domingo, 6 de setembro de 2020

17- UM LIVRO, UM POETA - José Gomes Ferreira

 


17. UM LIVRO, UM POETA - José Gomes Ferreira

José Gome Ferreira  nasceu no Porto em 1900, tendo morrido em Lisboa  em 1985. Embora literáriamente não se tenha limitado à poesia, foi aí que deixou marcas mais fundas. Licenciado em Direito em 1924, exerceu funções diplomáticas até 1930. Antes de se afirmar como poeta, tentou uma carreira como compositor, que viria a abandonar, chegando a ver a sua obra Suite Rústica estreada em Lisboa, pela orquestra de David de Sousa, quando o poeta  tinha 17 anos.

Com José Gome Ferreira,  as palavras libertam-se, para gritarem mais alto a imaginação da revolta. Nunca vêm sozinhas. Trazem sempre com elas o perfume trágico da vida e como ruído de fundo insuportável o sofrimento dos povos. José Gomes Ferreira nunca deixa adormecer as palavras nos lugares comuns. Abre as portas com elas aos jardins da amargura e escreve nas paredes a sua liberdade.

Poeta que os neo-realistas sentiam como irmão, fugia de qualquer possível cânone pela sua irreprimível originalidade. E, no entanto, um livro seu esteve para integrar a coleção do Novo Cancioneiro, o que só não aconteceu por circunstâncias extra-literárias e acidentais. Se afinal isso tivesse acontecido, a descoincidência geracional  teria sido secundarizada pela partilha da coleção fundadora. Essa comunhão teria talvez  tornado mais nítido que o verdadeiro cerne da poesia neo-realista talvez  não fosse  um cânone estético ou literário, sob uma égide ideológica discretamente omnipresente, mas principalmente a partilha de uma revolta moral , de uma insurreição ideológica libertadora, de uma fome ilimitada de liberdade para todos. Talvez , as circunstâncias cronológicas e geracionais tenham  suscitado uma ressonância humanizante e trágica no seu intimismo presencista, levando-o à qualidade de “poeta militante” que expressamente assumiu como ambição telúrica de um mundo mais justo e livre.

Vai ser aqui evocado através de quatro poemas publicados na “Poesia I”, em 1948 (1ª edição), mas que haviam sido escritos ( como é expressamente mencionado) entre 1931 e 1938. Ou seja, foram escritos quando a geração do Novo Cancioneiro estava ainda a despontar, publicados quando ela já tinha irrompido com robustez. O primeiro, aliás, foi considerado pelo próprio autor o poema que materializou uma viragem decisiva rumo ao que viria a ser o seu universo poético.




Viver sempre também cansa  (1931)

 

 

Viver sempre também cansa!

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens não se transformam
Não cai neve vermelha
Não há flores que voem,
A lua não tem olhos
Ninguém vai pintar olhos à lua

Tudo é igual, mecânico e exato

Ainda por cima os homens são os homens
Soluçam, bebem riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à morte!

Pois não era mais humano
Morrer por um bocadinho
De vez em quando
E recomeçar depois
Achando tudo mais novo?

Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses
Morrer em cima dum divã
Com a cabeça sobre uma almofada
Confiante e sereno por saber
Que tu velavas, meu amor do norte.

Quando viessem perguntar por mim
Havias de dizer com teu sorriso
Onde arde um coração em melodia
Matou-se esta manhã
Agora não o vou ressuscitar
Por uma bagatela

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo..

 

Comício (1934)

 

Vivam, apenas.

 

Sejam bons como o sol.

Livres como o vento.

Naturais como as fontes.

 

Imitem as árvores dos caminhos

que dão flores e frutos

sem complicações.

 

Mas não queiram convencer os cardos

a transformar os espinhos

em rosas e canções.

 

E principalmente não pensem na Morte.

Não sofram por causa dos cadáveres

que só são belos

quando se desenham na terra em flores.

 

Vivam, apenas.

A Morte é para os mortos!

 

O nosso mundo é este

 

(último poema do “Panfleto contra a paisagem” -1936/37)

O nosso mundo é este
Vil suado
Dos dedos dos homens
Sujos de morte.

Um mundo forrado
De pele de mãos
Com pedras roídas
das nossas sombras.

Um mundo lodoso
Do suor dos outros
E sangue nos ecos
Colado aos passos…

Um mundo tocado
Dos nossos olhos
A chorarem musgo
De lágrimas podres…

Um mundo de cárceres
Com grades de súplica
E o vento a soprar
Nos muros de gritos.

Um mundo de látegos
E vielas negras
Com braços de fome
A saírem das pedras…

O nosso mundo é este
Suado de morte
E não o das árvores
Floridas de música
A ignorarem
Que vão morrer.

E se soubessem, dariam flor?

Pois os homens sabem
E cantam e cantam
Com morte e suor.

O nosso mundo é este….

( Mas há-de ser outro.)

 

Heróicas (1936/37/38)

VII - (Junto a minha voz ao coro dos poetas mais novos.
Recuso-me a ter mais de vinte anos.)

               

Não, não queremos cantar 
as canções azuis 
dos pássaros moribundos. 

Preferimos andar aos gritos 
para que os homens nos entendam 
na escuridão das raízes. 

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes 
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição. 
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas 
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros. 
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto 
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto. 
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária 
a falarem de amor 
ao pé duma máquina de tempestade 
a soluçar cidades de fome 
na cólera dos ruídos... 

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há melhor orgulho 
do que o nosso destino 
de nascer em todas as bocas... 

...Nós, os poetas viris 
que trazemos nos olhos 
as lágrimas dos outros.

                       

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