Roberto Amaral é um dos expoentes históricos
da esquerda brasileira. Abandonou a presidência do Partido Socialista
Brasileiro, quando nas últimas eleições presidenciais este decidiu apoiar, na
segunda volta, Aécio , candidato da direita, contra Dilma, a atual Presidente.
Vou reproduzir hoje mais um texto seu,
publicado na página da revista CartaCapital, datado
do passado dia 4 de março, no qual ele comenta a atual conjuntura política
brasileira , incendidada pela recente provocação dirigida contra Lula. A
comunicação social brasileira na sua larga maioria, em especial os grupos mediáticos dominantes,
bem como os seus ecos internacionais, são claramente tendenciosos e e hostis a
Lula, a Dilma e ao Partido dos Trabalhadores. O que se publica em Portugal é um
espelho fiel de tudo isso. É por isso importante que sejam conhecidas vozes que
o complexo mediático internacional ignora.
O texto que hoje publico intitula-se, “O impeachment de Lula”. Tem a
seguinte frase de abertura : “Fragilizados o governo e as estruturas partidárias de esquerda, o
ex-presidente Lula se afigura como o último obstáculo.”
Eis o texto:
“Quando se
me impõe a solução de um caso jurídico ou moral, não me detenho em sondar a
direção das correntes que me cercam: volto-me para dentro de mim mesmo e dou
livremente a minha opinião, agrade ou desagrade a minorias ou maiorias”.
Estas palavras são de Rui Barbosa, em carta dirigida a
Evaristo de Morais, o grande advogado, incitando-o a assumir a defesa de José
Mendes Tavares, réu previamente condenado pelo que então se chamava de ‘opinião
pública’. Trata-se, como se vê, de lição extremamente atual, quando o STF de
nossos dias assume a responsabilidade de violar a Constituição brasileira sob a
alegativa de estar atendendo ao ‘clamor das ruas’.
Refiro-me à decisão de liberar a execução da pena
de prisão após condenação confirmada em segundo grau, ao arrepio do
ditado claro da Constituição (Art. 5º, LVII): “ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Legalizando a prisão antes de definitivamente
estabelecida a culpabilidade do acusado, o STF torna-se agente de um direito
criminal promotorial, penalista, punitivista, reacionário, atrasado.
Caminhando na contramão da moderna criminologia,
torna-se caudatário do conservadorismo e se faz instrumento do processo em
curso de regressão política que visa à construção de um Estado autoritário,
promovido ideologicamente pela grande imprensa.
Só o direito do arbítrio, o direito da força que anula
a força do direito, pode autorizar, como acaba de fazer o STF, a execução da
pena cerceadora de liberdade enquanto ainda se duvida se o acusado é culpado ou
inocente.
A prisão, nessas circunstâncias, deixa de ser o ato
final de um processo condenatório para transformar-se no momento inaugural das
investigações, que se abrem não para apurar fatos e responsabilidades, mas para
provar a culpabilidade do acusado escolhido para ser condenado.
Nesse contexto, a ‘delação
premiada’ é instrumento de barganha que a autoridade investigadora manipula a fim de
obter do acusado preso não necessariamente a apuração de possível crime, mas a
revelação selecionada de acusações contra quem a investigação quer condenar.
Alegar, como justificativa dessa agressão jurídica, a
audiência das ruas, é, no mínimo, um escárnio.
Nas ruas de Berlim sob o nazismo multidões
ensandecidas julgavam e puniam seus adversários. Turbas envenenadas pela
propaganda estimulavam a perseguição aos dissidentes, condenados aos campos de
concentração, independentemente de culpa, mas simplesmente por serem judeus,
comunistas ou homossexuais.
No vestibular da Guerra Fria o macarthismo, sem
precisar refazer a Constituição ou as leis, instalou nos EUA a perseguição
política e o terror, em nome de um nacionalismo xenófobo e de um anticomunismo
de indústria.
Aqui, a implantação da última ditadura, em 1964, foi
precedida de maciça mobilização da opinião pública, levada a cabo pela
imprensa, animadora das marchas ‘com Deus pela liberdade’.
Esse especioso ‘clamor das ruas’ é o outro lado do
discurso único de uma imprensa monopolizada, unificada pelo ódio, pela vindita
e pelo projeto comum de poder, aquele poder reiteradamente negado às forças
conservadoras pelo processo eleitoral.
É essa imprensa, poderosíssima, que escolhe as vítimas
e seus protegidos, que elege os inimigos públicos escolhendo-os entre seus
adversários de classe, elege os réus e os julgadores e aos julgadores dita as
penas a serem aplicadas, independentemente do aparato normativo, porque
na sua aplicação é sempre possível torcer e distorcer a lei, ou criar
doutrina nova, como a teoria do domínio do fato, ou refazer-se a
jurisprudência, segundo o víeis de maiorias ocasionais.
Essa coalizão de direita dirige a política, dita a
pauta do governo em minoria legislativa e popular para o que tem sido decisiva
a oposição midiática. Essa coalizão dita o discurso oposicionista que impõe ao
governo o receituário do neoliberalismo.
Essa coalizão comanda a privatização e a
desnacionalização, põe de joelhos um Congresso que tem em Renan Calheiros e
Eduardo Cunha, seus líderes, o melhor indicador de sua decadência e de seu
descompromisso com a sociedade, a ética e o País.
De costas para os interesses das grandes massas, cuja
emergência política tira-lhe o sono, a classe dominante, despida da
legitimidade da soberania popular, impõe seus interesses sobre os interesses da
nação e do País.
A cantilena reacionária dos meios de comunicação é um
de seus instrumentos de dominação, o mais eficaz quando se trata da luta
ideológica. Foi assim no enfrentamento ao governo Vargas, foi assim na campanha
contra Jango e o pleito das reformas de base, foi assim contra
Lula e é assim contra Dilma. Foi assim e pelos mesmos motivos a destruição de
Leonel Brizola, empreendida pelo sistema Globo.
O projeto de hoje é a institucionalização da exceção
jurídico-política dentro da ordem formalmente democrática. Estamos nas
primícias de uma inflexão autoritária declarada contra os interesses populares
e a soberania nacional.
Daí a necessidade de destruir as organizações
populares de esquerda e seus ícones, se possível desmoralizando-os moralmente
diante da sociedade que sempre os respaldou.
Daí o concerto de ações. Para levar a classe-média a
defender os interesses das elites, a estratégia política é a de sempre: jogar
as lideranças de esquerda na vala comum da corrupção onde o capitalismo se
banqueteou e se banqueteia.
Eis por que, a serviço desse poder sem peias, sem
limites éticos ou legais, as estruturas estatais – os órgãos de investigação, a
polícia, os ministérios públicos, as instâncias judiciais, os juízes de
primeira instância e os tribunais superiores, a receita federal etc. – têm,
hoje, uma só missão: provar que Luiz Inácio Lula da Silva é um político
corrupto.
A desconstrução do líder popular integra o projeto que
compreende a deposição da presidente, a destruição do PT e, a partir dela, a
destruição e desmoralização das esquerdas brasileiras.
Assim estará aberto o caminho para a tomada do poder pela
direita, pelo conservadorismo, pelo atraso, pelo fundamentalismo político,
revogando ou reduzindo as conquistas sociais e derruindo a soberania nacional
com a retomada do entreguismo e da onda das privatizações a serviço da
desnacionalização: já agora, ante a passividade de um governo fragilizado, os
mais lucrativos ativos da Petrobras (entre eles poços em atividade) são
vendidos na bacia das almas e o Senado intenta
doar o pré-sal – promessa de nosso desenvolvimento autônomo – às grandes
petroleiras multinacionais.
A mudança política desta feita é operada sem golpe de
Estado clássico, sem apelo às armas, sem nova ordem constitucional, sem novos
atos institucionais. Ao contrário, efetiva-se sob o império da mesma
Constituição (mas reinterpretando-a), com o mesmo direito (mas reinventando-o)
mediante ‘interpretações criadoras’ como o ‘domínio do fato’.
O Brasil é, presentemente, um experimento de tomada do
poder por dentro do poder, uma tomada do governo por dentro do governo, sem
apelo à violência, sem ruptura constitucional, respeitada a legalidade
(reinterpretada) e dentro de seus limites formais.
Esta operação depende diretamente da fragilização da
presidente Dilma, e conta com seu recuo politico. As seguidas tentativas de
impeachment e a resistência do Congresso à sua política servem a esse
propósito. Mas não é tudo. A direita pensa longe. Ela vislumbra 2018 e alimenta
esperanças de sucesso eleitoral. Trata-se, agora, já, de inviabilizar o
eventual retorno do ‘sapo barbudo’.
Fragilizado o governo, fragilizadas as estruturas
partidárias de esquerda, o ex-presidente Lula se afigura como o último
obstáculo a esse projeto. Precisa, pois, ser removido do caminho. Por isso
mesmo foi condenado pelo tribunal de
exceção da grande imprensa.
Por isso, sua vida está sendo violentamente invadida,
exposta, num processo de humilhação a que nenhum outro homem público foi
submetido até hoje. Se afinal nada for comprovado, nenhum problema, pois a pena
previamente ditada já terá sido aplicada, mediante a execração pública a que
está sendo submetido o ex-presidente.
Esta operação, em curso, conta com o recuo, via
intimidação, do ex-presidente. Está, pois, em suas mãos o que fazer, e só lhe
resta a mobilização das massas. O Lula acuado é presa dócil. Nas ruas é
promessa de luta, resistência e avanço. Foi assim que em 2005 transformou uma
cassação iminente na consagração eleitoral de 2006.
A escolha agora é dele: sucumbir sem glória, ou
encarnar a resistência à destruição da proposta de fazer do Brasil uma nação
soberana, desenvolvida e socialmente inclusiva.
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