segunda-feira, 12 de junho de 2017

O resultado oculto das eleições britânicas



O resultado oculto das eleições britânicas
As diversas tonalidades de opinião, quanto ao resultado das recentes eleições britânicas, não se afastam muito da imagem geral de um punição à sofreguidão da líder do governo conservador, quando provocou a antecipação de eleições para tornar mais forte a maioria absoluta de que o seu partido já dispunha no parlamento. Teria , aliás, querido matar dois coelhos com uma cajadada: ficava com uma posição mais forte para negociar o “brexit” com a União Europeia e reduzia a uma dramática insignificância os trabalhistas, aos quais as sondagens colocavam com uma desvantagem de 20%.

Uma dramática insignificância que era especialmente aliciante para a Srª May , dado que a esperada  derrocada dos trabalhistas seria a alegada consequência do posicionamento político  do seu líder, que os arautos  e os escudeiros do pensamento único consideravam como demasiado à esquerda, demasiado radicado no imperativo de superação das dificuldades dos britânicos que realmente as têm.

Na verdade, a Srª May ficou abaixo da maioria absoluta na Câmara dos Comuns, precisando de um acordo, que se adivinha volátil, com os unionistas irlandeses, para ter possibilidades de formar governo. Com os seus 318 deputados, precisa dos 10 dos unionistas para passar a barreira dos 326 votos de que necessita. Ficará com uma coligação ou com um acordo mais frágil do que aquilo que era a maioria exclusivamente do seu partido antes das eleições. Os trabalhistas terão 262, os nacionalistas escoceses 35 e os republicanos irlandeses 7.

Do ponto de vista institucional, o significado político dos resultados verificados é realmente o que se acaba de mencionar. Um significado que é a projeção da relação de forças em termos de apoio popular, no modo de distribuição de mandatos inerente ao sistema eleitoral britânico.

Mas isso não impede que seja relevante olhar também para esses resultados eleitorais, valorizando o apoio popular obtido por cada partido, o número de eleitores que optaram por cada um dos partidos. E, assim, vê-se desde logo que os conservadores chegaram aos 42,4%, subindo 5,5 % em relação às anteriores eleições; enquanto os trabalhistas chegaram aos 40%, subindo 9,6 %. Ou seja, os alegados 20% de diferença prometidos nas sondagens, ficaram reduzidos a uns magros 2,4 %. Ou seja, em termos de apoio popular os trabalhistas de Corbyn, apesar da barreira de hostilidade que enfrentou, ficaram a 2,4% dos conservadores, apesar destes terem subido 5,5 %. Parece assim que a Srª May não se enganou quanto ao reforço de apoio que realmente obteve, mas quanto ao apoio popular a uma agenda de esquerda centrada na luta contra a desigualdade e radicada numa aspiração frontal por uma sociedade mais justa. Ela partiu do pressuposto de que Corbyn seria o coveiro dos trabalhistas, quando afinal lhes trouxe um vigor renovado.

Mas esta relação de forças não pode ser verdadeiramente avaliada, se for esquecido que a direita radical, que foi uma alavanca decisiva para a ocorrência do “brexit”, o UKIP, ficou reduzida a 1,8 % (zero deputados), tendo por isso descido 10.8 % desde as eleições anteriores. Isto sim foi um desmoronamento. E os conservadores puderam absorver uma parte do que antes haviam perdido para a direita radical.

Os liberais democráticos, tidos como os campeões da coerência anti--brexit, tendo subido 3 lugares, perderam no entanto 0,5 % do voto popular.

Os nacionalistas escoceses, embora continuando a ser na Escócia o partido mais forte, perderam 19 deputados em 54, ficando apenas com 35, passando assim à escala nacional de 3% para 1,7%.

Algumas conclusões parecem nítidas perante o apoio popular obtido pelas diversas posições. Desde logo, vê-se que os britânicos, embora não indiferentes ao problema do “brexit”, estão mais preocupados com as políticas que internamente vão condicionar a sua vida do que com a alegada performance negocial no plano europeu, deste ou daquele. Nem o UKIP foi recompensado pela sua vitória no referendo pelos que o apoiaram, nem os liberais democratas foram compensados pelo seu europeísmo claro, pelos que são contra o “brexit”.

No seu conjunto, os dois maiores partidos superaram a barreira dos 80% dos votos, repartindo o apoio eleitoral obtido em partes quase iguais. Mas a grande novidade está no facto de os trabalhistas terem atingido os 40%, subindo assim quase dez por cento, com uma proposta política inequivocamente situada á esquerda, esvaziando assim a velha lenda de  que a esquerda só pode ganhar um apoio eleitoral significativo se fizer concessões á direita, de modo a fazer-se passar por uma esquerda  que afinal é centro.

É certo que os “chiens de garde” , os ideólogos do neoliberalismo qualificam como de um século passado todas as propostas que visem uma demarcação em face da atmosfera predatória do capitalismo atual, ambicionando  uma sociedade menos injusta  porque mais igualitária. Propostas que reflitam uma efetiva determinação em acabar com a pobreza, em cortar nos privilégios, suscetível de abrir as portas a um futuro decente para todos. É muito antigo o expediente de qualificar sumariamente como do passado aquilo que não se sabe ou se não quer combater substancialmente em campo aberto no presente . Na verdade, esse expediente é que é realmente do passado.

Mas talvez o mais decisivo tenha sido o facto de Corbyn ter deixado transparecer que o cerne do seu envolvimento político não era uma simples oferta de um programa eleitoral, mas a partilha de um combate. Ora, o povo de esquerda está cansado de ser laminado pela máquina trituradora do neoliberalismo, enquanto partidos que deviam ser seus se mostram mais inclinados a agradar aos poderes económicos de facto do que a ocupar dentro do povo de esquerda o lugar que justifica a sua própria existência. E ele ouve cada vez menos quem apenas lhe peça para votar periodicamente num programa mais ou menos redondo, onde apenas reluz aquilo que mais longe está de poder ser cumprido por quem continuar manso como de costume.

Em contrapartida, o povo de esquerda tem vindo a dar, em diversas circunstâncias  num e noutro país, sinais inequívocos de que está disposto a bater-se e mesmo  a confiar nos partidos que não se conformem com o tipo de sociedade hoje dominante, mostrando-se capazes de apostar na sua transformação, rumo a um pós-capitalismo democrático e emancipatório.

 Os povos parecem cada vez menos dispostos a ser dóceis e a  aceitarem que a máquina trituradora do capitalismo lhes esmague o futuro, sempre legitimada pelos que lhe dizem que não há outra solução. Falta saber se encontrarão um caminho que os transforme numa energia qualificante que possa fazer acontecer a esperança ou se ficarão aprisionados num desespero estéril  que apenas seja suscitável de fazer implodir o que existe numa deriva dissipativa e fatal.

Se os partidos de esquerda forem capazes de ser parceiros fraternos dos seus povos, mergulhando neles as suas raízes, partilhando com eles a procura de uma verdadeira superação democrática do capitalismo, a primeira hipótese é mais provável. Mas se forem enredados nas suas próprias tergiversações ou se sucumbirem à sofreguidão de um imediatismo atabalhoado, estarão a contribuir para que seja maior o risco da verificação da segunda hipótese.

Não deixemos pois reduzir o resultado das recentes eleições britânicas a esse croquete de evidências e banalidades que procura fazer luzir ao máximo as aparências, para que desistamos de pensar no que realmente ele nos mostra. Isto naturalmente sem o encarar como uma dádiva que apenas  nos caiba fruir; mas vendo-o como um sinal incontornável que vale a pena e é possível  lutar politicamente por um futuro mais justo.

Como apontamento caricatural e simbólico, Tony Blair, esse brilhante sargento do general Bush, veio publicamente antes da campanha juntar-se á matilha, tentando apoucar Corbyn. Julgou-o talvez moribundo, mas o que realmente deixou a descoberto foi  a fraqueza da sua lealdade e a falta de decência para com o partido que liderou e para com algué que ocupa hoje a posição que ele antes ocupara. Talvez tenha sido pedagógico,  porque nos fez  lembrar quem realmente é e nos fez recordar a medida em que contribuiu, com a sua via de rendição ao neoliberalismo, para o enfraquecimento dramático de alguns dos partidos que integram o Partido Socialista europeu e que seguiram por ela.

Tavez , Corbyn não lhe tenha ligado muito, mas implicitamente deu-lhe uma resposta demolidora. E tornou ainda mais difícil de contornar a evidência de que o “blairismo” é uma política morta, marcada indelevelmente por uma imprestável cobardia estratégica.

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