Publico hoje mais um texto de Roberto Amaral, extraído da página virtual da excelente revista brasileira CartaCapital. É um texto sobre a recente condenação de Lula. Parece--me muito importante desfazer a cortina de fumo lançada sobre esse triste evento pela grandes empresas brasileiras de comunicação social, que encontra estranhos ecos na comunicação social portuguesa. Que a direita lusitana morda desalmadamente em Lula, compreende-se. É o seu jeito canino de argumentar. Que figuras que se pretendem fora desse espaço também mastiguem dislates e desinformações sobre o assunto já é um pouco mais enjoativo. Enfim, leiam o que nos diz um importante político e intelectual brasileiro que nem é membro do PT. Entretanto, para vos pôr mais alerta aqui fica uma muito breve síntese do seu currículo.
Roberto Amaral nasceu em 1939. Cientista
político, jornalista, escritor, conferencista e político militante, tem artigos
científicos publicados em revistas académicas do Brasil e de outros países Com
vasta colaboração na imprensa brasileira, escreve semanalmente na versão online
da revista CartaCapital.
Com a redemocratização, retomou a atividade política legal, tornando-se um
dos re-fundadores do Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1985. Foi seu secretário-geral
entre 1985 e 1993 e em seguida vice-presidente, assumindo mesmo a Presidência do
PSB em três ocasiões: em 2005, em 2006 e em de 2014. A deriva direitista desse
partido levá-lo-ia a abandonar a sua presidência , tendo posteriormente rompido
com o próprio partido.
Nos dois primeiros mandatos do presidente Lula e no primeiro mandato da presidente
Dilma, representou o PSB no Conselho Político da Presidência da República. Exerceu
o cargo de ministro da Ciência e Tecnologia de janeiro de 2003 a 2004, no
Governo Lula.
É professor adjunto (licenciado) da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro e professor titular da Faculdade Hélio Alonso.É membro titular do
Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), do Pen Clube do Brasil, da
Internacional Political Science Association, da International Association of
Judicial Methodology. Integrou (2004) o Conselho Estadual de Cultura do Estado
do Rio de Janeiro.
Eis o seu artigo, datado do passado dia 17 de Julho de 2017:
“Sem surpresa, o País recebeu a anunciada condenação de Lula,
sentença que já estava pronta antes mesmo da mal articulada denúncia do
Ministério Público Federal, antes mesmo do julgamento na ‘República de
Curitiba’, pois, antes de tudo, estava lavrada pelas classes dominantes –
os rentistas da Avenida Paulista, as "elites" alienadas, a burguesia
preconceituosa, um empresariado sem vínculos com os destinos do povo e de seu
país. Uma "elite" movida pelo ódio e pela inveja que alimenta a
vendeta. Denúncia, julgamento, condenação constituem uma só operação política,
cujo objetivo é avançar mais um passo na consolidação do golpe em progresso
iniciado com a deposição da presidenta Dilma Rousseff.
Tomado de assalto o poder, cumpriria agora destruir eleitoralmente a
esquerda, numa ofensiva que lembra a ditadura instalada em 1964. Para destruir
a esquerda é preciso destruir seu principal símbolo, assim como para destruir o
trabalhismo caberia destruir o melhor legado de Getúlio Vargas. Não
por mera coincidência, o dr. Sérgio Moro decidiu dar à
luz a sentença a ele encomendada no dia seguinte em que o Senado Federal
violentava a Consolidação das Leis do Trabalho.
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Desinformando e formando opinião, exaltando seus apaniguados e difamando
aqueles que considera seus inimigos, inimigos de classe, a grande imprensa
brasileira promove o cerco político, e tece as base da ofensiva ideológica
unilateral, porque produto de um monólogo.
Essa imprensa – um oligopólio empresarial, um monopólio
político-partidário-ideológico e na verdade o principal partido da
direita – que exigiu e obteve a condenação de Lula (e presentemente tenta
justificá-la, embora carente de argumentos) recebeu com rojões juninos a
sentença encomendada, mas logo se enfureceu porque Lula recusou o cadafalso
político e anunciou sua candidatura à presidência.
Ora, dizem os editoriais, os articulistas, os colaboradores, dizem os
"cientistas" políticos do sistema, Lula não pode ser candidato, o que revela a motivação da
sentença. Já há "cientistas" exigindo que o TRF-4, em Porto Alegre,
confirme sem tardança a condenação, e "filósofos" anunciando que a
candidatura Lula é um desserviço à democracia (ela que lidera todas as
pesquisas de intenção de voto) porque "polarizaria" o debate e as
eleições. Doria, não. Bolsonaro, não. Caiado, não. Alckmin tampouco polariza.
Mas Lula, sim; por isso precisa ser defenestrado.
A "vênus de prata" já começou a campanha visando à condenação de
Lula na segunda instância, e o Estadão (edição
de 14 último) anuncia que o "Supremo deve manter condenação de
Lula”.
Somos testemunhas da tentativa de revanche da direita brasileira. Impedir a
candidatura Lula é a defesa prévia ante a ameaça de a população demolir o golpe
com as eleições de 2018.
O fato de o libelo (e jamais sentença) de Moro ser obra conhecida, segredo
de polichinelo, não releva seu caráter mesquinho e iníquo, ademais de sua
inépcia jurídica, desnudada. Do ponto de vista do direito, a
"sentença" é um mostrengo e se fundamenta em ilações, presunções,
talvez "convicções", artifícios de raciocínio em conflito com a
lógica.
Contrariando o direito, que só conhece propriedade e posse, o juiz inventa
a figura do "proprietário de fato". A propriedade, segundo nosso
Código Civil, se prova mediante o registro em Cartório, mas para acusar Lula se
aceita que uma simples delação do proprietário real seja recebida como
transferência, e como esse proprietário supostamente doador, empreiteiro
respondendo a processos, é usufrutuário de falcatruas, conclui o juiz açodado
que o apartamento deve ter sido dado em retribuição a alguma facilidade
propiciada pelo ex-presidente, trata-se, portanto, de uma propina. E se é
propina, Lula é agente passivo de corrupção.
E por tais caminhos sinuosos, mediante tal exercício de lógica pedestre,
condena à cadeia o ex-presidente, para puni-lo, evidentemente, mas para punir
antes de tudo com a decretação de sua inelegibilidade. É disto que se trata.
Não cabe, pois, discutir a gramática processualística, simples apoio formal de
uma decisão eminentemente política, e, do ponto de vista político, um golpe
preventivo em face das eleições de 2018, das quais previamente e precatadamente
se elimina o candidato que lidera as pesquisas de intenção de voto. É preciso
abater esse candidato, pelo que ele simboliza. E assim, e só assim, as eleições
poderão realizar-se, disputada a presidência entre Francisco e Chico.
Como temos insistido, às forças do atraso não bastava o impeachment de
Dilma Rousseff, pois, o projeto em andamento é a implantação de um regime de
exceção jurídica voltado para a desmontagem de um projeto de Estado social, mal
enunciado. E um regime com tais características e com tais propósitos jamais
alçaria voo dependendo do apoio popular. Daí o golpe. À sua execução se
entregou o Congresso, sem ouvidos para as vozes das ruas, surdo em face dos
interesses do País e de seu povo, desapartado da representação popular, a
serviço do mercado, como tonitrua, sem pejo, o atual presidente da
Câmara.
A eliminação de Lula é, pois, a conditio
sine qua non do novo sistema para manter o calendário eleitoral,
pois as eleições, para serem realizadas, não poderão importar em risco. De uma
forma ou de outra, trata-se de um golpe, afastando-se uma vez mais do povo o
direito de escolher seus dirigentes.
A identificação de Lula como alvo da reação não é gratuita, nem fato
isolado. Lula de há muito transcendeu os limites de eventual projeto
pessoal, é mais do que um ex-presidente da República, e é muito mais que
fundador e presidente do PT. Independentemente de sua vontade e da vontade de
seus inimigos, é, para além de sua popularidade, o mais destacado ícone
da esquerda e das forças populares brasileiras. Lula é, hoje, e em que pesem
suas contradições, um símbolo, um símbolo da capacidade de nosso povo fazer-se
agente de sua História. É um símbolo das possibilidades de o ser humano vencer
suas circunstâncias, romper com as contingências e fazer-se ator. Simboliza a potência do
povão, do povo-massa, dos "de baixo", dos filhos da
Senzala como sujeitos históricos. Simboliza a possibilidade de o homem comum,
um operário, romper com as amarras da sociedade de classes, racista e
preconceituosa, e liderá-la num projeto de construção de uma sociedade em busca
de menos desigualdade social. Por isso é amado e odiado.
Símbolos assim constituem instrumentos de importância capital nos confrontos
políticos por sua capacidade de emocionar e mobilizar multidões. Símbolos deste
tipo não surgem como frutos do acaso nem se multiplicam facilmente, nem se
constroem da noite para o dia. Emergem em circunstâncias especiais, atendendo a
demandas concretas da sociedade. São construídos ao longo de certo tempo de
provação, de testes dolorosos, como ocorre com os heróis clássicos, percebidos
pela comunidade como portadores de virtudes.
O símbolo Lula não é produto do acaso, nem consequência de um projeto individual.
Trata-se do fruto histórico resultante do encontro do movimento sindical com as
lutas populares, construindo a primeira liderança política brasileira que
emergiu do proletariado, do chão de fábrica, para a Presidência da República.
Um feito de dificílima repetição, neste país aferrado ao autoritarismo
conservador.
É contra esse instrumento da luta política de massa que se arma a
prepotência das classes dominantes brasileiras, filhas do escravismo,
incuravelmente reacionárias, incuravelmente atrasadas, presas à ideologia da
Casa Grande, desapartadas dos interesses do povo e da nação, descomprometidas
com o futuro do país.
Ao abater Lula, pretende a direita brasileira
dizer que o povo – no caso um ex-imigrante do Nordeste profundo, sobrevivente
da fome, um ex-metalúrgico, um brasileiro homem-comum, um dos nossos –, não
pode ter acesso ao Olimpo reservado aos donos do poder. É um "chega
prá-lá", um "conheça o seu lugar", um "não se atreva",
um "veja com quem está falando".
A condenação de Lula tem o objetivo de barrar a emergência das
massas, barrar os interesses da nação, barrar o avanço social, barrar o ideal
de um Brasil desenvolvido e justo. Visa a barrar não o lulismo, mas todo o
movimento popular brasileiro. Quer deter não apenas o PT, mas todas as
organizações políticas do espectro popular (que não se enganem a esse respeito
aqueles que sonham em crescer nos eventuais escombros do lulopetismo).
A defesa de Lula, a partir de agora, não é uma tarefa, apenas, de seu
partido e dos seus seguidores. Ela representa, hoje, a defesa da democracia. É
só a primeira batalha, pois muitas nos aguardam até 2018".
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