânea, participaram pela primeira vez, Armando da Silva Carvalho, Fernando Assis Pacheco, Fernado Miguel Bernardes, Luís Guerreiro, Luís Serrano e Manuel Alberto Valente.


O Xico Delgado teve poemas seus integrados na "Antologia de Poesia Universitária", publicada pela Portugália em 1964. Esta antologia incluiu estudantes, quer de Lisboa, quer de Coimbra,tendo sido promovida pelas Inter-culturais da Academia de Lisboa, que encarregaram da sua organização, um grupo de estudantes constituído por Alfredo Barroso, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, J.M. Vieira da Luz e Rui Namorado. Mais tarde, o Xico Delgado passou a publicar poesia directamente em francês. Tenho à minha frente e reli com prazer: "Dire l'amour" (1978) e "Rompre le silence"(1981).


3. Nesta evocação quero recordar um episódio ocorrido, em Coimbra, durante os dias escaldantes da crise de 1962. Os estudantes tinham aceitado sair da sede da AAC, cercada pela polícia de choque, para corresponderem a um esforço de mediação de um grupo de professores da UC, que se dispuseram a promover uma saída negociada para o conflito que opunha os estudantes e as autoridades universitárias. Todavia, o máximo que esse grupo conseguiu obter destas últimas não foi considerado satisfatório pela Assembleia Magna, reunida no Campo de Santa Cruz , uma vez que estava encerrada a sede da AAC no Palácio dos Grilos. Por isso, a proposta veiculada pelos professores foi rejeitada.

O corolário natural dessa rejeição era o regresso à sede da AAC, donde só tinhamos saído para permitir uma negociação. Falhada a negociação, haveria que voltar ao Palácio dos Grilos. Mas se tal fosse votado expressamente no Campo de Santa Cruz, quando chegássemos ao Palácio dos Grilos já lá estaria a polícia e não conseguiríamos entrar. Por isso, a decisão não foi formalmente tomada, tendo apenas sido passada a palavra de que iríamos até ao Pátio da Universidade. Apenas alguns foram informados da razão dessa ida. Umas centenas de estudantes deslocaram-se assim até lá. Haviam sido distribuídas tarefas pela Direcção-Geral. A mim , aos irmãos Luís e Pedro Lemos e a mais alguns, cabía-nos promover o arrombamento da Torre da Universidade para fazer tocar a "cabra". Ao Xico Delgado coube um papel crucial. Chegados ao Pátio da Universidade era preciso dar o passo seguinte: ir para a sede da AAC, entrar arrombando a porta e reocupá-la. Mas alguém tinha que o propor. Foi essa a missão do Xico Delgado. Subindo alguns degraus da escada que desce da Via Latina para a Porta Férrea, perante algumas centenas de estudantes, em breves palavras, incisivas e cortantes como a ocasião exigia, apelou a que regressássemos à sede da AAC. Assim aconteceu. Era perto. A polícia não podia chegar antes de nós. Não chegou. Entrou-se pela Filantrópica. Menos de uma hora depois o Palácio dos Grilos estava completamente cercado pela polícia de choque.

À noite, os estudantes manifestaram-se na rua em solidariedade com os colegas cercados. Foram dispersos brutalmente, pela polícia. Às quatro da manhã o Palácio dos Grilos foi assaltado pela PSP e pela PIDE. Todos os que estávamos lá dentro fomos transportados em carrinhas para o quartel da GNR na Av. Dias da Silva. Aí a PIDE identificou-nos um por um. Seleccionou trinta e nove homens e quatro mulheres. As quatro mulheres ficaram em Coimbra, presas na sede da PIDE. Os trinta e nove homens foram de imediato enviados para o Forte de Caxias. Viagem de chumbo, imensa e fria; madrugada que ia abrindo dentro de si uma noite de incerteza. O que nos ia acontecer ? Por quanto tempo iríamos estar presos ? O Xico Delgado fez essa viagem; e eu também. Foram apenas alguns dias no Forte de Caxias, mas naquela soturna manhã de maio, nós ainda não sabíamos se iriam ser dias, meses ou anos.


4. Esta breve peregrinação por algumas memórias é já uma homenagem e um marco de saudade, mas em nome dessa breve irmandade poética de resistência que foram os "Poemas Livres", recordando a oficina colectiva daquele primeiro número quero aqui deixar um outro tipo de homenagem, um poema.


Trajecto
- em homenagem ao Francisco Delgado

A raiva que escreveste em cada folha
nasceu, pedra por pedra, neste chão;
vertigem de um destino que nos cerca.

Escolheste o coração do que há-de vir,
estiveste longe por sentir saudade,
mas foi aqui que respiraste o sonho.

Houve um vento selvagem no deserto
que habitámos à força quando jovens,
mas o vento mais vento fomos nós.

Uma viagem longa te inventou,
não foste a folha seca que perdesse
o caminho que tinhas procurado.

Mas a neve dos meses encontrou-te
e os anos corroeram tuas horas;
teu nome ficou escrito na saudade.

Sobem de novo em nós tuas palavras
e nos teus versos regressaste inteiro,
sem sombras, sem mágoas, sem limites.


[ Rui Namorado]

2 comentários:

JGama disse...

"Escolheste o coração do que há-de vir,
estiveste longe por sentir saudade,"

Belo, Rui.
Como são infinitas as palavras do poeta na invenção de sentidos!

marceloribeiro@netcabo.pt disse...

Muito comovido e triste li o teu texto e tomarei a liberdade de o transcrever tal e qual no inc esperando que não leves a mal.
Um forte e sentido abraço abraço deste teu amigo
M.