1.
A comunicação social tem usado o epíteto de “seguristas” para dar significado
coletivo e projeção política às posições de alguns apoiantes da António José
Seguro, na mais recente disputa interna dentro do PS, que têm manifestado a sua
oposição a uma eventual solução política que envolva os partidos de esquerda.
Também apoiei AJS nessa disputa, mas sou favorável à tentativa de convergência
à esquerda e completamente oposto a qualquer complacência para com a direita.
Não me considero pois representado por esses porta-vozes deles próprios que
deixaram que se lhes colasse um carimbo que sugere terem recebido um mandato
que não existe. Se há algum “ista” que
legitimamente podem ostentar é apenas o que se prenda com os seus próprios
nomes.
Tenho as mais fortes
dúvidas de que eles reflitam a opinião, quanto à conjuntura atual, de mais do
que uma pequena parte dos apoiantes de AJS. Como mero indício nesse sentido,
posso citar o que ocorreu há poucos dias na Comissão Política Concelhia de
Coimbra. Entre as vozes que se fizeram ouvir apenas duas se podem considerar compatíveis
com as posições acima referidas e uma delas não era de um apoiante de AJS. Pelo
contrário, houve uma boa meia dúzia de intervenientes que, tendo antes apoiado
AJS, foram absolutamente claros no seu apoio a uma abertura à esquerda. Paralelamente,
numa posterior reunião da Comissão
Política da Federação Distrital, em que não participei e na qual participaram
bastantes apoiantes de AJS, ao que me foi dito, não se levantaram vozes
críticas quanto ao caminho que tem vindo a ser seguido.
2. Qualquer militante do PS tem direito
a exprimir a sua opinião. E inscreve-se no seu foro ético pessoal a calibragem
do exercício desse direito. Uma calibragem que, no entanto, deve ter em conta o
momento político que se viva e a medida em que a publicidade das posições tomadas
possa favorecer os nossos adversários e prejudicar o PS. Mas não me parece que
seja eticamente abrangido por essa liberdade o consentimento de que a comunicação
social lhes aponha qualificativos que
sugiram que falam em nome de muitos outros que afinal não só não foram
consultados como até nem concordam com o
que eles dizem.
A maior parte dos membros
do PS críticos da abertura às outras esquerdas, cuja voz teve eco público, parecem
capturados pela narrativa da direita sobre o significado dos resultados
eleitorais. Estranhamente, qualificam como natural o apoio a um governo de uma
direita possuída pelo fundamentalismo neoliberal, mas alarmam-se com a
instituição de um governo protagonizado ou liderado pelo PS. Conformam-se com a
humilhante subalternidade perante um governo que combatemos até agora e que tem
arrastado o nosso país para a decadência e o nosso povo para o sofrimento, com
um governo constituído por gente que agride miseravelmente o PS dias após dia,
e que mesmo agora continua a insultar-nos. Foi essa rendição sem honra que
motivou os nossos eleitores a escolherem-nos? Mas esse conformismo conjuga-se
neles com uma demarcação acre em face da hipótese de um governo onde o PS seria
sempre a força liderante , se não se tratasse afinal de um governo socialista
monocolor com apoio parlamentar de todas as esquerdas. Parecem sentir-se mais
confortáveis num PS que seja uma muleta de uma direita trôpega do que num PS
que assuma a liderança de uma solução governativa que consubstancie um
entendimento das esquerdas.
Parecem prisioneiros de
preconceitos e acontecimentos de um outro século, ecos de uma geopolítica que
caducou há décadas, arautos de uma alegada modernidade que o tempo envelheceu,
tolhidos pelo medo de qualquer futuro que não seja um espelho pobre dos
bloqueios presentes. Parecem encadeados pelo ilusionismo neoliberal que projeta
do presente uma imagem virtual que ele próprio rapidamente esquece, quando se
trata de agir em face dela. E é precisamente esse encadeamento que explica a
facilidade com que embarcam na imagem distorcida que a direita tenta projetar
do significado dos resultados eleitorais. Ao não atingir a maioria absoluta a
coligação de direita sofreu a derrota decisiva, que aliás procurou evitar
congregando os dois partidos do governo cessante. As oposições ao governo em
conjunto venceram-no, embora nenhuma delas tivesse alcançado um resultado que
lhe permitisse governar sozinha. O governo não pode cantar, por isso, uma
vitória inexistente, fingindo que não teve contra ele mais do que cinquenta por
cento do eleitorado.
Dentro de uma casa
comum de esquerdas como é o PS, com uma grande amplitude politico-ideológica e com uma
relevante dimensão eleitoral, é natural que existam uma ou várias esquerdas ,
uma ou várias direitas. Todas se devendo oferecer legitimamente ao
escrutínio periódico do militantes que livremente
escolham entre elas. Muito poucas vezes isso tem transparentemente acontecido.
O mais comum são disputas fulanizadas, menos ideológicas do que tribais, mais
radicadas em divisões conjunturais do que em clivagens estruturantes. Isso
aconteceu nitidamente nas mais recentes disputas quanto à liderança do PS. As
opções que se podem considerar de esquerda e as que se podem considerar de
direita, (enquanto qualificativos identificadores e nunca como índices
valorativos) estavam conjugadas nas candidaturas que se confrontaram.
Por isso, numa clivagem
como aquela que se manifesta a propósito do processo de formação do governo, em
que há uma forte conotação politico- ideológica na escolha entre os caminhos
possíveis, é natural que os
apoiantes da António Costa bem como os apoiantes de António José Seguro se
dividam. Por isso, é que sugerir que quem apoiou AJS é contra a abertura
às esquerdas, a partir da amplificação do eco de meia-dúzia de manifestações
públicas de opinião, é uma falsificação da realidade. Falsificação tanto mais
insuportável quanto parece claro que dentro do PS é largamente maioritário o
repúdio pelo apoio a um governo de direita e a consequente preferência por um governo
que resulte de um entendimento entre as esquerdas.
Em política não há
caminhos sem risco, mas se um entendimento entre as esquerdas pode sofrer dificuldades
pela pressão de possíveis boicotes dos poderes de facto, dos vampiros financeiros
e da cumplicidade sem pudor das direitas europeias, a rendição à direita é ela
própria um sofrimento, um colapso estrutural, um desmoronamento identitário. No
primeiro caso, podemos ter no governo dificuldades por assumirmos a nossa
identidade histórica e o nosso dever ético-político, mas no segundo caso
podemos ter de arcar com a partilha de responsabilidades pelos desmandos de um
governo a que somos alheios e que tem como um dos alvos principais dos seus
ataques e dos seus insultos o próprio PS. Num caso, poderemos ter dificuldades,
em função de uma prática política em que somos liderantes; no outro caso,
sofreremos as consequências de uma ação governativa dos principais algozes políticos dos que
confiaram em nós.
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