O resultado oculto das eleições
britânicas
As
diversas tonalidades de opinião, quanto ao resultado das recentes eleições britânicas,
não se afastam muito da imagem geral de um punição à sofreguidão da líder do
governo conservador, quando provocou a antecipação de eleições para tornar mais
forte a maioria absoluta de que o seu partido já dispunha no parlamento. Teria ,
aliás, querido matar dois coelhos com uma cajadada: ficava com uma posição mais
forte para negociar o “brexit” com a União Europeia e reduzia a uma dramática
insignificância os trabalhistas, aos quais as sondagens colocavam com uma desvantagem
de 20%.
Uma
dramática insignificância que era especialmente aliciante para a Srª May , dado
que a esperada derrocada dos
trabalhistas seria a alegada consequência do posicionamento político do seu líder, que os arautos e os escudeiros do pensamento único
consideravam como demasiado à esquerda, demasiado radicado no imperativo de
superação das dificuldades dos britânicos que realmente as têm.
Na
verdade, a Srª May ficou abaixo da maioria absoluta na Câmara dos Comuns,
precisando de um acordo, que se adivinha volátil, com os unionistas irlandeses,
para ter possibilidades de formar governo. Com os seus 318 deputados, precisa
dos 10 dos unionistas para passar a barreira dos 326 votos de que necessita.
Ficará com uma coligação ou com um acordo mais frágil do que aquilo que era a maioria
exclusivamente do seu partido antes das eleições. Os trabalhistas terão 262, os
nacionalistas escoceses 35 e os republicanos irlandeses 7.
Do
ponto de vista institucional, o significado político dos resultados verificados
é realmente o que se acaba de mencionar. Um significado que é a projeção da
relação de forças em termos de apoio popular, no modo de distribuição de
mandatos inerente ao sistema eleitoral britânico.
Mas
isso não impede que seja relevante olhar também para esses resultados eleitorais,
valorizando o apoio popular obtido por cada partido, o número de eleitores que
optaram por cada um dos partidos. E, assim, vê-se desde logo que os
conservadores chegaram aos 42,4%, subindo 5,5 % em relação às anteriores
eleições; enquanto os trabalhistas chegaram aos 40%, subindo 9,6 %. Ou seja, os
alegados 20% de diferença prometidos nas sondagens, ficaram reduzidos a uns
magros 2,4 %. Ou seja, em termos de apoio popular os trabalhistas de Corbyn,
apesar da barreira de hostilidade que enfrentou, ficaram a 2,4% dos
conservadores, apesar destes terem subido 5,5 %. Parece assim que a Srª May não
se enganou quanto ao reforço de apoio que realmente obteve, mas quanto ao apoio
popular a uma agenda de esquerda centrada na luta contra a desigualdade e
radicada numa aspiração frontal por uma sociedade mais justa. Ela partiu do
pressuposto de que Corbyn seria o coveiro dos trabalhistas, quando afinal lhes
trouxe um vigor renovado.
Mas
esta relação de forças não pode ser verdadeiramente avaliada, se for esquecido
que a direita radical, que foi uma alavanca decisiva para a ocorrência do
“brexit”, o UKIP, ficou reduzida a 1,8 % (zero deputados), tendo por isso
descido 10.8 % desde as eleições anteriores. Isto sim foi um desmoronamento. E
os conservadores puderam absorver uma parte do que antes haviam perdido para a
direita radical.
Os
liberais democráticos, tidos como os campeões da coerência anti--brexit, tendo
subido 3 lugares, perderam no entanto 0,5 % do voto popular.
Os
nacionalistas escoceses, embora continuando a ser na Escócia o partido mais
forte, perderam 19 deputados em 54, ficando apenas com 35, passando assim à
escala nacional de 3% para 1,7%.
Algumas
conclusões parecem nítidas perante o apoio popular obtido pelas diversas
posições. Desde logo, vê-se que os britânicos, embora não indiferentes ao
problema do “brexit”, estão mais preocupados com as políticas que internamente
vão condicionar a sua vida do que com a alegada performance negocial no plano
europeu, deste ou daquele. Nem o UKIP foi recompensado pela sua vitória no
referendo pelos que o apoiaram, nem os liberais democratas foram compensados pelo
seu europeísmo claro, pelos que são contra o “brexit”.
No
seu conjunto, os dois maiores partidos superaram a barreira dos 80% dos votos,
repartindo o apoio eleitoral obtido em partes quase iguais. Mas a grande
novidade está no facto de os trabalhistas terem atingido os 40%, subindo assim
quase dez por cento, com uma proposta política inequivocamente situada á
esquerda, esvaziando assim a velha lenda de
que a esquerda só pode ganhar um apoio eleitoral significativo se fizer concessões
á direita, de modo a fazer-se passar por uma esquerda que afinal é centro.
É
certo que os “chiens de garde” , os ideólogos do neoliberalismo qualificam como
de um século passado todas as propostas que visem uma demarcação em face da atmosfera
predatória do capitalismo atual, ambicionando uma sociedade menos injusta porque mais igualitária. Propostas que reflitam
uma efetiva determinação em acabar com a pobreza, em cortar nos privilégios,
suscetível de abrir as portas a um futuro decente para todos. É muito antigo o
expediente de qualificar sumariamente como do passado aquilo que não se sabe ou
se não quer combater substancialmente em campo aberto no presente . Na verdade,
esse expediente é que é realmente do passado.
Mas
talvez o mais decisivo tenha sido o facto de Corbyn ter deixado transparecer
que o cerne do seu envolvimento político não era uma simples oferta de um programa
eleitoral, mas a partilha de um combate. Ora, o povo de esquerda está cansado
de ser laminado pela máquina trituradora do neoliberalismo, enquanto partidos que
deviam ser seus se mostram mais inclinados a agradar aos poderes económicos de
facto do que a ocupar dentro do povo de esquerda o lugar que justifica a sua própria
existência. E ele ouve cada vez menos quem apenas lhe peça para votar periodicamente
num programa mais ou menos redondo, onde apenas reluz aquilo que mais longe
está de poder ser cumprido por quem continuar manso como de costume.
Em
contrapartida, o povo de esquerda tem vindo a dar, em diversas circunstâncias num e noutro país, sinais inequívocos de que
está disposto a bater-se e mesmo a
confiar nos partidos que não se conformem com o tipo de sociedade hoje dominante,
mostrando-se capazes de apostar na sua transformação, rumo a um pós-capitalismo
democrático e emancipatório.
Os povos parecem cada vez menos dispostos a
ser dóceis e a aceitarem que a máquina
trituradora do capitalismo lhes esmague o futuro, sempre legitimada pelos que
lhe dizem que não há outra solução. Falta saber se encontrarão um caminho que
os transforme numa energia qualificante que possa fazer acontecer a esperança ou
se ficarão aprisionados num desespero estéril que apenas seja suscitável de fazer implodir o
que existe numa deriva dissipativa e fatal.
Se
os partidos de esquerda forem capazes de ser parceiros fraternos dos seus povos,
mergulhando neles as suas raízes, partilhando com eles a procura de uma verdadeira
superação democrática do capitalismo, a primeira hipótese é mais provável. Mas se
forem enredados nas suas próprias tergiversações ou se sucumbirem à sofreguidão
de um imediatismo atabalhoado, estarão a contribuir para que seja maior o risco
da verificação da segunda hipótese.
Não
deixemos pois reduzir o resultado das recentes eleições britânicas a esse
croquete de evidências e banalidades que procura fazer luzir ao máximo as aparências,
para que desistamos de pensar no que realmente ele nos mostra. Isto
naturalmente sem o encarar como uma dádiva que apenas nos caiba fruir; mas vendo-o como um sinal
incontornável que vale a pena e é possível lutar politicamente por um futuro mais justo.
Como
apontamento caricatural e simbólico, Tony Blair, esse brilhante sargento do
general Bush, veio publicamente antes da campanha juntar-se á matilha, tentando
apoucar Corbyn. Julgou-o talvez moribundo, mas o que realmente deixou a
descoberto foi a fraqueza da sua
lealdade e a falta de decência para com o partido que liderou e para com algué
que ocupa hoje a posição que ele antes ocupara. Talvez tenha sido pedagógico, porque nos fez lembrar quem realmente é e nos fez recordar a
medida em que contribuiu, com a sua via de rendição ao neoliberalismo, para o enfraquecimento
dramático de alguns dos partidos que integram o Partido Socialista europeu e
que seguiram por ela.
Tavez
, Corbyn não lhe tenha ligado muito, mas implicitamente deu-lhe uma resposta demolidora.
E tornou ainda mais difícil de contornar a evidência de que o “blairismo” é uma
política morta, marcada indelevelmente por uma imprestável cobardia estratégica.
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