O
geringoncismo
- doença infantil da
concertação das esquerdas
1. A geringonça nasceu
como rótulo depreciativo, inventado por expoentes da direita, para
desqualificarem simbolicamente uma iniciativa que agregava as esquerdas.
Espalhou-se irresistivelmente no espaço público. No entanto, a realidade que se
pretendia apoucar teve afinal o êxito suficiente para resgatar simbolicamente o
rótulo em causa, tornando-o numa designação afetivamente mais amiga e cordial
do que ridicularizante. Muitos dos seus próprios protagonistas acabaram por
aceitar com naturalidade e bonomia o epíteto, que assim se acabou por tornar
numa designação aparentemente neutra e inócua. De um ponto de vista simbólico,
sem dúvida que o seu potencial desqualificante se esvaiu.
No entanto, talvez ele
tenha tido um efeito perverso que não é aparente, mas que julgo real. Na
verdade, ao longo do tempo, o pacto celebrado foi sendo predominantemente
encarado como um mecanismo político-institucional radicado apenas em organizações
partidárias que se concertavam entre si, na sombra discreta dos gabinetes.
Celebraram um pacto e foram acompanhando o seu cumprimento. Um pacto que
permitiu que um Governo fosse instituído e governasse durante uma legislatura.
Um Governo de um dos partidos, a cujos deputados se somavam no Parlamento os
deputados dos outros partidos de esquerda. Uma governação que, contrariando
todas as expetativas e rompendo até com um certo ceticismo internacional, teve
o êxito suficiente para poder ser invocada como exemplo positivo.
2. Nas campanhas
eleitorais entretanto ocorridas ─ eleições autárquicas, europeias e
legislativas─, mas principalmente nestas últimas, o pacto foi sujeito a um
acréscimo de tensões fragmentadoras e dissipativas. Tensões inerentes a uma
competição eleitoral entre partidos que concorriam entre si, sem prejuízo de
estarem congregados num pacto político-institucional. Um pacto limitado e
flexível que era compatível com a manifestação dessas tensões competitivas.
Essa compatibilidade, em fim de legislatura principalmente, não impediu
momentos de um especial aumento de tensões
e nalguns casos mesmo de alguma acrimónia ainda que contida.
Se olharmos para essa
tensão argumentativa vivida nas campanhas, especialmente na mais recente,
verificamos que ela refletia atitudes e posições diferentes. De um lado, estava
o partido do governo, do outro lado estavam os partidos que tinham pactuado o
apoio parlamentar ao governo. O PS tendia a dar centralidade à sua qualidade de
partido do governo, valorizando genericamente o mérito da governação. O BE , o
PCP e o PEV tendiam a exaltar os méritos inerentes a medidas específicas que
teriam sido tomadas por força da pressão feita por cada um deles. Procuravam
valorizar o mérito inerente aos resultados das suas pressões e distanciarem-se
relativamente do resultado geral da governação, em especial dos aspetos com que
não concordavam ou que não induziam popularidade.
Esse registo foi
impregnado por uma intensa campanha contra uma possível maioria absoluta do PS,
o que sendo em si um absurdo, se for levada à letra (cada eleitor vota num partido, mas não tem como modular a sua preferência; vota ou não vota), era de facto uma
campanha explícita contra o voto no PS. Cada um deles, além de apelar ao voto
nele próprio, o que é natural em todos os partidos, apelava também a que se não
votasse num partido [o PS], com o qual tinha tido um acordo que durara uma
legislatura. Assumiam assim um juízo globalmente positivo quanto ao governo, mas batiam-se contra o voto no partido que era estruturante quanto a esse governo.
Convenhamos que a lógica profunda desta posição equívoca tem um potencial de confusão
apreciável relativamente ao eleitorado mais diretamente visado.
Uma leitura superficial
parece indicar que a campanha pode ter tido efeito quanto a impedir uma maioria
absoluta do PS, mas não fez ganhar votos nem ao BE nem à CDU. O BE estacionou
quanto ao número de deputados, a CDU perdeu deputados. Especialmente à direita, neste caso por motivos óbvios, há quem queira fazer crer que isso se deveu à participação
indireta na solução governativa encontrada. É, no entanto, estranho que o apoio relativo dado a um governo que é encarado positivamente pelo povo de esquerda induza perda de votos à esquerda. Mais lógica parece ser a hipótese de que esses partidos ( ainda
que em doses diferentes) tenham suscitado confusão, pela estratégia
argumentativa seguida, em parte do seu eleitorado, induzindo assim a
sua abstenção.
3. Se olharmos para o
discurso político dos partidos envolvidos no pacto das esquerdas, verificamos
que o mais global era o do PS, o que se compreende à luz da sua relação com o
governo. Os outros seguiam um guião em que predominavam referências a medidas
parcelares, cujo mérito reivindicavam e a medidas parcelares que inscreviam
como seus objetivos para o futuro.
Todos davam na
generalidade como adquirido o tipo de sociedade atual , abdicando de inscrever no
horizonte a sua transformação. As exceções a esta regra, mais implícitas do que
explícitas, não condicionavam significativamente a espinha dorsal do discurso
político assumido. Os eleitores tendiam a ser encarados mais como indivíduos a
convencer do que como cidadãos a mobilizar; mais como clientes políticos a
fidelizar do que como sujeitos cívicos de um processo político que partilhassem
com os partidos que, sendo os atores eleitorais diretos, não eram tudo.
Esta atitude menosprezava
um dado empiricamente verificável que se veio tornando evidente, ao longo dos
últimos anos: o povo de esquerda, abrangendo os eleitorados reais ou potenciais
dos partidos envolvidos no acordo, queria e continua a querer esse acordo.
Independentemente de pressões circunstanciais e do desenho concreto da
conjuntura institucional em 2015, o mérito principal, aliás apreciável, das
direções políticas dos partidos envolvidos, foi o de terem sabido responder
positivamente a esse anseio unitário profundo do povo de esquerda. Terem
percebido a centralidade desse anseio.
No entanto, na
generalidade, parece nítido que desde então não foi dada realmente centralidade
a esse anseio, por nenhum dos partidos envolvidos. Predominantemente, a prática
dos partidos envolvidos passou, quase sempre, ao lado dessa unidade substancial
do povo, preferindo ficcionar uma diversidade de povos de esquerda
correspondente a eleitorados separados dos vários partidos.
Esta perspetiva implicou, objetivamente, uma tendência para se renunciar por completo a estimular uma
dinâmica de transformação social que envolvesse globalmente o povo de esquerda e se abrisse
a todos os trabalhadores e a todas as vítimas da desigualdade social dominante.
Uma dinâmica de transformação que desse consistência e autenticidade ao combate contra a degradação ambiental inerente ao modo como o capitalismo tem vindo a corroer
o mundo. Uma dinâmica que pudesse dar corpo a uma esperança realmente grande e que assim pudesse pôr o povo em movimento.
No seio de um processo
amplo de transformação social, o protagonismo diferenciado dos partidos
exprimiria com naturalidade a relativa heterogeneidade do povo de esquerda, mas fá-lo-ia no âmbito de um processo social mais amplo mas uno, onde todos caberiam. O protagonismo
institucional dos partidos em geral e a sua governação nos diversos níveis do
Estado seriam robustecidos por uma dinâmica social que o apoiasse, estimulasse e
desafiasse.
Tudo isso poderia gerar uma
nova relação de forças que permitiria que fossem tomadas mais rápida e facilmente medidas
justas, geradores de mais liberdade e de mais igualdade, induzindo até
provavelmente uma afirmação e uma autonomia mais robustas do nosso país na cena
internacional.
4. Sem uma ancoragem
firme numa dinâmica social deste tipo, os êxitos político-institucionais, por
mais relevantes e meritórios que sejam, ficarão mais sujeitos ao aleatório de
conjunturas internacionais que dependem muitíssimo pouco do que ocorre em
Portugal. Sem essa ancoragem
dificilmente se dará consistência à defesa da qualidade ambiental, à luta
contra as causas económico-sociais das alterações climáticas, aos movimentos de
inconformismo em face dos automatismos predatórios do capitalismo mundial. E
assim tender-se-á para uma fragmentação das resistências organizadas à
degradação ambiental e a uma estéril dissipação das suas iniciativas. Podem
suscitar-se explosões desesperadas, dificilmente se gerarão resistências
eficazes.
Paralelamente, se
continuarmos aprisionados numa numerologia que se absolutize a si própria, esquecendo as
pessoas, abriremos ainda mais as portas do desespero, às vítimas da desigualdade.
E quando as portas do desespero se abrem, deixa de ser possível prever e
controlar o que passa através delas.
E não se pense que este
risco se diminui com atitudes proclamatórias ainda que generosas e acutilantes,
com os proclamantes a considerarem-se realizados apenas por proclamarem. O
general que numa guerra decretasse bombardeamentos aéreos, sem dispor de
aviação, representaria um perigo nulo para o inimigo.
Está em marcha um
processo negocial para o desenho político do novo governo. Entre as esquerdas
parece haver algumas dificuldades e ambiguidades que podem não levar a bom
porto. Se o povo de esquerda vier a ser esquecido no labirinto das negociações, se as
direções partidárias não tiverem a inteligência de perceber que sem o povo de esquerda são
pouco mais do que folhas secas ao sabor da corrente, as coisas podem ser mais
difíceis do que a atual relação de forças induz. E não esqueçamos que dentro do modo como a sociedade atual entre nós
funciona, a esquerda, mesmo quando é maioritária no parlamento e nas autarquias,
está cercada pelos poderes de facto, que
lhe são estruturalmente hostis. E quando quem está cercado ignora o cerco
dificilmente o vai conseguir romper com êxito.
É mais fácil
politicamente e menos oneroso económico-socialmente que as esquerdas se
entendam para governar depois de uma vitória do seu conjunto do que se entendam
para resistir depois de uma derrota. E é mais fácil o protagonismo dos partidos
quando tenham como suporte o povo de esquerda com a esperança acordada, do que
depois de terem conseguido desiludi-lo e desmobilizá-lo com a sua inépcia, se for esse o caso.