A
imponente França de Mácron ─ uma ilusão institucional?
Só o decurso do próximo
quinquénio da Presidência de Mácron em França nos dirá se a sua entrada de
rompante na cena política assinala o princípio do fim da quinta república ou o
seu renascimento.
A primeira volta das
eleições legislativas confirmou a vaga de fundo a seu favor que as sondagens
haviam anunciado. Embora só após a segunda volta se fique a saber a dimensão da
vitória do “La Republique en Marche“ (LRM), não há dúvida de que ela será
retumbante, quanto ao número de deputados eleitos. Feitas as contas, talvez
seja mesmo impossível que lhe venha a escapar a maioria absoluta, mesmo que haja
uma reviravolta improvável, na segunda volta.
As projeções de
resultados apontam como possível que os macronianos
tenham mais do dobro dos deputados de todos os outros partidos juntos;
entre 415 e 455 num parlamento com 577 lugares. Deste modo, na Assembleia Nacional
o seu predomínio será esmagador. Veremos que força virão a ter no Senado, bem
como nos órgãos de poder regional e
local, dada a anunciada deserção a seu favor de alguns dos respetivos
protagonistas, vindos da esquerda e da direita.
Mas o binómio
Presidente da República/ maioria parlamentar, com esse peso institucional
avassalador, que base eleitoral terá, em termos reais? Que percentagem do
eleitorado votou nos deputados macronianos?
Quantos franceses votaram neles, nesta primeira volta das legislativas?
O jornal francês “Le
Monde” publicou uma análise comparativa que vale a pena ter em atenção. Comparou
as percentagens obtidas pelo partido ou partidos que apoiaram o Presidente da
República eleito nas primeiras eleições legislativas subsequentes à respetiva
eleição. Tendo em conta situações semelhantes que ocorreram em 1981, 1988,
2002, 2007 e 2012,a percentagem obtida pelos apoiantes de Mácron, na primeira
volta das legislativas de 2017, foi a mais baixa de todas; obteve 32,2 %, dos
quais 28,1% foram conseguidos pelo LRM. Se compararmos com o que
ocorreu com Hollande há cinco anos, verificamos que na primeira volta das
legislativas subsequentes à sua eleição, os partidos que o apoiavam obtiveram
46,77 % , tendo o PSF sozinho atingido 29,35 %.
Paralelamente, a
abstenção subiu, de uma eleição para a outra, mais de 5 milhões de eleitores. Na
primeira volta destas últimas legislativas, os partidos de esquerda (como um
todo) foram laminados, embora o desastre do PS tenha sido de longe o maior e
tenha havido um reforço da França Insubmissa/Partido Comunista Francês (FI/PCF).
Somando as percentagens atingidas por todas as esquerdas, vemos que elas chegaram
a 28,32%, em confronto com os 32,21 % da maioria macroniana. A maioria macroniana
tem duas parcelas, LRM -28,21% e MODEM -4,11%. Assim, o
conjunto de todas as esquerdas tem uma vantagem muito ligeira em número de
votos relativamente aos macronianos “puro
sangue”.
No entanto, as
projeções apontam para uma relação de forças em número de deputados em que a
maioria macroniana pode chegar aos
455 deputados eleitos, enquanto que as esquerdas somadas, na pior das hipóteses,
podem ficar-se pelos 27 deputados (20-PS; 7- FI). O que separa os dois blocos,
no plano do apoio popular efetivo, é a diferença entre sete milhões e trezentos
mil e seis milhões e quatrocentos mil eleitores. Diferença distorcida pelo tipo
de conversão de votos em mandatos que faz com que uma relação de forças, em que
a vantagem da maioria presidencial se reduz ao peso do MODEM (4%), se converta
na abissal diferença entre 455 e 27.
Esta anomalia democrática, suscitada pelo cruzamento entre
um sistema uninominal a duas voltas e uma nova relação de forças entre os
grandes espaços políticos franceses, não se circunscreve ao que se acaba de
escrever. Recorramos, uma vez mais , ao Le
Monde que procedeu a um cálculo
simulado que mostrasse quantos deputados teriam sido eleitos por cada
partido para o parlamento francês, no
caso de os votos obtidos no passado domingo terem sido convertidos em mandatos segundo o método proporcional. A
maioria presidencial de Mácron, em vez de se fixar em 455 deputados, como as
projeções mais otimistas lhe vaticinam no quadro do atual sistema eleitoral,
ficar-se-ia pelos 186; ou seja, mais de cem deputados abaixo da maioria
absoluta ( que é de 289). Os socialistas e aliados teriam 80 deputados em vez
de um máximo de 30; a FI e o PCF teriam 84 em vez de 12.
Ou seja, o conjunto da
esquerda, com 164 deputados, ficaria com menos 22 deputados do que os 186 de
Mácron. No atual sistema de distribuição de mandatos, com a mesma diferença em número
de votos a esquerda no seu todo poderá ficar, na melhor das hipóteses com 42
deputados em face dos 455 dos macronianos.
Ou seja, com menos 4% de votos do que a maioria presidencial, a esquerda ficará com menos de um décimo dos deputados
que caberão aos macronianos.
O resto da Assemblée Nationale agrava a disfuncionalidade
deste panorama. A FN, que poderá ter no máximo 5 deputados no sistema atual teria
85, se o escrutínio fosse proporcional. Apenas a direita tradicional é menos
severamente atingida. Na verdade, conta-se que tenha no máximo 110 deputados no
sistema vigente, enquanto chegaria aos 124 numa distribuição proporcional. No total,
a maioria presidencial ficará com mais de 78% dos deputados, embora só disponha
de menos de um terço dos votos; mas os outros dois terços de votos ficarão
representados por pouco mais de 20% dos deputados.
De um ponto de vista
institucional, a legitimidade de Mácron e da maioria parlamentar que o apoia é
inquestionável, mas os cidadãos que o apoiam não se multiplicam por
prestidigitação e os que não se reveem no seu projeto não se evaporaram. Em
mais de 45 milhões de inscritos, houve mais de 24 milhões de franceses que se
abstiverem, não tendo assim votado nem nos apoiantes de Mácron, nem nos outros.
Ao fim e ao cabo, apenas 7 milhões e trezentos mil franceses se mostraram
identificados com o projeto Mácron, enquanto mais de 15 milhões e quinhentos
mil se mostraram alinhados com outras posições ao votarem nelas . Portanto, a
enorme vaga institucional de apoio a Mácron não pode deixar de ser redimensionada,
à luz da relativa modéstia da sua efetiva irradiação social.
É certo que ele vai ter
a força que resulta do enfraquecimento dos outros. A direita clássica ainda não
sabe a extensão dos danos sofridos, não calculou ainda o grau de oposição que
vai ter e os seus punhais já a ser afiados
não sabem ainda em que costas “amigas” se vão cravar. A extrema-direita está em
pausa, hesitando entre a continuidade e a habilidade, esperando perceber que
espaço sociopolítico lhe vai ser concedido pelo macronianismo. À esquerda, os ecologistas parecem em suspenso,
vagamente receosos de uma irrelevância duradoura. A FI tornou-se, em conjugação
com o PCF, a força numericamente predominante á esquerda, ainda que não deva
vir a ter o conjunto de deputados relativamente mais numeroso. A conjugação
deste reforço com a perenidade ou não do PCF projeta neste espaço uma equação
complexa.
Quanto ao Partido
Socialista Francês passou de 29,35 % de votos na primeira volta das
legislativas de 2012, para 7,44%, cinco anos depois; tendo perdido quase seis
milhões de votos nestes últimos cinco anos. Despindo-o dos seus aliados
habituais, ele próprio considerado isoladamente ficou ligeiramente abaixo de um
milhão e setecentos mil votos. Não é neste momento totalmente clara a medida em
que está internamente dilacerado entre dinâmicas inconciliáveis. É ainda
incerto se tentará liderar uma esquerda, no seio da qual conviverá outros sujeitos
políticos, se será vítima de uma fatal atração pela maioria presidencial, se
será repartido entre esses dois caminhos.
Depois do próximo
domingo, voltaremos a falar sobre tudo isto. Especialmente, a propósito do PSF;
dos seus desígnios e do seu horizonte.
Com o tempo irá ficando
inequivocamente a descoberto a matriz do macronianismo,
cujo primeiro-ministro é já hoje um antigo expoente da direita clássica. O que
ocorreu nestas duas mais recentes eleições de maio e junho, é desde já um golpe
profundo nos socialistas franceses, que vem somar-se a outros desaires socialistas
noutros países, se bem que não em todos. Só por isso, teria sido um golpe
relevante no panorama politico-partidário da França. Mas o que acabo de
escrever mostra bem que, mais do que isso, o que está em cima da mesa é uma
crise profunda no sistema político francês.
Na verdade, é uma aventura
imprudente aceitar um tipo de conversão de votos em mandatos que empola
escandalosamente uma minoria, por ser ela a maior minoria , em detrimento de
várias outras minorias que sendo menores, uma a uma, consideradas em conjunto
valem o dobro daquilo que vale a minoria maior; aquela que se prepara para um açambarcamento
desmesurado do poder.
O foguetório dos “robertos”
da comunicação social europeia festejou a
derrota da extrema-direita representada pela vitória de Mácron. Mas nada pode
ser mais favorável á FN em França do que ficcionar como democraticamente aceitável
o exercício de um poder baseado num sistema eleitoral que dá o predomínio absoluto
a um terço do eleitorado e deixa fora do jogo institucional os outros dois
terços. Esta relativização da democracia, se for por diante com a arrogância que
se já se adivinha e com o menosprezo das
minorias e mundo do trabalho, pode fazer exultar os alegados mercados, mas não
deixa de ser, principalmente, uma inesperada vitória simbólica da Frente Nacional.