Quadro de Chagall
Radicalidade ─ nem
urgentismo, nem conservadorismo
1.A
emergência climática, os riscos pandémicos e a constância das desigualdades
socioeconómicas agravaram a toxicidade do capitalismo.
O
sofrimento coletivo, a angústia prospetiva, a dissipação cultural criam uma
atmosfera política cada vez mais insalubre, aberta a todos os desesperos. Os
horizontes de esperança tendem a reduzir-se a miragens.
O
combate por uma sociedade nova, para superação dos pesadelos que assombram o
nosso presente, exige, cada vez mais, o fim da sofreguidão imediatista e políticas
suficientemente inscritas no horizonte, para comportarem e até exigirem a opção
por estratégias de longo prazo. Estratégias suscetíveis de visarem com
verosimilhança transformações radicais da sociedade, de modo a que os
estrangulados pelo modelo vigente, as vítimas das desigualdades atuais, se
sintam impelidos e motivados a partilhar um caminho que leve a essas
transformações. E só a exploração do fundo das questões, pelo exercício de uma
radicalidade crítica, pode mostrar-nos o caminho. Se o longo prazo não
impregnar o cerne do curto prazo, dando à utopia uma realidade imediata como
esperança verosímil, dificilmente se poderá incorporar na nossa imaginação um
futuro à medida dos grandes sonhos que movem a História. E se essa esperança
nos fugir, estar-se-á mais perto de um desespero sem margens e do risco de
caóticas automutilações das sociedades.
A
radicalidade política passou, por isso, a ser uma condição indispensável do
êxito de qualquer processo democrático de transformação social. Na verdade, sem
se recusar desde a raiz o modo capitalista de reprodução da vida social não se
dá verosimilhança a um tipo de futuro por que valha a pena lutar, não se abre uma
janela de esperança que permita que respire quem atualmente suporta o maior
peso da injustiça social.
Mas
não pode nunca esquecer-se que a radicalidade política não é sinónimo de
urgentismo. Especialmente, se for um urgentismo que embora se conforme com a
eternização das árvores velhas lhes exija depois que deem frutos novos. Um urgentismo
que, sentando-se apoplético à sombra das laranjeiras, lhes exija com veemência
que passem a dar maçãs. Ora, já diziam os oráculos na antiguidade, que, por
mais assustadas que fiquem, as laranjeiras nunca poderão dar maçãs. Mesmo que
seja trovejante a vociferação dos urgentistas, as laranjas poderão no máximo dos
máximos nascer um pouco mais doces, sem no entanto desaparecer o risco de afinal
nascerem ainda mais amargas.
Na
verdade, só uma radicalidade política, que aponte com verosimilhança e clareza
para a metamorfose do modo de vida presente, será capaz de mobilizar as
vontades de mudança suscetíveis de se fundirem numa dinâmica social transformadora.
Só essa radicalidade geradora de uma metamorfose superadora do capitalismo,
rumo a uma economia humana que possa ser o rosto de um pós-capitalismo, trará
os povos para o interior da esperança.
De
nada adiantará mastigar velhas soluções como se fossem novas. Nem mesmo
recorrendo à lucidez crepuscular do velho leopardo, genialmente inventado por
Giuseppe T. di Lampedusa, quando percucientemente sugeria a necessidade de se
mudar tudo para que tudo pudesse ficar na mesma. De nada adiantará maquilhar de
inovadoríssimas velhas receitas, cuja última razão de ser é a conservação aconchegada
do modelo capitalista atual.
E
não é possível também que se ache suficiente e eficaz o simples apedrejamento
virtual do neoliberalismo, identificando-o como doença infantil e passageira de
um capitalismo que afinal até se quer ver livre dele. E uma vez curado regressará
provavelmente a si próprio, salvando-nos finalmente a todos. Não salvaria.
Por
isso, não faz sentido acolher calorosamente, nas hostes que combatem o
neoliberalismo, os ex-chefes das orquestras que o têm interpretado diligentemente,
para que todos em fraterna cumplicidade apupemos ferozmente as sinfonias que
eles próprios regeram até ontem; e cujo apedrejamento nos convidam hoje a
partilhar. É que, em última instância, a hipocrisia política (quando subtil)
pode driblar os incautos, adormecê-los com flautas mágicas, mas acabará por
esbarrar na realidade. Nunca se deve confiar nos lobos para liderarem a
resistência dos cordeiros.
Também
não podemos deixar-nos escorregar para uma radicalidade indolente que se deixe
dormir à sombra da sua própria lucidez. Pelo contrário, a lucidez da
radicalidade crítica só é fecunda animada por uma inquietação permanente. Temos
que valorizar uma radicalidade tensa e ativa, capaz não só de fazer pontes como
de traçar fronteiras. Uma radicalidade em movimento.
Na
verdade, uma radicalidade apenas paciente poderá ver esfumar-se rapidamente
todo o seu potencial futurante. Desde logo, não pode fugir do combate às
secreções mistificatórias da ideologia conservadora dominante, a ideologia de
conservação do capitalismo, sempre enroupada por um discurso dogmático
travestido de científico, numerologicamente condimentado. É preciso arrancar os
narizes de cera que contaminam o espaço público, desfazendo as evidências que
escondem a realidade. A radicalidade propositiva não dispensa, no entanto, uma
tonalidade crítica que se questione a si própria, para que a coerência não
possa ser confundida com dogmatismo e a persistência com teimosia. Uma
radicalidade nunca inflexível, mas sempre vertical; sempre prudente, nunca
pusilânime.
Por
isso, esta radicalidade transformadora, centrada num horizonte emancipatório,
que se assume como gradualista para poder ser profunda, só pode afirmar-se autenticamente
no seio de um processo único em que se conjugue com a intensificação da
democracia em todas as suas dimensões, em todas as instâncias. Uma democracia ao
mesmo tempo modo de ser e objetivo parcial da metamorfose desejada; mas que é exigível
desde já para que nela as ideias transformadoras se possam confrontar
livremente com o conservadorismo dominante, para que vencendo-o, convençam,
impregnando duravelmente as consciências, conquistando uma hegemonia robusta.
Nunca
esqueçamos no entanto, que a recusa do urgentismo, a opção pelo gradualismo, o
respeito pelas necessidades de amadurecimento dos processos, não pode
converter-se numa complacência indutora de lentidão. Lentidão que fará aumentar
o risco de paralisia e colapso de uma possível transformação e poderá bloquear
a metamorfose almejada.
2.
Feito este enquadramento, olhemos mais para o imediato. É um lugar-comum o
alvitre de que a pandemia em curso vai mudar o mundo. Uma insidiosa e difusa
neblina lança no entanto alguma incerteza sobre o significado desse alvitre.
Parece,
às vezes, tratar-se de um voto de urgência quanto à necessidade de se caminhar
com celeridade para um mundo mais justo; de uma consciência mais aguda e mais
generalizada de que a insistência na conservação de um tipo de sociedade
indutor de desigualdade, de pobreza e de exclusão é insuportável. Mas não deixa
também de às vezes nos sobrevoar como ave agoirenta a ideia difusa de que o
fruto da mudança, que se sugere já estar consumada, é um tempo de sacrifício
que apenas nos cabe estoicamente
suportar.
O
mundo mudou, dizem insistentemente as sereias do óbvio. Ora, fazer a
constatação de que o movimento dos vários planos da vida e da sociedade é
indutor de uma cadeia de mudanças na superfície das coisas e na pele dos dias,
podendo ser um mero sinal de realismo, não deixa de poder ter uma ressonância
perversa. Na verdade, a circunspecta proclamação de que o mundo mudou (já
mudou), pode sugerir que isto que aí está e que tanto nos esmaga já é um aspeto,
um fruto, uma antecipação dessa mudança. Não é. Mas, além de assim se poder
sugerir que a estagnação é a mudança possível, pode subliminarmente induzir-se
a ideia conservadora de que, uma vez que o mundo já mudou, perdeu sentido a
vontade de o mudar.
Não
perdeu. Igual a si próprio, espelhando o capitalismo que nele predomina, o
mundo atravessa uma crise vivida como um pesadelo para milhões de pessoas.
Verdadeiramente está agitado, mas não em movimento. Não se abriu ainda a uma
humanização radical, libertadora e superadora das desigualdades atuais. A
vertigem da aceleração do tempo numa sofreguidão de urgências, que parece
arrastar-nos para uma voragem de precariedades em que tudo é provisório, não
quebrou a inércia estrutural que tem conservado a sociedade atual confinada no
capitalismo. Não escapámos ainda do pântano das catástrofes.
Não
estamos a percorrer um caminho que tenha mesmo como horizonte a paz, a
liberdade, a igualdade e a justiça, um caminho democrático numa atmosfera de
solidariedade e cooperação. Adiar mais o início dessa transição, rumo a um
pós-capitalismo, carrega cada vez mais o
mundo de riscos graves. É a imperatividade desta transição e a sua urgência que
a atual pandemia tornou absolutamente incontornáveis.
3.
Percorrer esta transição não será um alegre passeio através de jardins, fará
certamente com que se rasgue a pele de muitos sonhos, porá escolhos diante de
muitas ousadias, desafiará esperanças com desilusões, mas é o único caminho que
pode levar a um horizonte humanizante e libertador. Dificuldades, no entanto,
bem mais suportáveis do que a permanência no cinzento deste tempo fechado.
As
esquerdas que ficarem alheias a essa transição deixarão objetivamente de se
poderem considerar como tais. Nenhuma delas pode estagnar melancolicamente na
saudade de um futuro a que renunciou. Mas as entidades político-partidárias,
que protagonizam institucionalmente as esquerdas no aparelho de Estado, não
devem ser tolhidas pela ilusão de que é aí que tudo se joga e se decide. É
certamente também aí; mas não apenas aí. Sem as dinâmicas endógenas da
sociedade que se projetam nos movimentos sociais, com relevo para as que
materializam resistências ou alternatividade em face do capitalismo, a
metamorfose cujo horizonte é a sua superação poderá ficar bloqueada.
É
por isso urgente dar corpo a uma vasta rede de entidades e de cidadãos, de
organizações e de pessoas, agindo conjugadamente com flexibilidade dentro e
fora das instituições, protagonizando um permanente debate de ideias, gerador
de conhecimento e de um cultura crítica que potenciem a compreensão do presente
para se poder caminhar transformando-o. Mas, se a ação política tiver
horizontes tão cinzentos que impeçam os explorados e os excluídos de cultivarem
esperanças verosímeis em concreto, eles não se envolverão no combate pelo
futuro. Ora, sem o envolvimento das vítimas atuais da desigualdade, uma luta
pela transformação social continuada, esclarecida e consistente, que aproveite
as energias do povo e as estimule cada vez mais, será uma miragem. Mas se forem
fechadas as portas do futuro àqueles para quem o presente é insuportável,
dificilmente se evitarão explosões sociais devastadoras e estéreis,
eventualmente contra civilizacionais.
Por
tudo isto, vemos como é necessário que as esquerdas revisitem sem preconceitos
as suas tradições emancipatórias comuns, a história das suas conquistas e dos
seus falhanços, das suas intuições luminosas e dos seus erros, para poderem somar-se
umas às outras na construção de um espaço ideológico comum. Somar-se num espaço
comum de crítica e de luta, ancorado firmemente numa imaginação do futuro bem
enraizada nas tradições emancipatórias e libertadoras da humanidade. Espaço
comum composto por regiões, cuja diferenciação exprima a heterogeneidade da
esquerda no seu todo, respeitando diferenças sem comportar muros nem
fronteiras. Um espaço em que as diferenças de opinião, a heterogeneidade das
ideias, exprimam e estimulem uma permanente criatividade crítica. Sem
dogmatismos, sem anátemas, sem excomunhões.
Só
assim se pode esperar sem fantasia que o povo de esquerda se ponha
sustentadamente em movimento, só assim o cinzento pesado e triste dos tempos
presentes se esfumará no quotidiano dos explorados e dos excluídos, só assim o
protagonismo institucional das esquerdas ganhará sentido e poderá ser eficaz na
realização dos objetivos que o justificam.
É
neste contexto que se pode compreender plenamente a importância da radicalidade
na ação política e no combate ideológico , bem como a necessidade de lhe
garantir robustez, pela recusa quer do urgentismo quer do conservadorismo.
RUI NAMORADO
[2 de julho de 2020]