O AVESSO
DO DIREITO
Foi amplamente divulgado na comunicação social um
alerta lançado pelo representante do Ministério Público no Processo Marquês no
decorrer do debate instrutório que está em curso.
Esse alerta foi lançado no quadro de um apelo para
que fosse acolhida pelo Juiz de Instrução toda a acusação feita pelo Ministério
Público. No essencial, chamava-se assim a atenção para como se sentiria chocada
a opinião pública, se fosse contrariada a tese do Ministério Público constante
da acusação. Choque esse que reflexamente lesaria seguramente o prestígio do
poder judicial
Deixei passar uns dias, para sopesar eventuais reações.
Estranhamente, não tive conhecimento de nenhuma que fosse consistentemente
crítica e que sublinhasse a relevância do episódio referido. Mas à anemia das
reações que roçaram o zero, ainda neste domingo um comentador encartado, alegadamente
de alto coturno, tocou ao de leve no caso como se fosse natural. Tudo se passou
como se o procurador do Ministério Público tivesse proferido uma frase banal.
E, no entanto, foi assim publicamente assumida, no
decurso do funcionamento formal de uma instância judicial, uma posição que
reflete um pensamento e representa uma atitude que chocam frontalmente com o
tipo de justiça que se espera de qualquer poder judicial decente e civilizado e
a nossa Constituição impõe.
O agente do MP deixou claro que a razão
principal para dever ser acolhida a sua
acusação não é o facto de ela ser justa, legítima e fiel à legalidade
democrática, à luz da ordem jurídica portuguesa, mas sim o seu reflexo na
opinião pública. Ora, na verdade, uma posição destas lesa profundamente de forma , ostensiva e grosseira
a ordem jurídica democrática vigente.
É , aliás, grave que alguém com uma filosofia jurídica
destas tenha um lugar de relevo numa
magistratura de um Estado democrático. É um perigo estrutural para a aplicação
da justiça. Mas não é menos lamentável e insalubre a indiferença com que foi
encarada a posição assumida, reduzida a
uma simples frase corrente numa retórica
banal.
Mas um reforço da nossa atenção agrava o sentido do
referido dislate jurídico. Na verdade, nesse mesmo processo, que decorre há
vários anos, foram recorrentes , quando os autos estavam em segredo de justiça
sob a égide do Ministério Público, as fugas de informação repercutidas e
ampliadas na comunicação social, em regra projetando como realidade a versão do
MP quanto a essa realidade. Fortemente desfavorável aos acusados que explícita e reiteradamente a consideraram
falsa.
Ou seja, o Ministério Público teceu uma narrativa
acusatória que os arguidos e a defesa têm considerado como fantasiosa e desprovida
de qualquer fundamento comprovado. Dando-a como verdade insofismável, foi alimentando
a comunicação social, através de fugas de informação lesivas do segredo de justiça,
selecionadas para instituírem e credibilizarem, como verdade evidente, uma
narrativa acusatória desfavorável aos arguidos. Desse modo, em articulação
óbvia com alguma comunicação social, foi criando na opinião pública a ideia que
os arguidos eram culpados, ou seja, eram criminosos.
E assim os condenava socialmente, praticando quanto
a eles e em especial quanto aos de maior notoriedade pública, um verdadeiro linchamento
simbólico que muito fortemente os penalizava, esvaziando quase por completo a
proteção à presunção de inocência até condenação transitada em julgado, que é
um dos pilares de um sistema penal civilizado e democrático.
Para fechar esse círculo perverso, o Ministério
Público acha agora que o resultado do julgamento tem que ser a confirmação
judicial do linchamento mediático que estimulou contra os arguidos no espaço
público.
E tão lamentável
como a tacanhez jurídica do Ministério Público é a passividade acrítica quanto ao ocorrido, ocorrida no espaço público.