“Uma outra
economia, uma outra vida. Um ir além do tipo de economia em que vivemos. Sair do
capitalismo para se sobreviver como humanidade. Não estamos perante sonhos de
nefelibatas ou perante uma radicalidade utópica de ressonância extremista.
Estamos perante uma emergência antropológica que não é apenas a tonalidade
necessária a qualquer política de esquerda, é uma condição de sobrevivência da
humanidade. Também nos convoca para essa urgência o desarmado Chefe de Estado
do Vaticano.”
Há alguns
dias, escrevi no FB o parágrafo que acima reproduzo, como introdução à partilha
de um artigo da autoria do jornalista Carlos
Drummond, divulgado na página virtual da importante revista brasileira de
grande circulação “CartaCapital”, em
9 de dezembro.
O artigo comenta
uma iniciativa do Papa Francisco que
irá decorrer em Itália no próximo mês de março. É estranho que a justificada atenção
que a nossa grande comunicação social presta ao Papa tenha deixado passar em
branco uma informação tão relevante. Estranho, mas compreensível. Basta ler o
artigo. O poder mediático dominante, embora procure disfarçá-lo, ainda não
aprendeu a digerir por completo este Papa.
O artigo
tem como título: “Papa Francisco
propõe um sistema económico mais justo e sustentável”. Ei-lo:
“Estruturada com
o auxílio do americano Joseph Stiglitz, a iniciativa conta com apoio do
indiano Amartya Sen, ambos vencedores do Nobel
Mais de 2 mil jovens de 120
países confirmaram até agora a participação no encontro Economia de Francisco,
de 26 a 28 de março de 2020 na cidade de Assis, Itália. Convocada pelo
papa e estruturada com o auxílio do economista americano Joseph Stiglitz, a
iniciativa conta com apoio do indiano Amartya Sen, ambos vencedores do
Prêmio Nobel. A reunião pretende repensar, debater e buscar novos rumos para a
economia mundial, hoje dedicada de modo quase exclusivo aos interesses de
maximização dos lucros de empresas e de poucos indivíduos, de modo a
direcioná-la para a proteção da maioria e do meio ambiente. As atividades
preparatórias no Brasil incluíram um encontro com cerca de 500 interessados no
fim de novembro, na PUC de São Paulo. O País terá 30 representantes vinculados
a diferentes experiências.
Inovador no conteúdo e no
formato, o encontro pretende debater experiências e promover rodas de conversa
em substituição às tradicionais exposições de papers e mesas-redondas. A liderança caberá a jovens de até 35
anos, entre acadêmicos, agentes comunitários e empreendedores. A
iniciativa floresceu em maio, quando o papa e Stiglitz comprometeram-se a trabalhar
em conjunto para promover globalmente uma “economia social” que “olha para o
futuro com a voz dos jovens em mente”.
Os dois advertiram sobre os
problemas de certas formas de economia de mercado que incentivam o
comportamento individualista e invertem papéis. “É necessário aprofundar as
discussões sobre questões sociais e as mudanças geradas pela globalização nas
sociedades, bem como pensar em ideias concretas sobre o que devemos fazer para
a tecnologia e os mercados servirem à humanidade, e não o contrário”, propôs
Stiglitz. É fundamental, alertou, “trabalhar na educação de sistemas
alternativos que não adoram dinheiro. Temos de tentar desenvolver programas e
estudos sobre o conceito de economia circular, que contribuam para uma educação
que esteja ciente dos limites do meio ambiente e que ensine a devolver ao
ambiente o que é retirado dele”.
A convocação feita pelo papa
sugere um encontro inédito sobre economia: “Estou escrevendo para convidá-los a
uma iniciativa que tanto desejei, um evento que me permita conhecer quem hoje
está se formando e está iniciando a estudar e praticar uma economia diferente,
que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida
da criação e não a depreda. Um evento que nos ajude a estar juntos e nos
conhecer, e que nos leve a fazer um ‘pacto’ para mudar a atual economia e dar
uma alma à economia do amanhã”, conclamou Francisco.
“Na ‘Carta Encíclica Laudato si’”, prossegue o
papa, “enfatizei como hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente conectado
e a salvaguarda do ambiente não pode ser separada da justiça para com os pobres
e da solução dos problemas estruturais da economia mundial. É necessário,
portanto, corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito
ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade
social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações”.
Estima-se que a liderança
mundial do papa, realizador do Sínodo da Amazônia, em outubro, durante o auge
de queimadas na floresta, contribuirá para tornar o evento um marco na crítica
à economia dominante.
A iniciativa convergirá em
torno de três grandes eixos, detalhados durante o evento preparatório na PUC-SP
pela professora Patricia Dorneles, vice-coordenadora do curso de graduação em
terapia ocupacional da UFRJ. O primeiro são as linhas gerais e as perspectivas
de articulação de outra economia, inclusiva, marcada pela justiça social, ética
e humanismo. O segundo eixo é a agregação e valorização das práticas concretas
que incluem, no País, “inúmeras experiências de economia solidária,
agroecológicas, de bancos de crédito comunitários, criação de novas moedas,
atividades de economia criativa, de controle territorial de produção e
distribuição”.
O terceiro eixo, prossegue,
são as mudanças nos currículos das faculdades de economia no mundo. “Não
podemos pensar em outra economia se formarmos economistas a partir de uma
concepção única ou absolutamente voltada para a competição e as técnicas,
muitas delas antiéticas, que geram sofrimento e privações a grande parte
da população. O chamamento do papa é no sentido de os participantes formularem
nova orientação curricular para formar economistas humanistas e integradores”,
sublinha a professora.
A necessidade de reformular o
ensino de economia para colocá-la a serviço da sociedade é debatida há anos.
Segundo o especialista Andrew Mearman, da Universidade West of England, apesar
de os currículos da maior parte dos cursos denotarem a concepção de que as
habilidades necessárias aos profissionais da área são essencialmente a
capacidade de elaborar matemática de alto nível e reproduzir os pontos centrais
de determinada linha de pensamento, vários estudiosos reconhecem o caráter
essencial do conhecimento de humanidades na solução de problemas complexos que
exigem saber econômico combinado à flexibilidade de pensamento, insights de outras disciplinas e
consciência da realidade social e política do país e do mundo. Muitos dos seus
colegas de ofício não conseguiram entender a crise de 2008, diz o professor,
por nunca terem estudado história nem o fenômeno da desigualdade.
O evento é uma resposta
inovadora à “gritante, absurda, insuportável e injusta desigualdade social e à
crise ecológica provocada pela mudança climática”, analisa o sociólogo Michael
Löwy, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique, da
França, um dos participantes dos debates na etapa brasileira. A degradação do
meio ambiente e da natureza e a degradação humana e ética estão intimamente
ligadas, analisa Löwy, porque são consequências do sistema. “Não é, portanto,
só problema de comportamento individual de um ou de outro, de tal ou qual
empresário, banqueiro ou chefe de governo. É de um sistema que ignora valores
humanos, éticos, espirituais, naturais, porque esses valores escapam ao cálculo
financeiro, do mercado. É uma economia que mata.”
A necrofilia do sistema vitima
principalmente negros, denunciou outra participante do debate, Eleonora
Aparecida Alves de Souza Domingos, fundadora da ONG Projeto Caminhos, de preservação
da cultura negra e de matriz africana. “Hoje sofremos no Brasil a intolerância,
a violação, a queima de templos. Apesar disso, mantemos um coletivo que resiste
numa cidade essencialmente evangélica e abriga jovens negros em situação de
vulnerabilidade social. Eles chegam sem sonhos em busca do acolhimento do
terreiro. Nós resistimos à desigualdade e àqueles que insistem em não respeitar
a nossa religiosidade. O que mais o povo negro tem é ousadia de viver num país
tão racista”, diz a mãe de santo.
A mudança do modelo econômico
requer enfrentamentos, acredita Dennis de Oliveira, professor de jornalismo na
USP, e um dos mais importantes deles é a luta contra o racismo, pois não se
constrói democracia e justiça excluindo 54% da população. “À medida que o
capital fica mais concentrado, a população negra, originária, é a que mais
perde direitos. No Brasil, a cada 23 minutos um jovem ou uma jovem negra é
assinada. O projeto de uma nova economia é também o projeto de um novo modelo
de civilização, de ruptura com esse sistema estruturalmente perverso”, sublinha
o professor.
Os extremos atingidos pela
crise múltipla indicam a insuficiência das respostas convencionais e clamam por
mudança de paradigmas. “A proposta da Economia de Francisco é uma busca pelo comum
no lugar do individual, pela gestão comunitária no lugar da puramente privada.
É a certeza de que o ideário neoliberal e a sua busca constante por
competitividade não dá conta de prover as necessidades da maior parte da
sociedade”, resume a economista Neusa Serra, professora de políticas públicas
da Universidade Federal do ABC e integrante do grupo de Articulação Brasileira.
“Na Economia de Francisco não
há lugar para a acumulação infinita nem para paraísos fiscais. Isso
pressupõe a defesa de imposto diferenciado sobre grandes fortunas, artigos de
luxo e supérfluos, taxação dos lucros e dividendos, capital improdutivo e
movimentações financeiras internacionais”, dispara Célio Turino, historiador,
consultor em políticas públicas e outro integrante da Articulação Brasileira.
A proposta da Economia de
Francisco não se resume a uma reunião de gente de boa vontade empenhada em
realizar um diagnóstico e cogitar alternativas. “O evento vem oxigenar a visão
da economia que está muito circunscrita aos ditos especialistas que em geral
não dão conta do recado. É uma forma de puxar a economia para a vida real e
dizer que o que vem sendo feito não resolve nada. Acho muito importante”,
sublinha o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial desta revista.
“O debate ficou empobrecido, porque a economia foi considerada um espaço
especial na vida dos indivíduos e não é, como vem mostrando o próprio Stiglitz
em seus trabalhos e também o economista Robert Skidelsky. É isso que está em
questão, as abstrações que não têm ancoragem na vida real. Há uma saturação,
uma insatisfação diante do aprisionamento da economia num modelo abstrato
ruim.”
Alguns dos trabalhos
selecionados para representar o Brasil em Assis ilustram a diversidade de
atividades e de propostas desenvolvidas pelos participantes.
Vitor Hugo Tonin, assessor
econômico do Sindicato dos Químicos Unificados, trabalha no desenvolvimento da
plataforma Livres Rede de Produtos do Bem, que permite o contato direto entre
produtores e consumidores, elimina intermediários, custos e lucros de quem não
está produzindo nada, aproxima produtor de consumidor e busca um consumo
consciente. “No caso de alimentos”, detalha, “procuramos promover produtos sem
agrotóxicos, da agricultura familiar e orgânicos. Visa também eliminar
intermediários de serviços que monopolizam mercados simplesmente por serem
proprietários das plataformas digitais como os prestadores de serviços do
tipo Uber e aplicativos de entregas em domicílio.”
O assessor técnico parlamentar
David Deccache pesquisa no doutorado em Economia da UnB as possibilidades,
desafios e impactos da elaboração de um programa de garantia de emprego com
base na Teoria Monetária Moderna. “A pesquisa resultou em um Projeto de Lei
apresentado pelo deputado Glauber Braga, do PSOL, na Câmara dos Deputados. Ao
colocar o Estado como um empregador de última instância, o projeto avança na
resolução de inúmeros problemas: estabelece o respeito ao salário mínimo e a
legislação trabalhista e elimina o desemprego crônico a um custo líquido próximo
a 2% do PIB”, defende.
Eliza Hostin, formada em
Comunicação e mestre em Economia para Transição, trabalha como consultora de
sustentabilidade com foco em duas frentes. A primeira é o apoio a empresas para
repensar a atuação em busca de formas mais sustentáveis e, se possível,
regenerativas. A segunda é em educação, pelo apoio a indivíduos e organizações
no entendimento sobre a nova economia de modo a compreenderem os diferentes
conceitos que a compõem, bem como conhecerem práticas existentes. “A relevância
deste trabalho está em criar pontes de diálogo entre o mundo capitalista e o
novo modelo socioeconômico que emerge. Permite novas lentes para ver e agir no
mundo e, com isso, tornar-se agente ativo dessa transformação.”
Cristina Pereira Vieceli, aluna
de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, trata de economia
feminista e trabalhos reprodutivos. A economia feminista, diz, critica a
invisibilidade dos trabalhos não remunerados exercidos principalmente pelas
mulheres, tais como afazeres domésticos e trabalhos voluntários não incluídos
na contabilidade nacional dos países. “Essa dinâmica impacta tanto na
trajetória feminina no mercado de trabalho quanto na sua posição de dependência
econômica e o caráter de seu trabalho, pois as mulheres são sobrerrepresentadas
em atividades de meio turno, com baixas remunerações.”
Francisco, tudo indica, está
disposto a combater o Bezerro de Ouro.