Dissonâncias e convergências.
A energia com que nos
envolvemos na vida política é em geral um sintoma de vitalidade. Mas não é
prudente renunciar ao permanente uso de um filtro crítico, com o qual sopesemos
sempre o nosso entusiasmo, a nossa virulência e o nosso grau de atenção.
De facto, exacerbar as
diferenças políticas quer entre os socialistas, quer, numa perspetiva mais
geral, dentro do conjunto das várias esquerdas, pode não ser completamente saudável.
Na verdade, se nos limitarmos a valorizar apenas questões operacionais,
organizativas e táticas, isso implicará objetivamente, por si só, secundarizar
as questões estratégicas. Secundarizar questões estratégicas implica perder de
vista, no dia a dia, o horizonte onde se inscreve o pós-capitalismo rumo a uma
sociedade alternativa. A paixão excessiva pelo imediato, independentemente das
intenções dos apaixonados, deixa necessariamente na sombra a paixão por uma
verdadeira transformação da sociedade.
Se os que entendem que
o capitalismo não é compatível com a democracia, nem com a justiça, nem com a felicidade,
nem com a dignidade da pessoa humana, nem com uma esperança razoável na
sobrevivência da nossa espécie, não se preocuparem em combatê-lo através da
luta política, pelo menos tendo-o em conta em tudo o que propuserem, podem
tornar-se seus cúmplices objetivos. Ou seja, podem tornar-se peças, quiçá
inconscientes, do dispositivo politico-ideológico de conservação histórica do
capitalismo.
A inércia estratégica e
prospetiva dos que se sentem seus inimigos é um dos seus mais eficazes meios de
defesa. E essa quietude estratégica e prospetiva não é compensada pelo
entusiasmo que alguns desses inertes eventualmente possam pôr numa qualquer luta
implacável guiada por ódios intensos, mas irremediavelmente confinada a causas paroquiais e pequenas. Grandes cóleras
contra pequenas coisas são certamente um desperdício.
Realmente, se o
socialismo é uma democracia em constante aperfeiçoamento e a projecção emancipatória
de uma sociedade justa em que a liberdade seja um respiração colectiva por
todos vivida e que, portanto, não é negada a ninguém, então ele é não só uma
razão de vida, mas também uma condição de futuro. E não existindo um livro do
destino, onde esteja escrito com as letras da esperança o futuro que identifica
os socialistas, esse futuro depende das nossas ações e das nossas omissões. Aproximar-se-á
com os nossos acertos, distanciar-se-á com os nossos erros. Que o horizonte
socialista se torne mais ou menos provável depende de nós.
Queremos ser levados na
torrente da história, como folhas de outono melancólicas e desesperadas? Ou
preferimos ousar interferir na corrente da vida, como força que entra na
disputa pelo seu rumo e que procura calibrar-lhe a intensidade? Pequena força?
Talvez. Mas seguramente maior do que aquela que exerceremos se nos alheamos da História,
conformando-nos a sofrê-la como um fado triste.
Talvez cada um de nós só
possa fazer pouco. Mas se nos juntamos num partido, num sindicato, numa
organização solidária, num movimento social ou cultural, numa explosão cívica
bem medida, talvez possamos fazer mais qualquer coisa. Se nos juntarmos para
agir em conjunto, prosseguindo o objetivo que nos congregou.
Parece óbvio, mas todos
sabemos que não é fácil. Ou que é mais fácil dizê-lo do que fazê-lo. Seja como
for, não deixa de ser objectivamente urgente. Muito urgente. Em Portugal, na
Europa e no mundo, há uma ordem social injusta predadora da democracia que vai
corroendo a sociedade e a Terra. A razão de ser dos socialistas é a transformação
dessa ordem tão desordenada. Transformá-la rumo à liberdade, à igualdade e à
fraternidade.
É compreensível, necessário
e útil que cada um atue sempre com fidelidade plena àquilo que lhe pareça
justo, desde que nunca esqueça que outros podem não pensar o mesmo. Estejamos
perante grandes ou pequenas questões.
Por outro lado, será altamente salubre que
aprendamos a reservar os grandes ódios para as grandes causas, a guardar as
grandes cóleras para lutarmos contra os grandes obstáculos, conta as injustiças
gerais.
Será altamente salubre
que não deixemos que as nossas emoções se dissipem num exacerbar de ódios e de cóleras,
de grandes ódios e de grandes cóleras contra pequenas coisas, pequenas
divergências, pequenas erros, pequenas causas. Realmente, seja qual for a nossa
intenção, se ficarmos muito tempo fechados em problemas pequenos,
esquecendo-nos dos grandes, acabaremos por ficar com a dimensão das coisas com
que nos preocupamos.
E, como todos sabemos,
se olharmos apenas para os nosso pés, mais difícil será encontrarmos o caminho.