segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Carta aberta ao presidente Lula




Uma carta para LULA de um juiz brasileiro.
Neste fim de ano, que antecede um tempo especialmente dramático para o Brasil, faz sentido enviar  uma mensagem tácita de solidariedade para com o Presidente Lula, transcrevendo da página virtual da revista brasileira CartaCapital uma carta pessoal do juiz brasileiro Luís Carlos Valois que é juiz de direito no Amazonas, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela USP, pós-doutorando em criminologia em Hamburgo – Alemanha, membro da Associação de Juízes para Democracia e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 
Sem deixar de ser um texto político, tem uma tonalidade pessoal que lhe transmite uma particular  humanidade , sublinhando especialmente quão bárbaro  é o que a direita brasileira, através das instituições que domina, está a fazer a LULA. Eis a carta:

Lula, meu caro, faz tempo que estou querendo te escrever. Esse pessoal do meio carcerário tem uma espécie de tara por proibir as coisas, então não sabia se minha carta ia chegar a ti, já que muita gente importante sequer conseguiu entrar para trocar umas palavras contigo, razão pela qual resolvi escrever por intermédio da internet mesmo, um dia tu vais ler.
Cara, eu sei que tu não és santo, nem eu sou, nem ninguém é, então todos nós temos um monte de culpa por aí, mas o crime que tu cometeste realmente ninguém sabe até agora qual foi. Bem, você sabe disso, você já disse que aceitaria a pena tranquilamente se te mostrassem provas de um crime, só estou repetindo porque a carta será publicada e porque quero ressaltar uma coisa.
Hoje em dia com tanta culpa por aí, já nem precisa de crime para se condenar uma pessoa, basta querer condenar alguém que todo mundo já acha esse alguém culpado. É como um juiz me falou certa vez, que ele não sabia porque estava condenando o cidadão, mas o cidadão sabia porque estava sendo condenado. É mais ou menos assim que estamos vivendo, e é cada um por si.
No teu caso, um recibo de pedágio, a tua visita a um apartamento, mais dois ou três presos dedos-duros loucos para ganhar a liberdade, e pronto, está formada a prova necessária para a tua condenação, mesmo que ninguém diga onde está o teu dinheiro, onde está o benefício que tu tiveste nisso tudo, ninguém diz. E ninguém quer saber.
Pode ser que digam que há mais coisas no teu processo, pode ser que haja, mas tenho certeza que se houvesse algo tão sério já teria sido divulgado aos quatro ventos, porque uma das coisas que mais se discute aqui fora é justamente a tua culpa, ou não culpa, e até agora só essa tua visita no apartamento que, obviamente, não é teu.
Xará (acabei de me tocar para o fato que temos o mesmo nome…rs…), a coisa tá difícil. Não quero entrar aqui na questão política, se fizeram tudo para te tirar da eleição, se têm ódio de ti porque és nordestino, um nordestino que teria chegado onde incomoda muita gente, e feito outros tantos nordestinos incomodarem mais gente por chegarem onde chegaram, não quero falar dessas questões políticas, quero conversar contigo sobre a tua situação atual.
Tenho trabalhado com presos a vida inteira e sei o quanto é difícil, principalmente em situação de isolamento, o encarceramento. Eu queria inclusive, com esta carta, te mandar uns livros, mas também não sei se chegariam até ti, são meios subversivos, acho que tu tens que ler algumas coisas subversivas, sabe? Tu tens que conhecer o sistema a fundo para entender a tua própria situação de encarcerado.
Um dia Nilo Batista disse que todo preso é um preso político. Pena que a maioria dos presos não sabe disso. O sistema, nele incluído o sistema penal, tem uma função primordial em fazer todos acreditarem, inclusive os próprios presos, que tudo funciona na mais perfeita ordem e, se tu estás preso, é porque devias estar preso.
Aliás, falando em Nilo Batista, e desviando do assunto novamente para a política, esse sim era um nome que tu devias ter nomeado para o Supremo. Poxa, tu não nomeaste nenhum penalista, e agora o que acontece, acontece que a maior parte dos integrantes do Supremo não sabe o que é uma prisão, dá para manter todo mundo preso sem um pingo de peso na consciência, convalidam mandado de busca e apreensão como se fosse um mandado de penhora, permitem condução coercitiva como se fosse uma intimação para depor em juizado, autorizam execução antecipada da pena como se ninguém corresse um grande risco de morrer, assassinado ou por doenças, atrás das grades.
Eu sei, eu sei, tu vais dizer que já percebeste isso, afinal estás preso e muitos dos que te mantiveram preso foram nomeados por ti. Eu também sofri na pele uma medida policial, uma busca e apreensão na minha casa autorizada à Polícia Federal por um magistrado nomeado por ti, mas até agora, pelo menos após a violência da busca, não tenho nada para dizer do juiz, apenas que ele não é da área penal, e ser da área penal é muito importante, porque o direito penal é como uma metralhadora, só serve para provocar dor e mortes. Não basta boa vontade para manusear uma metralhadora.
Qual a justificativa dessa medida contra mim? Alguns presos me elogiavam em interceptações telefônicas. O juiz não pode ser respeitado por preso, juiz deve ser odiado, essa é a imagem com a qual o poder judiciário tem buscado legitimidade frente a uma população sofrida por causa da criminalidade crescente, demonstrando-se rigoroso, mais um temido órgão de repressão. Mas depois eu volto a falar dos presos, dos outros presos.
Olha, esse fato acima parece irrelevante, mas é a prova de que eu podia muito bem achar bem feito o que aconteceu contigo, querer te ver preso, mas não, não quero. Seja pela tua idade, seja pelo que você representou para o Brasil, seja porque prisão não resolve nada, seja porque ainda não vi efetivamente o que tu usufruíste do crime, que também não sei qual é, que te imputam.
O mais interessante é que, e isso deve te deixar louco, tem um monte de gente pega com malas de dinheiro, helicóptero com cocaína, motorista milionário, ou seja, gente com dinheiro de verdade na conta, coisa mais fácil de provar, dinheiro na conta, mas estão todos soltos.
E, pior, nessas horas eles alegam o princípio da presunção de inocência, o devido processo legal, a ampla defesa, essas garantias jurídicas facilmente manuseáveis, principalmente em uma sociedade de memória fraca.
Sabe o que é, Lula, o sistema capitalista é feito de dinheiro, status, aparência e malícia, muita malícia, mas acima de tudo o sistema é feito de instituições, todas funcionando sob a mesma base, a que privilegia o acúmulo de capital, a que privilegia o mercado financeiro, em detrimento dos pobres.
Lá estou eu falando de política novamente. Nesse assunto, do mercado financeiro, nem quero tocar mesmo, porque seria a única coisa que estragaria esta carta, pois poderia falar coisas mais pesadas, a ponto de te deixar chateado comigo. Fostes muito bom para os bancos, para o mercado financeiro. Bem, deixa pra lá, pode ser que tu não tenhas tido outra saída, pois, afinal, ninguém ajudou mais os pobres do que você.
O fato é que tu és, além de tudo, um cara simpático. Não sei se vou te conhecer pessoalmente um dia, mas se isso acontecer, tenho muito mais coisa para te falar do que permite uma carta, “privada” (na condição em que tu estás nada é privado, e esse é um agravamento da pena, os presos perdem além da liberdade, a privacidade) ou principalmente pública, como essa que escrevo gora.
O que é importante é ter força, cara, as coisas mudam muito rapidamente nesse mundo. Nunca abaixe a cabeça, porque a esperança combina com cabeças erguidas, e há milhares de pessoas que ainda acreditam em ti, estão te esperando aqui fora, e isso deve ser capaz de te dar uma força tremenda.
Já recebi, na vida, milhares de cartas de presos, e em resposta a quase todas eu vou até o presídio e falo pessoalmente com o preso, mas essa é a primeira vez que escrevo a um preso. E não podia encerrar sem te dizer isso, Lula, mesmo que você tivesse cometido o crime mais bárbaro do mundo, todos os presos são seres humanos, todos os presos têm, acima de tudo, direito, se não porque são seres humanos, porque esse direito está na lei e na Constituição, de serem tratados com dignidade.
Espero que saias daí logo, possas voltar a conviver com os teus familiares, teus netos, mas não esqueças nunca essa situação de encarceramento, percebas o que muitas pessoas passam e passam em condições muito mais severas, em celas imundas, lotadas, com ratos e baratas, do que essas que tu estás vivendo.
Falo isso porque tu és, ainda és, um porta-voz do povo, de boa parte do povo, brasileiro, e grande parte desse povo está atrás das grades.
No mais, quero te desejar sorte, muita sorte. Que as pessoas que te odeiam, que também não são poucas, percebam a covardia que é espezinhar de uma pessoa presa, porque, acredite, Lula, não há limites para o ódio à pessoa encarcerada. Sorte, meu caro, não só tu como todos os brasileiros vão precisar neste novo ano de sorte. Não sou um cara religioso, posso até me considerar um ateu, embora essa conceituação não seja lá de muita importância para mim, mas te desejo muita sorte e, ainda com pouca fé, que tu fiques com Deus.
Grande abraço,
Luís Carlos Valois 


sábado, 29 de dezembro de 2018

A RTP e uma pixordice bolsonariana


1. Todos os cidadãos portugueses estão obrigados a obedecer ao que está disposto na Constituição em vigor. Por maioria de razão, as entidades públicas portuguesas não podem deixar de se comportar de harmonia com a Constituição, estando-lhes evidentemente vedado tomar posições públicas que ostensivamente a contrariem. Este imperativo de obediência à Constituição é especialmente relevante no caso dos meios de comunicação social públicos.

O art.º 46 no nº 4 da Constituição diz expressamente que “não são consentidas organizações (…) que perfilhem a ideologia fascista”. Não há pois qualquer dúvida quanto à ilegitimidade de ser feita propaganda ideologicamente fascista nos meios de comunicação social públicos em Portugal.

2.Ontem, 28 de dezembro, no telejornal da RTP 1 foi anunciado com especial destaque que a respetiva redação tinha escolhido como personalidade internacional do ano de 2018 Jair Bolsonaro. Para sublinhar bem o significado da escolha foram amplamente mencionadas algumas das suas posições indubitavelmente próprias de uma ideologia fascista.

3. Ficámos assim a saber que, completamente ao invés do povo português, a ideologia fascista é maioritariamente bem aceite no seio da redação da RTP 1.

Por um lado, isso ajuda a compreender o modo como as questões políticas aí, muitas vezes, são tratadas.

Por outro lado, é escandaloso que uma emissora de televisão pública publicite ostensivamente uma preferência da sua redação por uma figura internacional claramente identificada com posições ideológicas fascistas; o que traduz uma transgressão grosseira da Constituição em vigor.

Que os redatores da RTP sejam pessoalmente admiradores de Bolsonaro é algo que é da esfera da sua consciência, não deixando de nos mostrar que espécie de gente nos entra todos os dias pela casa dentro, paga pelo erário público.

Que usem o potencial de propaganda do meio de comunicação social onde trabalham para prestigiarem uma ideologia que a nossa Constituição deslegitima é absolutamente intolerável.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Homenagem a Romero Magalhães




Homenagem a Romero Magalhães

Nunca se está preparado para que os amigos nos deixem. Mas há casos em que o inesperado da partida se sublinha a si próprio, quando chega bruscamente. Foi o que aconteceu com Romero Magalhães. Estando eu longe de Coimbra, foi-me impossível participar na cerimónia de despedida. Mas longe não deixei de  percorrer a sua memória. Não me limitei a percorrer o vazio de não voltarmos a falar. Acompanhei-o com saudade, recordando o seu percurso cívico, universitário, cultural e político. Um percurso que fez integrado na aventura coletiva que em Portugal vivemos nas últimas décadas.

Agia e trabalhava sem se deixar aprisionar pelo fugaz brilho das ribaltas efémeras. Movia-o apenas a sua subjetividade mais profunda, as suas convicções firmes e perenes, a sua curiosidade intelectual e a sua ética republicana. Não dava lições a ninguém, talvez sabendo que a única verdadeira lição que pode ser dada é a que possa ser lida no modo como cada um viver. A dar essa lição não se furtou.

Foi estudante de Coimbra nos mágicos anos sessenta do século passado, onde começou a viver cultura, aprendendo com Paulo Quintela no TEUC, do qual viria ser Presidente. Foi o primeiro Presidente da Direção-Geral da AAC, eleito após a crise de 1962. Após a Revolução de Abril, viria a ser deputado à Assembleia Constituinte pelo Partido Socialista e Secretário de Estado da Orientação Pedagógica dos governos presididos por Mário Soares (1976-1978). Foi Presidente da Assembleia Municipal de Coimbra durante vários mandatos.

Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo ingressado como docente na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde se doutorou, obteve a agregação e foi Professor Catedrático até se jubilar. Aí desempenhou reiteradamente funções dirigentes. Foi Comissário-Geral da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (1999-2002) e Membro da Comissão Consultiva das Comemorações do Centenário da República (2009-2011).

A sua obra como historiador é vasta, importante e reconhecida, o que foi justamente sublinhado, já no decurso do corrente mês de Dezembro, pela Universidade do Algarve ao atribuir-lhe um doutoramento honoris causa.

É tempo de saudade, mas é também tempo de memória. Uma memória limpa , sem floreados para ser digna da sua lembrança, mas fazendo-nos recordar sempre como de Romero Magalhães não seria nunca de esperar  a hipocrisia da amabilidade fácil, nem a deslealdade mesmo subtil.


segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Sempre atento!

Num Hospital de Lisboa, quando deviam estar de serviço dois médicos anestesistas, apenas um pode funcionar durante dois dias. Mostrando a sua vocação vigilante o Presidente da República, a propósito da tão relevante falta de um médico durante dois dias, declarou pública e solenemente que estava atento.
Fiquei deslumbrado pela minúcia com que o Alto Magistrado vigia a coisa pública.

No Olimpo, os deuses trovejaram a sua aprovação por este dileto filho que não cessa de os surpreender. Zeus confessou  mesmo  que também ele  queria tirar uma selfie com Marcelo, quando voltasse a encontra-lo.