A Igreja Católica acaba de deixar que o seu lado político
fira o seu lado transcendente. Acaba de condecorar com a santidade dois papas.
Rivalizando com a habilidade subtil que caracteriza os bons políticos, introduziu
na operação uma dose de equilíbrio. Ungir apenas a memória de João Paulo II
podia enfraquecer a dimensão ecuménica do evento, ferindo-a de um proselitismo
conservador demasiado ostensivo. Daí o gesto arejado de envolver João XXIII no
mesmo ato simbólico. Um Papa com o qual se sentiram e sentem em paz muitos
daqueles que, fora da Igreja Católica e dentro ou fora das outras igrejas, não
se curvam perante as injustiças do mundo.
Tudo isto, no entanto, foi demasiado rápido, demasiado próximo, demasiado calculado. Os
fiéis católicos exultam com a condecoração concedida a dois dos seus papas mais
recentes, com o tipo de entusiasmo que lhes tributaram em vida. Juntam-se em
ovação com o mesmo entusiasmo com que aclamam Francisco, mas não há ainda condições para que, neste caso, paire sobre eles o suave peso da
transcendência. Ao arrepio, talvez, das intenções da burocracia santificadora
do Vaticano, para além da conjuntura, o que aqui está a ocorrer de estruturalmente
irremediável é a laicização da santidade.
Na minha qualidade de laico, estou muito longe de percorrer
com facilidade os labirintos da Santa Sé. Pode ser que a cerimónia em curso
tenha sido um legado que Francisco recebeu, mas o que me parece
evidente é que ela está longe de se integrar com harmonia no “puzzle” futurante
do actual papado. Talvez as regras processuais que regem a aquisição da
santidade dificultem a intromissão de um Papa para fazer colapsar um processo
já em curso. É possível.
No entanto, por propósito ou acaso, e pelo menos a
celeridade supersónica do processo,
fazem recair sobre esta operação da Cúria Romana uma carga
política objectiva que é incontornável. De facto, ungir com o halo supremo da
santidade o mandato de João Paulo II é
uma mensagem dirigida ao actual papa no sentido de lhe lembrar que o ápice da
virtude institucional da Igreja Católica foi atingido pelo novo santo, João
Paulo II. A mensagem implícita é clara: do ponto de vista do aparelho político
do Vaticano, o caminho do actual papa
Francisco não é o caminho de uma santidade que lhe agrade.
Por isso, é legítimo que se pense que a santificação em
causa, para além da sua aparência de calorosa aprovação de dois papados de
sentido distinto, mas especialmente dirigida a aclamar João Paulo II, é também
um sinal de distanciamento e resistência da aparelho político do Vaticano ao
estilo e a muitas das opções do actual Papa.
A proeminência política da razão burocrática na consumação
deste evento, para além de subalternizar a transcendência em face dos jogos de
poder, é um forte tropeção táctico da Igreja Romana. De facto, ela deixou que
fosse ostensivo que a santidade, em vez de ser fruto de uma vontade
transcendente eivada de mistério, incidindo em circunstâncias
temporalmente longínquas, é um processo burocrático terreno conduzido por uma burocracia,
cujo prestígio nos últimos anos se desgastou significativamente. Recordem-se as
fraudes no Banco do Vaticano e a moleza arrastada com que a Igreja de Roma
reagiu a alguns escândalos de pedofilia. Hoje, aos olhos do mundo, tem muito mais credibilidade a voz isolada de Francisco
do que toda a corte romana que o rodeia ( ou cerca?).
As trombetas da comunicação social, a máquina de propaganda
do Vaticano e os generosos corações dos fiéis vão explodir numa ruidosa alegria.
No entanto, passada a festa, quando a quietude da realidade regressar, o balanço a ser feito será bem menos entusiasmante.
Quebrou-se o mistério da santidade, transformando-o num
processo burocrático com prazos e actos obrigatórios; mostrou-se que na raiz da
decisão de santificar estão estruturas que estão longe de elas próprias serem
santas; procurou deslegitimar-se a novidade
e a generosidade do actual Papa, cuja popularidade e prestígio são
evidentes, dentro e fora da Igreja Católica.
O futuro dirá se
estamos perante um episódio menor numa sucessão de acontecimentos que apontam
noutro sentido , ou perante um sintoma de regressão, ou decadência simbólica,
de uma Igreja que não gosta do seu Papa.