POEMAS
de Manoel de Barros
1.
O poema é antes de tudo um inutensílio.
Hora de iniciar algum
convém se vestir roupa de trapo.
Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.
Faz bem uma janela aberta
uma veia aberta.
Para mim é uma coisa que serve de nada o
poema
enquanto vida houver.
Ninguém é pai de um poema sem morrer.
(do livro “Arranjos para assobio”)
2.
Eu sou o medo da lucidez.
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de
trampas.
Peguei uma ideias com as mãos ─ como a
peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por
versos.
Aquele arame do horizonte que separava o
morro do céu
estava
rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases
Um descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.
(do
livro “O guardador de águas”)
3.
Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam.
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.
Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.
O dia vai morrer aberto em mim.
(do livro “Livro
sobre nada”)
4.
Retrato do artista quando coisa: borboletas
Já trocam as árvores por mim.
Insetos me desempenham.
Já posso amar as moscas como a mim mesmo.
Os silêncios me praticam.
De tarde um dom de latas velhas se atraca
em meu olho.
Mas eu tenho predomínio por lírios.
Plantas desejam a minha boca para crescer
por de cima.
Sou livre para o desfrute das aves.
Dou meiguice aos urubus.
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas.
Já enxergo o cheiro do sol.
(do livro “Retrato
do artista quando coisa”)
5.
Deus disse: vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.
(do livro “Retrato
do artista quando coisa”)
6.
Formigas
Não precisei de ler São Paulo, Santo Agostinho,
São Jerônimo, nem Tomás de Aquino, nem São
Francisco de Assis ─
Para chegar a Deus.
Formigas me mostraram Ele.
( Eu tenho doutorado em formigas.)
(do livro “Ensaios
fotográficos”)
7.
Sonata
ao Luar
Sombra Boa não tinha e-mail.
Escreveu um bilhete:
Maria me espera debaixo do ingazeiro
quando a lua tiver arta.
Amarrou o bilhete no pescoço de cachorro
e atiçou:
Vai, Ramela, passa!
Ramela alcançou a cozinha num átimo
Maria leu e sorriu.
Quando a lua ficou arta Maria estava.
E o amor se
fez
Sob um luar sem defeito de abril.
(do livro “Poemas
rupestres”)
8.
Garça
A palavra garça em meu perceber é bela.
Não seja só pela elegância da ave.
Há também a beleza letral.
O corpo sônico da palavra
E o corpo níveo da ave
Se comungam.
Não sei se passo por tantã dizendo isso.
Olhando a garça-ave e a palavra garça
Sofro uma espécie de encantamento poético.
(do
livro “Poemas rupestres”)
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