Os conceitos nebulosos nunca abandonaram a cena política internacional, mas quando há uma crise mais grave eles retomam um viço mais intenso. É o que está a acontecer com a crise russo-georgiana.
Passou a falar-se muito no ”ocidente”, bem como na “comunidade internacional”. Vi diversos representantes dos USA e da União Europeia, a afirmar que a “comunidade internacional” acha isto e aquilo, ou que o “ocidente” pensa desta ou daquela maneira. Para além de se poder discutir a propriedade e o sentido de cada um desses conceitos, na circunstância concreta eles são apenas conceitos-propaganda que têm como principal função suscitar a ideia de que as posições dos USA e da União Europeia não são apenas de uns e outra, mas são uma espécie de consenso mundial partilhado pelos povos do mundo.
Mas pode perguntar-se: em que circunstâncias outros povos e outros países delegaram nesses porta-vozes a legitimidade para difundirem como universais essas posições?
E, no entanto, para não falar na invasão do Iraque, decidida contra a lei internacional com base em mentiras hoje universalmente conhecidas como tais, qualquer criança com bom senso teria percebido, quando os USA e a União Europeia decretaram a amputação da Sérvia, reconhecendo a independência do Kosovo ao arrepio do direito internacional, que se estava a legitimar (ou até a estimular) procedimentos idênticos em casos semelhantes.
Ainda por cima, a Geórgia (país com a terceira maior força de ocupação no Iraque) atacou brutalmente a capital da Ossétia do Sul, arrasando uma parte da cidade, rompendo um status quo com mais de uma dezena de anos, protegido por uma força de manutenção de paz russa, legitimada pela comunidade internacional com a concordância da Geórgia.
Basta que pensemos o que significaria, em termos de credibilidade internacional e de dignidade política, o facto de os russos terem aceite a reocupação violenta da Ossétia sem reagirem, deixando que se rompesse pelo uso da força a situação existente. Os USA e a União Europeia teriam ficado de braços cruzados se a Sérvia tivesse invadido o Kosovo, quando este se declarou unilateralmente independente?
Se misturarmos esta questão com o escudo antimíssil, que está a ser preparado pelos USA na Europa Oriental, fica claro que há aqui um perfume de política imperial que sublinha pelo seu primarismo a via desastrada seguida pelo “bushismo” agonizante e mostra como a União Europeia está hoje carecida de políticos capazes de lhe desenharem um perfil autónomo na cena internacional.
E é particularmente triste verificar que, pelo menos neste campo, a Internacional Socialista, como suporte de uma visão própria da conjuntura mundial, parece não existir.
Muito se pode especular sobre os cálculos manhosos das lideranças georgianas ou norte-americanas para levarem a acabo uma provocação tão grosseira nesta ocasião. Será que o crucial foi aproveitar estes meses, que Bush ainda tem, para fechar dossiers ou para deixar aos vindouros heranças envenenadas?
Enfim, a paz ficou mais distantes e Gorbachov já alertou para um risco de guerra que se julgava esconjurado pelo fim da “guerra fria”.
Afeganistão, Iraque, Kosovo, Geórgia, Palestina são epifenómenos da injustiça que ainda predomina no mundo actual, gerando conflitos que depois se não encerram nem resolvem.
O desastre das administrações “bushistas”, a anemia política da União Europeia, as saudades imperiais da Rússia, o produtivismo nacionalista chinês e a leveza estratégica de alguns países emergentes, fizeram o mundo recuar em termos civilizacionais na última década, mergulhando-o em guerras parcelares e parecendo ressuscitar o risco da guerra global.
A esquerda socialista, a Internacional Socialista, se não quiser correr o risco de se tornar definitivamente irrelevante, não pode continuar politicamente anémica na arena internacional. Tem que construir uma política própria e autónoma de paz e de liberdade. Não podemos continuar a deixar-nos guiar pela dialéctica cega dos poderes de facto dos impérios económicos, encabeçada politicamente por oligarquias broncas e reaccionárias.
Caminhar para a liberdade e para a autodeterminação de todos os povos, através de uma via pacífica, subordinada ao direito internacional e a uma ética de convivência universal, é uma opção muito difícil, mas não tem alternativa. E se os povos e os países se relacionarem com mais justiça e com respeito pela liberdade de todos eles, num quadro geopolítico solidário, os caminhos difíceis ficarão mais fáceis.
Se continuarmos aprisionados em batalhas de propaganda que são caricaturas da realidade, ofendem a inteligência e acicatam ódios e ressentimentos, só podemos com realismo esperar do futuro o pior.
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
Os economistas e o humor de um Presidente
De uma notícia, extraída do diário brasileiro "Folha de S. Paulo" de hoje, retirei um saboroso momento de boa disposição do Presidente Lula.
Falando da sua frustração, por não ter podido estudar mais, revelou que teria optado pela economia, concluindo com humor :
"Porque economista é uma beleza. Quando economista é oposição, ele tem solução para tudo. Quando ele chega no governo, não tem solução para nada".
segunda-feira, 18 de agosto de 2008
Aprendizes de feiticeiro ?
Transcrevo de seguida um pequeno texto da revista brasileira CartaCapital, da responsabilidade da sua redacção, intitulado "Berlusconismo ou fascismo?", datado do passado dia 15.
"A revista Newsweek, outrora considerada progressista, afirma que nos primeiros cem dias de governo Silvio Berlusconi saiu-se bem. O semanário católico italiano, Famiglia Cristiana, de larga influência, divulga um relatório da revista francesa Esprit, e diz em editorial “esperamos que não volte um fascismo de roupa nova”. Que fez Berlusconi em cem dias? Segundo a Newsweek, tirou o lixo das ruas de Nápoles, botou o Exército a patrulhar as cidades juntamente com os carabinieri, mandou recolher as impressões digitais das crianças rom, combateu os acampamentos nômades, criou novos entraves à entrada de imigrantes no país de grandes imigrações. Ah, sim, cobriu com piedoso véu o seio da opulenta senhora que Gian Battista Tiepolo pintou no século XVII na célebre tela A Verdade Desvendada pelo Tempo. O quadro domina, indiferente, uma das paredes do Palazzo Chigi, sede da presidência do Conselho. Trata-se, felizmente, de uma cópia. Tudo isso encanta o semanário nova-iorquino, bem como, supõe-se, as leis aprovadas pelo Parlamento, graças à ditadura da maioria, para acabar com as inúmeras pendengas judiciárias que envolvem o homem mais rico da Itália. Já Famiglia Cristiana rema na rota oposta, e não se deixa seduzir pelo véu estendido sobre o seio da Verdade. Pelo contrário, encara as medidas berlusconianas como demonstração de um risco possível, se não provável. Talvez as duas revistas extrapolem e exagerem. Diz, porém, Umberto Eco: “Não posso dizer que o clima do início dos anos 40 tenha voltado, mas começo a aspirar seu perfume”. E o Prêmio Nobel Dario Fo: “Como o fascismo, o berlusconismo é mal insidioso, difícil de estirpar”. E Eugenio Scalfari, tido como o maior jornalista italiano vivo: “Não será fascismo, mas é o preocupante começo de uma ditadura". "
Saúde-se a preocupação da "Famiglia Cristiana", em contraste com a bonomia com que a Igreja de Roma sempre encarou Berlusconi. Bonomia de que o católico Prodi nunca beneficiou, quando chefiou, por duas vezes, governos italianos de esquerda.
Será a proximidade entre berlusconianismo e fascismo um excesso de hostilidade em face do actual poder italiano ? Talvez. Mas o que pertence ao mundo dos factos é a fusão do partido de Berlusconi com os ex-fascistas italianos liderados por Fini. Uma fusão que suporta agora um Governo.
Será que a Itália e a Igreja de Roma ainda não conseguiram esquecer a "guerra fria"? Se o bruxulear da "Famiglia Cristiana" for um pequeno indício dessa futura grande notícia, há razões para nos congratularmos.
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
O Opaco Juízo dos Guerreiros
1. Os guerreiros imparam de soberba perante a declaração de independência do Kosovo, tendo achado exigível à Sérvia conformar-se com o desenlace.
Em contrapartida, os mesmos acham agora um acto de óbvia legitimidade o facto de a Geórgia ter ocupado pela força a Ossétia do Sul e vociferam fortemente quando a Rússia se apressou a defender os ossetas.
Os guerreiros não perceberam ( ou fingiram não perceber ) que quando se passou por cima do direito internacional para obrigar pela força a Sérvia a abdicar de uma parte do território sobre o qual era reconhecida a sua soberania, se abriu a porta a procedimentos idênticos em outros lugares do mundo, perante situações semelhantes.
Os guerreiros não perceberam que quando se coloca a relação de forças como guia do comportamento político se facilita a proeminência dessa mesma lógica, que passa a poder funcionar em qualquer lugar e em qualquer circunstância.
Os guerreiros, apaniguados do bushismo agonizante, parecem estúpidos, se é que não estão apenas a tentar fazer de nós estúpidos.
2. E mesmo que fosse reconhecida toda a razão à Geórgia e nenhuma razão à Rússia, numa perspectiva ética da política internacional, pergunto : Quem colabora diligentemente, como é o caso da Geórgia ( 3ª participação em importância militar), na ocupação do Iraque, solidária com uma invasão, com base em pretextos que hoje todos sabemos serem falsos, tem legitimidade moral para nos pedir que exijamos que não lhe façam a ela o que ela tem vindo a fazer a outros ?
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