quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

A incómoda mensagem de uma recente sondagem


Sob o manto diáfano da fantasia
a nudez forte da verdade.

A incómoda mensagem de uma recente sondagem

1. Sem ser uma novidade, o modo como tem sido noticiada a partir da sua fonte (O Observador) a mais recente sondagem por ele divulgada reflecte com clareza todo um programa político, ainda que de certo modo dissimulado.

De facto, noticia como se fosse o espelho fiel da realidade política o contraponto entre o PS , por um lado e  uma alegada “direita junta”, por outro. O PS teria 40,3% e essa alegada “direita junta” teria 41,1 % . A mensagem subliminar é simples: a competição que conta é entre esses dois pólos.

De uma penada, faz-se desaparecer a extrema-direita (neofascista), que assim se branqueia implicitamente; esquece-se a autonomia da direita democrática, evitando-se  que  se mostre reduzida a uns escassos 32,7 % , nos quais o PSD fica  encurralado com os seus 28,5%. Aliás, muito longe do PS; o que também se esquece.

Ao mesmo tempo,  apaga-se da relevância  o centro político (PAN- 2,2%) e as outras esquerdas( 10,8 % [BE 5,5% + CDU 5,3 %]) . Ou seja, os 8,4% do Chega e os 4,2 da direita democrática não-PSD contam, mas os 13% do centro e dessas esquerdas não existem.

2.Uma sondagem não é uma antecipação segura de um futuro resultado, mas a proximidade relativa dos panoramas projectados por cada uma delas reforça a probabilidade de conterem previsões criveis. Destes resultados, se os compararmos com os resultados das eleições legislativas de 2019, ressaltam algumas constatações:

1º A campanha da direita e da extrema-direita, acolitadas por uma boa parte da comunicação social, apesar de uma intensa barragem de propaganda nesse sentido, não têm conseguido transformar o mérito deste governo num fracasso;

2º A direita democrática atinge nesta sondagem uns modestos 32,7%, abaixo dos 33,27 % que conseguiu em 2019.

3º A extrema-direita (neofascistas) subiu de 1,29% para 8,4%.

4º O PS subiu de 36,34 para 40,3%, isto é, cerca de 4%.

5º As esquerdas exteriores ao Governo do PS passaram de 15,88 % em 2019, para 10,8% nesta sondagem. Mas esta descida depende de duas parcelas desiguais: o BE desce 4% e a CDU cai 1%.

5º Se considerarmos o PAN como sendo o centro político, constatamos que perdeu cerca de 1 % (3,32/2,2 %).

Daqui podem tirara-se algumas conclusões.

1ª O tipo de campanha política contra o actual Governo, feita pelos partidos de direita e de extrema-direita, bem como pela matilha mediática que os acompanha, beneficiou principalmente o Chega (+ 7,2%) e apenas ligeiramente a IL (+1,2%) e o PSD ( +0,8%). Nada aproveitou ao CDS (- 2,4%). Globalmente, a soma da direita e da extrema-direita aumentou 6,6 % (de 34,56% para 41,1). Ou seja, só beneficiou significativamente  o Chega.

2ª Não o fez, no entanto, à custa da esquerda no seu todo, a qual desceu apenas  de 52,19% para 51,4 % e continua com uma vantagem superior a 10% em face do outro conjunto antes referido. Mas esta relativa estabilidade não é interiormente homogénea: o PS sobe 4%, o BE desce 4% e a CDU perde 1%. Parece que ser o partido do governo não foi penalizador, mas a demarcação em face do governo dentro da esquerda não entusiasmou os respectivos eleitores. Pode mesmo dizer-se que o modo de distanciamento/oposição, nestes casos, foi quatro vezes mais penalizador para o BE do que para a CDU.

3º Sem os neofascistas do Chega a direita democrática não tem como expectativa realista chegar ao governo proximamente, mas mesmo com o seu concurso está muito longe de poder considerar essa hipótese como provável.

4º Uma colocação em minoria do conjunto das esquerdas em próximas eleições parece improvável, como  também o parece a conquista de uma maioria absoluta pelo PS. Mas o exacerbar do urgentismo antigovernamental e duma hostilidade ao actual governo que possa favorecer a direita podem suscitar uma deslocação de voto favorável ao PS no seio do conjunto das esquerdas. E com base nos resultados desta sondagem parece que este exacerbar da hostilidade ao governo é o único caminho que pode tornar provável uma maioria absoluta do PS.

Principais conclusões finais a retirar :

I-                 As campanhas feitas a partir das várias direitas e da extrema-direita têm beneficiado o Chega, de pouco tendo aproveitado aos partidos da direita democrática  e não tendo afectado negativamente  o PS.

II-              A via seguida pelo BE a partir da votação do orçamento, parecendo levá-lo a combater o governo, tem-se virado afinal contra ele próprio.

 


segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Notícias [quase] de última hora e quiçá em confirmação

 

Fontes geralmente bem informadas asseguram que o grupo parlamentar do PSD, forte por ter ordenado à Srª Lagarde  para vir ser interrogada  à AR, decidiu convocar com urgência São Pedro para vir  justificar o excesso de chuva na Madeira.

No mesmo sentido, mas sem confirmação, constou que Passos Coelho, cansado pela demora do diabo e não querendo ter que chamar diabo a tudo o que mexa ainda que ligeiramente contra o Governo, mandou os passistas do grupo paralmentar convocarem como urgência o diabo à AR, para explicar a razão pela qual não chegou quando devia.

Há um novo entusiasmo em território laranja, ainda que com uma ligeira preocupação fluvial.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Uma lição do povo boliviano

Na Bolívia, no último trimestre de 2019, um golpe de Estado desencadeado pela direita e pela extrema direita e materializado pelas polícias e pelas forças armadas, interrompeu o processo eleitoral, cuja primeira volta havia já decorrido, tendo derrubado o Presidente Evo Morales que havia concorrido a essas eleições e vencera a primeira volta.

  Os futuros golpistas não questionaram que ele tivesse obtido o maior número de votos, mas apenas que tivesse ganho a primeira volta com a margem suficiente para ser considerado vencedor sem ser obrigado a disputar uma segunda volta. A demora na difusão dos resultados e as oscilações nos que foram surgindo foram usadas como pretexto para que a direita e a extrema-direita instalassem o caos nas ruas, perante a complacência das polícias e dos militares que rapidamente se converteu em apoio e cumplicidade.

  O golpe de Estado nem sequer consentiu na realização da segunda volta das eleições, traduzindo-se em obrigar Morales a deixar o poder e em dissolver os órgãos políticos legítimos. Apenas foi conservado o poder político das minorias de direita na Câmara e no Senado, sendo instalada na chefia do Estado uma senadora de extrema-direita pertencente a uma pequena minoria. Sucederam-se tempos de revolta popular reprimida com violência.

Os regimes conservadores e direitista da América latina fizeram coro contra Morales e legitimaram o golpe. A OEA foi cúmplice. A União Europeia consentiu molemente no golpe de estado, numa atitude de ambígua hipocrisia. Na Bolívia esqueceu-se de agir com o mesmo critério que tem usado na Venezuela.

Recentemente, uma insuspeita instância internacional tornou público que afinal não detetara a real existência de irregularidades no processo eleitoral de 2019. As tais irregularidades que foram alegadas como pretexto para o golpe de estado. Os golpistas e seus patronos internacionais ainda conseguiram exilar Morales e o seu vice-presidente, anular as eleições e proceder a uma guinada àa direita da política boliviana. Não conseguiram evitá-las.

Decorreram há poucos dias, já durante este mês de outubro. O MAS ( Movimento para o Socialismo) apresentou como candidato Luis Arce ex-ministro da Economia de Morales durante os seus vários mandatos. Apresentou candidatos nas eleições parlamentares. Este candidato foi eleito à 1ª volta com mais de 55% dos votos, superando largamente os 47% de votos que Morales havia alcançado no ano anterior na 1ª volta das eleições anuladas. O candidato da direita ficou muito longe e o da extrema-direita ficou-se por um terceiro lugar inexpressivo. O MAS dispõe por si só de maioria parlamentar.

 Em breve, a democracia será restabelecida na Bolívia, para vergonha dos que tentaram afogá-la em 2019 e dos que como a União Europeia foram cúmplices dissimulados do golpe.

Este gráfico mostra os resultados das eleições da semana passada. A azul está a posição do do candidato do MAS, a castanho do candidato da direita e a roxo o candidato da extrema direita.

domingo, 18 de outubro de 2020

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Homenagem à República!

 

Várias vezes, homenageei o 5 de Outubro de 1910, reproduzi neste mesmo blog um poema da minha autoria, do livro "Nenhum lugar e sempre"(2003). Hoje, volto à homenagem





República

És a estátua do vento e das palavras
que inventamos ousadas e inteiras.

Foste penhor secreto de uma voz
desvendada em todos os caminhos.

Deusa das ruas e de muitas praças,
és um ofício, paciente e puro.

Olhaste além de nós, além do medo
e foste além de todas as fronteiras.

Há uma lenda inscrita no teu rosto:

és sonho esculpido em aventura.


Suavemente, guardas este povo,
num gesto de ternura, em tuas mãos.

E alguém deixou abertos no teu rosto
os traços fugidios da liberdade.

domingo, 13 de setembro de 2020

A matilha mediática e os seus senhores

 


A matilha mediática, megafone insalubre da direita, uiva raivosa contra António Costa, contra o Governo, contra o PS. Hoje o pretexto é A, ontem foi X, amanhã será Z. Ora trovejante, ora melíflua. Ora brutal, ora florentina. Incansável, hipócrita, rasteira. Usando o estipêndio dos poderes fácticos, por vezes abusando sem pudor de recursos públicos.

Ocorre-me irresistivelmente, um velho provérbio: “ Se atirares pedras aos cães que te ladram, nunca chegarás ao fim do teu caminho”.

Espreguiço-me com tédio pelo viscoso alarido e cometo  uma pergunta simples: “Se a matilha mediática e os seus senhores, por insidiosa obra do mafarrico, assumissem sem peias o poder político, de quantas semanas precisariam para destruir Portugal?” Não sou capaz de responder com segurança, mas receio que não fossem muitas.

sábado, 12 de setembro de 2020

Banalidades de base -1

 Banalidades de base -1

Se a acutilância da lucidez suscitar um pessimismo tão  radical que não deixe aberta para o futuro a mais pequena janela de esperança, estar-se-à apenas a gerar desespero e a ser um poderosos fator de conformismo. Quando isso acontece, os beneficiários da injustiça e da desigualdade agradecem.

Por isso, é dever dos justos nunca deixarem de procurar abrir janelas de esperança, quando tiverem que percorrer as caves do pessimismo.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Socialista, republicano e laico

 Um dia, Mário Soares identificou-se politicamente como republicano, socialista e laico. Hoje, assistiu-se à adesão a essa trilogia de uma deputada europeia do Bloco de Esquerda, no anúncio público da sua candidatura à Presidência da República.

É uma aproximação objetiva e simbólica. Em termos pessoais e meramente psicológicos ,talvez signifique pouco. Quiçá, apenas a procura de uma ressonância subtil.

Mas quem procurar surpreender os grandes movimentos sociopolíticos estruturais, pode talvez ver aqui o prenúncio do que será um dia a chegada do BE ao PS.

No imediato, pode parecer um vaticínio delirante, especialmente pelas resistências psicológicas que isso possa enfrentar numa parte dos principais atores políticos. Mas, não é menos certo, que no seio das esquerdas vai ser preciso fazer um ruído cada vez maior, para se transformarem pequenas diferenças em grandes divisões.

domingo, 6 de setembro de 2020

17- UM LIVRO, UM POETA - José Gomes Ferreira

 


17. UM LIVRO, UM POETA - José Gomes Ferreira

José Gome Ferreira  nasceu no Porto em 1900, tendo morrido em Lisboa  em 1985. Embora literáriamente não se tenha limitado à poesia, foi aí que deixou marcas mais fundas. Licenciado em Direito em 1924, exerceu funções diplomáticas até 1930. Antes de se afirmar como poeta, tentou uma carreira como compositor, que viria a abandonar, chegando a ver a sua obra Suite Rústica estreada em Lisboa, pela orquestra de David de Sousa, quando o poeta  tinha 17 anos.

Com José Gome Ferreira,  as palavras libertam-se, para gritarem mais alto a imaginação da revolta. Nunca vêm sozinhas. Trazem sempre com elas o perfume trágico da vida e como ruído de fundo insuportável o sofrimento dos povos. José Gomes Ferreira nunca deixa adormecer as palavras nos lugares comuns. Abre as portas com elas aos jardins da amargura e escreve nas paredes a sua liberdade.

Poeta que os neo-realistas sentiam como irmão, fugia de qualquer possível cânone pela sua irreprimível originalidade. E, no entanto, um livro seu esteve para integrar a coleção do Novo Cancioneiro, o que só não aconteceu por circunstâncias extra-literárias e acidentais. Se afinal isso tivesse acontecido, a descoincidência geracional  teria sido secundarizada pela partilha da coleção fundadora. Essa comunhão teria talvez  tornado mais nítido que o verdadeiro cerne da poesia neo-realista talvez  não fosse  um cânone estético ou literário, sob uma égide ideológica discretamente omnipresente, mas principalmente a partilha de uma revolta moral , de uma insurreição ideológica libertadora, de uma fome ilimitada de liberdade para todos. Talvez , as circunstâncias cronológicas e geracionais tenham  suscitado uma ressonância humanizante e trágica no seu intimismo presencista, levando-o à qualidade de “poeta militante” que expressamente assumiu como ambição telúrica de um mundo mais justo e livre.

Vai ser aqui evocado através de quatro poemas publicados na “Poesia I”, em 1948 (1ª edição), mas que haviam sido escritos ( como é expressamente mencionado) entre 1931 e 1938. Ou seja, foram escritos quando a geração do Novo Cancioneiro estava ainda a despontar, publicados quando ela já tinha irrompido com robustez. O primeiro, aliás, foi considerado pelo próprio autor o poema que materializou uma viragem decisiva rumo ao que viria a ser o seu universo poético.




Viver sempre também cansa  (1931)

 

 

Viver sempre também cansa!

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens não se transformam
Não cai neve vermelha
Não há flores que voem,
A lua não tem olhos
Ninguém vai pintar olhos à lua

Tudo é igual, mecânico e exato

Ainda por cima os homens são os homens
Soluçam, bebem riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à morte!

Pois não era mais humano
Morrer por um bocadinho
De vez em quando
E recomeçar depois
Achando tudo mais novo?

Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses
Morrer em cima dum divã
Com a cabeça sobre uma almofada
Confiante e sereno por saber
Que tu velavas, meu amor do norte.

Quando viessem perguntar por mim
Havias de dizer com teu sorriso
Onde arde um coração em melodia
Matou-se esta manhã
Agora não o vou ressuscitar
Por uma bagatela

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo..

 

Comício (1934)

 

Vivam, apenas.

 

Sejam bons como o sol.

Livres como o vento.

Naturais como as fontes.

 

Imitem as árvores dos caminhos

que dão flores e frutos

sem complicações.

 

Mas não queiram convencer os cardos

a transformar os espinhos

em rosas e canções.

 

E principalmente não pensem na Morte.

Não sofram por causa dos cadáveres

que só são belos

quando se desenham na terra em flores.

 

Vivam, apenas.

A Morte é para os mortos!

 

O nosso mundo é este

 

(último poema do “Panfleto contra a paisagem” -1936/37)

O nosso mundo é este
Vil suado
Dos dedos dos homens
Sujos de morte.

Um mundo forrado
De pele de mãos
Com pedras roídas
das nossas sombras.

Um mundo lodoso
Do suor dos outros
E sangue nos ecos
Colado aos passos…

Um mundo tocado
Dos nossos olhos
A chorarem musgo
De lágrimas podres…

Um mundo de cárceres
Com grades de súplica
E o vento a soprar
Nos muros de gritos.

Um mundo de látegos
E vielas negras
Com braços de fome
A saírem das pedras…

O nosso mundo é este
Suado de morte
E não o das árvores
Floridas de música
A ignorarem
Que vão morrer.

E se soubessem, dariam flor?

Pois os homens sabem
E cantam e cantam
Com morte e suor.

O nosso mundo é este….

( Mas há-de ser outro.)

 

Heróicas (1936/37/38)

VII - (Junto a minha voz ao coro dos poetas mais novos.
Recuso-me a ter mais de vinte anos.)

               

Não, não queremos cantar 
as canções azuis 
dos pássaros moribundos. 

Preferimos andar aos gritos 
para que os homens nos entendam 
na escuridão das raízes. 

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes 
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição. 
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas 
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros. 
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto 
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto. 
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária 
a falarem de amor 
ao pé duma máquina de tempestade 
a soluçar cidades de fome 
na cólera dos ruídos... 

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há melhor orgulho 
do que o nosso destino 
de nascer em todas as bocas... 

...Nós, os poetas viris 
que trazemos nos olhos 
as lágrimas dos outros.

                       

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

16- UM LIVRO, UM POETA - Alexandre O´Neill

 


16- UM LIVRO, UM POETA -   Alexandre O´Neill


Finalmente, regresso à evocação de poetas que,  por uma ou outra razão, me marcaram. De cada um deles, transcrevo alguns poemas, antecedendo-os de um brevíssimo comentário.Hoje, é o décimo-sexto.

Vou evocar Alexandre O´Neill, poeta português nascido em Lisboa em 1924, onde viria a  morrer em 1986. Embora correntemente conotado com o surrealismo, tem uma estatura poética que o projecta autonomamente no panorama literário português, como voz única de uma ironia implacável mas terna. Uma ironia que interpela os portugueses, com os quais sempre se mistura , sem complacência, mas com uma íntima fraternidade.Impregnado por um lirismo satírico que não esquecia o cinzento-chumbo que cobria o Portugal de então,diverte-se com esse país de governantes pequenos que não o deixavam respirar. Com uma alegria melancólica que é, às vezes, uma ironia a que ele próprio não se poupa.

Os quatro poemas hoje transcritos integram uma colectânea que abrange a sua obra poética entre 1951 e 1965. Tem como título "O Reino da Dinamarca" e data de 1967.Este é também o título do livro que publicou em 1958, o qual é uma parte dessa colectânea. Nele estão integrados os poemas "Se..." e "Um adeus português". Já o poema "Perfilados de medo" integrou o livro "Poemas com Endereço"(1962), enquanto "Portugal" é o poema de abertura da "Feira Cabisbaixa"(1965).


Se…

 

Se é possível conservar a juventude
Respirando abraçado a um marco de correio;
Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora e a mordeu
Deixando-a em estado grave;
Se ao descer do avião a Duquesa do Quente
Pôs marfim a sorrir;
Se o Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;
Se na América um jovem de cem anos
Veio de longe ver o Presidente
A cavalo na mãe;
Se um bode recebe o próprio peso em aspirina
E a oferece aos hospitais do seu país;
Se o engenheiro sempre não era engenheiro
E a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;
Se reentrante, protuberante, perturbante,
Lola domina ainda os portugueses;
Se o Jorge(o "ponto" do Jorge!)tentou beber naquela noite
O presunto de Chaves por uma palhinha
E o Eduardo não lhe ficou atrás
Ao sair com a lagosta pela trela;
Se "ninguém me ama porque tenho mau hálito
E reviro os olhos como uma parva";
Se Mimi Travessuras já não vem a Lisboa
Cantar com o Alberto...

...Acaso o nosso destino,tac!,vai mudar?



UM ADEUS PORTUGUÊS


Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal 

*

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

 

 

PERFILADOS DE MEDO


Perfilados de medo,agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos,do que não seremos.

Perfilados de medo,sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos,os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido
...



PORTUGAL

 

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

                               *


Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós . . . 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O rosto da memória

 

É o tempo ou sou eu quem envelhece

nesta neve que fica nos cabelos?

 

Talvez outono com as cores de inverno,

subindo as escadas da melancolia.

Talvez sopro secreto da memória,

navegando por mim sem o saber.

 

Vem depois o perfume das palavras,

inventando futuro em pensamento,

colhendo cada dia sem temor

para dizer as cores da primavera.


            [ Rui Namorado]

segunda-feira, 6 de julho de 2020

O insustentável ranking dos campus




O insustentável ranking dos campus


Uma scuola d´economics próxima do Tejo, muito bem situada nos rankings da excelência científica neoliberalmente certificada, foi notícia por se ter sabido que admoestou discretamente uma das suas professoras por ela ter mostrado publicamente algum desalinhamento,em face da ciência autorizada pelos mecenas da referida scuola.
Enquanto a vida vai correndo junto ao Tejo com a mansidão possível, os povos vão sendo anestesiados por uma certa ciência económica rigorosamente exata que lhes explica a verdade férrea que lhes demonstra por que razão é bom para os pobres continuarem pobres, os explorados continuarem explorados e os excluídos continuarem excluídos. Ao mesmo tempo que os informa com apurada objetividade do impessoal resultado científico (afinal quase um sacrifício) para o capital financeiro continuar a inchar, emagrecendo povos e anulando países. A inchar e indiretamente a poluir. Muito.
Entretanto, alguns graves numerólogos muito inteligentes, diplomados pelas mais excelsas escolas de negócios (de negócios, como eles altaneiramente nos concedem ) mostram, como se ensinassem uma sofisticada e impessoal tabuada às multidões em sobressalto, que os problemas do mundo se resolvem, em última instância, com a eternização da miséria de quase todos, em nome de um bem-estar de excelência dos poucos mortais de que o capital precisa para sugar os humanos.
As scuolas d´ecomics que ao redor do mundo pesquisam e blindam esta verdade, tão conveniente para poucos e tão tóxica para muitos, podem confiar em generosos financiamentos para campus, para projetos de rigorosa ciência que confirme as verdades autorizadas, para rankings de pomposas excelências, para prémios de banqueiros com alcunha de nóbeis, para lugares não executivos em cúpulas rentáveis.
Até compreendo a preocupação dos grandes consórcios que sugam a humanidade. Não é fácil convencer os povos sugados que as sangrias só lhes fazem bem. Até porque a realidade desobedientemente teima em deixá-los mais e mais anémicos. Também por isso, é um recurso estrutural para os grandes agentes do grande capital terem o maior número de scuolas d´économics devidamente domesticadas, a cientificarem-lhes as lendas, em operações de alta matemática e de baixo teor ético.
Temos que compreender? Mas vamos aplaudir ou apupar? Deixamos que as burocráticas sereias dos alegados negócios nos conduzam à guilhotina simbólica da aceitação conformista? Ou damos um pontapé na mesa e dizemos (salvo o devido respeito) vão enganar as vossas avozinhas?!!!
 

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Radicalidade ─ nem urgentismo, nem conservadorismo



                                        Quadro de Chagall
Radicalidade ─ nem urgentismo, nem conservadorismo                                                            
1.A emergência climática, os riscos pandémicos e a constância das desigualdades socioeconómicas agravaram a toxicidade do capitalismo.
O sofrimento coletivo, a angústia prospetiva, a dissipação cultural criam uma atmosfera política cada vez mais insalubre, aberta a todos os desesperos. Os horizontes de esperança tendem a reduzir-se a miragens.
O combate por uma sociedade nova, para superação dos pesadelos que assombram o nosso presente, exige, cada vez mais, o fim da sofreguidão imediatista e políticas suficientemente inscritas no horizonte, para comportarem e até exigirem a opção por estratégias de longo prazo. Estratégias suscetíveis de visarem com verosimilhança transformações radicais da sociedade, de modo a que os estrangulados pelo modelo vigente, as vítimas das desigualdades atuais, se sintam impelidos e motivados a partilhar um caminho que leve a essas transformações. E só a exploração do fundo das questões, pelo exercício de uma radicalidade crítica, pode mostrar-nos o caminho. Se o longo prazo não impregnar o cerne do curto prazo, dando à utopia uma realidade imediata como esperança verosímil, dificilmente se poderá incorporar na nossa imaginação um futuro à medida dos grandes sonhos que movem a História. E se essa esperança nos fugir, estar-se-á mais perto de um desespero sem margens e do risco de caóticas automutilações das sociedades.
A radicalidade política passou, por isso, a ser uma condição indispensável do êxito de qualquer processo democrático de transformação social. Na verdade, sem se recusar desde a raiz o modo capitalista de reprodução da vida social não se dá verosimilhança a um tipo de futuro por que valha a pena lutar, não se abre uma janela de esperança que permita que respire quem atualmente suporta o maior peso da injustiça social.
Mas não pode nunca esquecer-se que a radicalidade política não é sinónimo de urgentismo. Especialmente, se for um urgentismo que embora se conforme com a eternização das árvores velhas lhes exija depois que deem frutos novos. Um urgentismo que, sentando-se apoplético à sombra das laranjeiras, lhes exija com veemência que passem a dar maçãs. Ora, já diziam os oráculos na antiguidade, que, por mais assustadas que fiquem, as laranjeiras nunca poderão dar maçãs. Mesmo que seja trovejante a vociferação dos urgentistas, as laranjas poderão no máximo dos máximos nascer um pouco mais doces, sem no entanto desaparecer o risco de afinal nascerem ainda mais amargas.
Na verdade, só uma radicalidade política, que aponte com verosimilhança e clareza para a metamorfose do modo de vida presente, será capaz de mobilizar as vontades de mudança suscetíveis de se fundirem numa dinâmica social transformadora. Só essa radicalidade geradora de uma metamorfose superadora do capitalismo, rumo a uma economia humana que possa ser o rosto de um pós-capitalismo, trará os povos para o interior da esperança.
De nada adiantará mastigar velhas soluções como se fossem novas. Nem mesmo recorrendo à lucidez crepuscular do velho leopardo, genialmente inventado por Giuseppe T. di Lampedusa, quando percucientemente sugeria a necessidade de se mudar tudo para que tudo pudesse ficar na mesma. De nada adiantará maquilhar de inovadoríssimas velhas receitas, cuja última razão de ser é a conservação aconchegada do modelo capitalista atual.
E não é possível também que se ache suficiente e eficaz o simples apedrejamento virtual do neoliberalismo, identificando-o como doença infantil e passageira de um capitalismo que afinal até se quer ver livre dele. E uma vez curado regressará provavelmente a si próprio, salvando-nos finalmente a todos. Não salvaria.
Por isso, não faz sentido acolher calorosamente, nas hostes que combatem o neoliberalismo, os ex-chefes das orquestras que o têm interpretado diligentemente, para que todos em fraterna cumplicidade apupemos ferozmente as sinfonias que eles próprios regeram até ontem; e cujo apedrejamento nos convidam hoje a partilhar. É que, em última instância, a hipocrisia política (quando subtil) pode driblar os incautos, adormecê-los com flautas mágicas, mas acabará por esbarrar na realidade. Nunca se deve confiar nos lobos para liderarem a resistência dos cordeiros.
Também não podemos deixar-nos escorregar para uma radicalidade indolente que se deixe dormir à sombra da sua própria lucidez. Pelo contrário, a lucidez da radicalidade crítica só é fecunda animada por uma inquietação permanente. Temos que valorizar uma radicalidade tensa e ativa, capaz não só de fazer pontes como de traçar fronteiras. Uma radicalidade em movimento.
Na verdade, uma radicalidade apenas paciente poderá ver esfumar-se rapidamente todo o seu potencial futurante. Desde logo, não pode fugir do combate às secreções mistificatórias da ideologia conservadora dominante, a ideologia de conservação do capitalismo, sempre enroupada por um discurso dogmático travestido de científico, numerologicamente condimentado. É preciso arrancar os narizes de cera que contaminam o espaço público, desfazendo as evidências que escondem a realidade. A radicalidade propositiva não dispensa, no entanto, uma tonalidade crítica que se questione a si própria, para que a coerência não possa ser confundida com dogmatismo e a persistência com teimosia. Uma radicalidade nunca inflexível, mas sempre vertical; sempre prudente, nunca pusilânime.
Por isso, esta radicalidade transformadora, centrada num horizonte emancipatório, que se assume como gradualista para poder ser profunda, só pode afirmar-se autenticamente no seio de um processo único em que se conjugue com a intensificação da democracia em todas as suas dimensões, em todas as instâncias. Uma democracia ao mesmo tempo modo de ser e objetivo parcial da metamorfose desejada; mas que é exigível desde já para que nela as ideias transformadoras se possam confrontar livremente com o conservadorismo dominante, para que vencendo-o, convençam, impregnando duravelmente as consciências, conquistando uma hegemonia robusta.
Nunca esqueçamos no entanto, que a recusa do urgentismo, a opção pelo gradualismo, o respeito pelas necessidades de amadurecimento dos processos, não pode converter-se numa complacência indutora de lentidão. Lentidão que fará aumentar o risco de paralisia e colapso de uma possível transformação e poderá bloquear a metamorfose almejada.

2. Feito este enquadramento, olhemos mais para o imediato. É um lugar-comum o alvitre de que a pandemia em curso vai mudar o mundo. Uma insidiosa e difusa neblina lança no entanto alguma incerteza sobre o significado desse alvitre.
Parece, às vezes, tratar-se de um voto de urgência quanto à necessidade de se caminhar com celeridade para um mundo mais justo; de uma consciência mais aguda e mais generalizada de que a insistência na conservação de um tipo de sociedade indutor de desigualdade, de pobreza e de exclusão é insuportável. Mas não deixa também de às vezes nos sobrevoar como ave agoirenta a ideia difusa de que o fruto da mudança, que se sugere já estar consumada, é um tempo de sacrifício que apenas  nos cabe estoicamente suportar.
O mundo mudou, dizem insistentemente as sereias do óbvio. Ora, fazer a constatação de que o movimento dos vários planos da vida e da sociedade é indutor de uma cadeia de mudanças na superfície das coisas e na pele dos dias, podendo ser um mero sinal de realismo, não deixa de poder ter uma ressonância perversa. Na verdade, a circunspecta proclamação de que o mundo mudou (já mudou), pode sugerir que isto que aí está e que tanto nos esmaga já é um aspeto, um fruto, uma antecipação dessa mudança. Não é. Mas, além de assim se poder sugerir que a estagnação é a mudança possível, pode subliminarmente induzir-se a ideia conservadora de que, uma vez que o mundo já mudou, perdeu sentido a vontade de o mudar.
Não perdeu. Igual a si próprio, espelhando o capitalismo que nele predomina, o mundo atravessa uma crise vivida como um pesadelo para milhões de pessoas. Verdadeiramente está agitado, mas não em movimento. Não se abriu ainda a uma humanização radical, libertadora e superadora das desigualdades atuais. A vertigem da aceleração do tempo numa sofreguidão de urgências, que parece arrastar-nos para uma voragem de precariedades em que tudo é provisório, não quebrou a inércia estrutural que tem conservado a sociedade atual confinada no capitalismo. Não escapámos ainda do pântano das catástrofes.
Não estamos a percorrer um caminho que tenha mesmo como horizonte a paz, a liberdade, a igualdade e a justiça, um caminho democrático numa atmosfera de solidariedade e cooperação. Adiar mais o início dessa transição, rumo a um pós-capitalismo, carrega cada vez mais  o mundo de riscos graves. É a imperatividade desta transição e a sua urgência que a atual pandemia tornou absolutamente incontornáveis.

3. Percorrer esta transição não será um alegre passeio através de jardins, fará certamente com que se rasgue a pele de muitos sonhos, porá escolhos diante de muitas ousadias, desafiará esperanças com desilusões, mas é o único caminho que pode levar a um horizonte humanizante e libertador. Dificuldades, no entanto, bem mais suportáveis do que a permanência no cinzento deste tempo fechado.
As esquerdas que ficarem alheias a essa transição deixarão objetivamente de se poderem considerar como tais. Nenhuma delas pode estagnar melancolicamente na saudade de um futuro a que renunciou. Mas as entidades político-partidárias, que protagonizam institucionalmente as esquerdas no aparelho de Estado, não devem ser tolhidas pela ilusão de que é aí que tudo se joga e se decide. É certamente também aí; mas não apenas aí. Sem as dinâmicas endógenas da sociedade que se projetam nos movimentos sociais, com relevo para as que materializam resistências ou alternatividade em face do capitalismo, a metamorfose cujo horizonte é a sua superação poderá ficar bloqueada.
É por isso urgente dar corpo a uma vasta rede de entidades e de cidadãos, de organizações e de pessoas, agindo conjugadamente com flexibilidade dentro e fora das instituições, protagonizando um permanente debate de ideias, gerador de conhecimento e de um cultura crítica que potenciem a compreensão do presente para se poder caminhar transformando-o. Mas, se a ação política tiver horizontes tão cinzentos que impeçam os explorados e os excluídos de cultivarem esperanças verosímeis em concreto, eles não se envolverão no combate pelo futuro. Ora, sem o envolvimento das vítimas atuais da desigualdade, uma luta pela transformação social continuada, esclarecida e consistente, que aproveite as energias do povo e as estimule cada vez mais, será uma miragem. Mas se forem fechadas as portas do futuro àqueles para quem o presente é insuportável, dificilmente se evitarão explosões sociais devastadoras e estéreis, eventualmente contra civilizacionais.
Por tudo isto, vemos como é necessário que as esquerdas revisitem sem preconceitos as suas tradições emancipatórias comuns, a história das suas conquistas e dos seus falhanços, das suas intuições luminosas e dos seus erros, para poderem somar-se umas às outras na construção de um espaço ideológico comum. Somar-se num espaço comum de crítica e de luta, ancorado firmemente numa imaginação do futuro bem enraizada nas tradições emancipatórias e libertadoras da humanidade. Espaço comum composto por regiões, cuja diferenciação exprima a heterogeneidade da esquerda no seu todo, respeitando diferenças sem comportar muros nem fronteiras. Um espaço em que as diferenças de opinião, a heterogeneidade das ideias, exprimam e estimulem uma permanente criatividade crítica. Sem dogmatismos, sem anátemas, sem excomunhões.
Só assim se pode esperar sem fantasia que o povo de esquerda se ponha sustentadamente em movimento, só assim o cinzento pesado e triste dos tempos presentes se esfumará no quotidiano dos explorados e dos excluídos, só assim o protagonismo institucional das esquerdas ganhará sentido e poderá ser eficaz na realização dos objetivos que o justificam.
É neste contexto que se pode compreender plenamente a importância da radicalidade na ação política e no combate ideológico , bem como a necessidade de lhe garantir robustez, pela recusa quer do urgentismo quer do conservadorismo.
                                              
                                                  RUI NAMORADO
                                            [2 de julho de 2020]