Para um enquadramento
prospetivo
das opções
programáticas do PS
1.
O programa político que o PS tem vindo a delinear nos últimos meses assenta em
quatro eixos principais: Alterações Climáticas, Demografia, Sociedade Digital e
Desigualdades. Ou seja, o PS assume como desígnios estruturantes: combater
o declínio demográfico, travar a degradação climática, reverter as
desigualdades sociais e valorizar as tecnologias digitais. A centralidade
destes vetores não exclui a atribuição de importância a outras questões e a
outras áreas programáticas, que sem apagarem essa centralidade não deixam de
implicar uma abordagem específica.
Estes
desígnios situam-se em planos diversos. Reverter a degradação ambiental que já
se vem refletindo nas alterações climáticas é um desígnio mundial que, no
entanto, não afasta uma responsabilidade de cada povo e de cada Estado.
Combater o declínio demográfico é principalmente uma necessidade da comunidade
nacional inscrita na qualidade de vida antecipada como provável por parte dos
pais quanto aos filhos e nas dificuldades esperadas para os criarem. Reverter
as desigualdades sociais é mudar o coração podre do atual modo de produção da
vida social, empreendendo uma longa marcha rumo a uma sociedade justa. Valorizar
as tecnologias digitais implica dar centralidade a esse tipo de inovação,
fazendo com que elas irriguem com intensidade crescente o tecido social, a
esfera pública, as estruturas económicas e a criatividade cultural e artística.
Estes eixos temáticos interagem entre si, potenciando-se ou constrangendo-se.
Inscrevê-los
com autenticidade no horizonte político implica assumir-se a necessidade de uma
profunda transformação social (sem a qual a proclamação desses objetivos pouco
mais será do que uma retórica vazia) e portanto de se empreender uma transição
para um outro tipo de sociedade. Um processo de transição longo, radicalmente
democrático, que se traduza num percurso reformista rumo a um pós-capitalismo
desejável. Um processo que parte da constatação de que a hegemonia capitalista,
o predomínio da lógica capitalista nas sociedades atuais, não significa a
inexistência de realidades organizativas e de práticas sociais que, ainda que
subalternamente, protagonizam lógicas distintas e até opostas à que é dominante.
Nestes focos de alternatividade, em face da lógica dominante, reside uma
energia futurante que não pode ser menosprezada pelas políticas públicas
transformadoras, que neles se podem robustecer ao mesmo tempo que os estimulam.
2.
O papel do Estado, como expressão da vontade do povo democraticamente expressa,
é naturalmente determinante num processo de transição social, mas corre um
grave risco de ineficácia transformadora se não funcionar em sinergia com as
dinâmicas sociais endógenas de cariz transformador. Por isso, uma determinação
realista de percorrer os caminhos assumidos pelo programa implica uma atitude
reformista em face do Estado. Uma atitude reformista concebida em conjugação
com um feixe articulado de políticas públicas dirigidas ao estímulo das
dinâmicas próprias do tecido social, com especial destaque para a economia
social. Ou seja, uma reforma permanente do Estado é um elemento constitutivo da
prossecução dos objetivos almejados. Ela não pode limitar-se a um processo de
modificação tecnológica, organizativa, funcional e administrativa, sem que isso
signifique desprezo por essas vertentes. Implica também uma sinergia contínua
com as políticas públicas de empoderamento
do tecido social, com destaque para a economia social, e reforça-se pela
qualidade das políticas públicas que vai pondo em prática.
Esta
reforma do Estado tende a converter o Estado Social num Estado de Transformação
Social rumo a uma sociedade justa, liberta de desigualdades estruturais. Só é
viável, só pode almejar realisticamente a ter êxito se for permanentemente
impregnada por uma lógica democrática, ela própria em permanente aprofundamento
e extensão. Ou seja, o Estado só pode pilotar a transformação social rumo a um
pós-capitalismo desejável, em sinergia com uma dinâmica social, pelo menos
parcialmente antecipadora desse futuro, que o oxigena e dele recebe, ao mesmo
tempo, um estímulo permanente.
3.
O gradualismo reformista e a democraticidade radical, inerentes ao processo de
transição em causa, não dispensam a explícita assunção do horizonte para onde
se caminha. Isto é, um horizonte pós-capitalista cuja desejabilidade é para os
socialistas necessariamente um horizonte socialista. Isto é, um horizonte que
consubstancie no essencial os valores socialistas, nomeadamente, os da
sobrevivência da humanidade, da liberdade, da justiça e da felicidade,
irrigados pelos princípios e objetivos estratégicos que têm sido a espinha
dorsal da identidade histórica dos socialistas.
Na
verdade, assumir a tarefa histórica de estimular a metamorfose do capitalismo é
condição necessária para uma legibilidade do sentido das políticas públicas
constitutivas do programa socialista. Uma legibilidade indispensável para a
solidez de um bloco social que sustente essa transição, quer no plano
eleitoral, quer no terreno das lutas sociais e na afirmação consistente de uma
cultura crítica.
Sem
a inscrição explícita da metamorfose em causa como desígnio estruturante da
ação política do Partido Socialista, dificilmente se tornará compreensível para
os desfavorecidos, gerados pelo atual tipo de sociedade, que se pretende
caminhar para o fim da sua subalternidade e das inerentes desigualdades sociais
que os condenam ao desfavorecimento. E sem essa compreensão fragiliza-se
necessariamente não só a simples perenidade do seu apoio eleitoral à
prossecução dos objetivos visados, mas principalmente a sua apetência para se
envolverem como protagonistas determinantes no processo de transformação social
que deverá ser pilotado pelo Partido Socialista. Sem essa fusão entre a
organização partidária e o povo socialista numa dinâmica comum, é precária e
mais difícil qualquer verdadeira mutação qualitativa da sociedade.
4.
A clarificação dos objetivos de longo prazo tornou-se assim um elemento
essencial para a compreensão plena do sentido das medidas políticas no curto
prazo. E só essa clarificação permitirá solidificar, estender e aprofundar o
apoio social ao caminho seguido. Paralelamente, tudo parece apontar para que
essa clarificação facilite também significativamente os entendimentos e as
convergências entre as várias esquerdas.
Não
deve também menosprezar-se o facto de o combate ideológico dos liberais e
conservadores, que pugnam pela eternização do modo de produção da vida social
atualmente predominante, o capitalismo, assentar em larga medida num aparente
repúdio pelas chagas sociais e pela desigualdade social que as gera, conjugado
com uma efetiva e persistente luta para que as causas dessas
chagas sociais se mantenham intactas ou se agravem. Esta duplicidade hipócrita
só pode ser desmascarada indo-se à raiz do problema e evidenciando-se uma
vontade política de lutar pela sua efetiva erradicação. Sá assim se pode
combater com eficácia o ilusionismo ideológico mistificatório, cultivado pelas
direitas. Ilusionismo esse que é um elemento determinante do combate das
direitas pela conservação do capitalismo e que é dotado de imensos e complexos meios
de propaganda que usa para instituir uma hegemonia cultural que o proteja.
Não
se trata de preconizar qualquer espécie de radicalismo programático que ignore
a temporalidade reformista dos ritmos evolutivos ou aceite uma qualquer anemia
democrática. Trata-se de dar consistência a um amplo bloco social,
politicamente consonante no plano eleitoral, que dê suporte a um processo de
transição para uma sociedade justa.
Isso
não substitui um programa político, nem dispensa o trabalho da sua construção e
do seu aprofundamento, como aquele que está agora em curso no Partido
Socialista. Não o dispensa , mas pode dar-lhe uma maior consistência lógica e
um sentido estratégico suficientemente evidente para mobilizar os grupos
sociais mais penalizados pelas desigualdades sociais vigentes. E pode ainda ser
um útil fator de arrumação dos tópicos indicados como possíveis desdobramentos
dos quatro grandes eixos propostos.
5.
Ou seja, o combate à degradação ambiental, sendo embora possível e necessário,
mesmo num contexto de predomínio do capitalismo, só poderá atingir o máximo da
sua efetividade, integrado numa transição para um pós-capitalismo desejável. O
combate às desigualdades sociais, embora deva ser desde já uma luta de
resistência dentro do capitalismo, só pode ter um êxito pleno, no quadro de um
processo de transição para uma sociedade pós-capitalista. O combate à anemia
demográfica em Portugal, para além das necessárias medidas específicas de curto
prazo, só pode ser plenamente eficaz, radicando-se na esperança de uma humanização
da sociedade, geradora de uma qualidade de vida satisfatória
para as próximas gerações. A valorização da sociedade digital só poderá
integrar-se virtuosamente no desenvolvimento social , como um dos aspetos da
dignificação e do empoderamento dos seres humanos , enquanto sujeitos
criativos, libertos da exploração e da opressão.
Este
enquadramento prospetivo das opções programáticas do PS poderá facilitar a sua
materialização e potenciar um apoio social que dará força e consistência à
transformação social que elas implicam. Não visa, obviamente, desvalorizar os
detalhes indispensáveis da proposta programática do PS, mas sim sublinhar o seu
potencial transformador, tornando mais fácil a conquista do apoio social e
político indispensáveis para a sua plena realização.
Rui Namorado
[18/06/2019]