O
PRESTÍGIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
- uma fantasia interessada
1.
Está em curso uma campanha promovida pela direita justicialista para pressionar
o Governo , constrangendo-o a propor a recondução da atual Procuradora- Geral
da República (PGR) ao Presidente da República, a quem cabe nomeá-la sob
proposta do Governo, para um eventual
segundo mandato.
Nunca, na vigência do atual quadro legal, ocorreu
qualquer recondução. Há uns tempos atrás, a própria Procuradora exprimiu
publicamente a posição de que entendia que o seu mandato era único. O mesmo
aconteceu com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.
A mudança de regime jurídico que gerou o atual teve
como objetivo central acabar com a admissibilidade da repetição ilimitada do
mandato do PGR que, até então, apenas
dependia da vontade política de quem intervinha na sua nomeação. O mandato
único prolongado parece ter sido a opção que foi seguida. Mas essa opção não
ficou consagrada expressamente.
O argumento principal mais correntemente aduzido
para a recondução da atual PGR é o de que o seu mandato foi um êxito que
prestigiou o Ministério Público e a ordem jurídica portuguesa. Esta ideia de um
mandato excelente proclamada por jornalistas, políticos e comentadores, é
ancorada na afirmação recorrente do apreço que por ela têm os portugueses.
Poucas vozes
audíveis ousam erguer-se no espaço público para questionar esse novo dogma. E,
no entanto, esse dogma exprime uma falsidade. Uma falsidade desesperadamente
ocultada pela nuvem mediática conservadora,
que tanto se tem esforçado por enublar a verdade.
Aliás, bastaria o modesto esforço de ler o Expresso,
certamente isento da suspeita de malvadez contra os arcanjos da coisa pública,
para verificar que afinal os portugueses não vivem entusiasmados quanto à
qualidade do mandato de Joana Marques
Vidal.
De facto, na hierarquia do prestígio e apreço
públicos, os magistrados do Ministério Público batem ingloriamente os juízes na
conquista do último lugar. É isso que nos mostra um estudo de opinião publicado
em julho passado no Expresso. Consideram positiva a atuação do Ministério
Público 15,3 % dos inquiridos, enquanto 34,7 % a acham negativa, o que
significa um saldo negativo de 19,4%; 30,6% não a acham boa nem má. Nesta
sondagem, nenhum outro órgão público tem saldo negativo, tendo alguns um forte
saldo positivo. E, se olharmos para estudos idênticos publicados no último ano,
podemos ver que os números obtidos não se afastam muito dos acima referidos.
Portanto, os comentadores, os jornalistas e os
políticos que formulam opiniões com base na ideia de que o mandato da atual PGR
projeta uma imagem pública
positiva, estão enganados ou querem
enganar-nos, confiando na nossa distração.
2.
É óbvio que não depende da popularidade do possível nomeado a legitimidade da escolha de um PGR
por quem tenha competência legal para o fazer. Mas muito menos se pode, com
decência, procurar condicionar uma escolha com alegações falsas. Menos ainda
quando a falsidade dessas alegações é evidente e facilmente verificável.
A mesma nuvem mediática dá uma cor de excelência a
tudo o que o MP fez acontecer nos últimos anos e esquece qualquer notícia de
algo que tenha corrido mal. Mas basta que nos concentremos nas violações do
segredo de justiça para se tornar notória uma deficiência grave no modo como
tem funcionado o MP ao longo do mandato da atual PGR.
E não se está a falar de uma falha funcional
esporádica e não premeditada. Está-se a falar de comportamentos reiterados que
indiciam um padrão de promiscuidade entre uma parte da comunicação social e alguns
protagonistas judiciais, entre os quais surgem muitas vezes como mais prováveis
alguns magistrados do MP.
Embora pela sua natureza esta promiscuidade só seja mediaticamente
apetecível quanto a alvos de elevada notoriedade pública ou de grande peso
institucional, está na disponibilidade dos protagonistas do aparelho judicial a
decisão de a praticar. Mas quem a praticar infringe a legalidade.
Em regra, as fugas de informação em fases iniciais
dos processos são favoráveis aos desígnios de quem pretende acusar e mancham, muitas vezes indelevelmente, e desde logo, a reputação dos potenciais ou reais
arguidos. As versões dos acusadores públicos são difundidas pela comunicação
social como verdade substancial, instituída e final. E assim, por vezes
durante anos, vão decorrendo em lume branco verdadeiros linchamentos
mediáticos, apesar de se estar longe de qualquer julgamento final definitivo
que condene ou absolva.
Desse modo, está a aplicar-se desde logo uma pena
pública de enxovalho ético, sem que o visado se possa defender com armas
iguais. Um enxovalho consubstanciado em imputações mediático-políticas, cuja
força depende, quase exclusivamente, de serem apresentadas como oriundas do
aparelho judicial. Para muitos dos visados é mais penalizadora a exposição
prolongada a campanhas de descredibilização ética e de forte reprovação social
do que um cumprimento de pena.
Ou seja, em alguns casos um processo de investigação
desdobra-se à partida em dois processos distintos: um processo judicial normal
em regra prolongado com um respeito aceitável pelo contraditório, e um
linchamento mediático, em regra feito a partir de uma enorme desproporção e
forças, entre quem é linchado simbolicamente e quem lincha. Esta segunda
vertente do processo é ilegal e é vergonhosa.
Embora, em regra, nos casos mais mediáticos, as
fugas de informação convenham às acusações, não se tem provado que elas partam
em exclusivo ou sequer principalmente do MP. É lógico que o sejam, mas não se têm provado. Em contrapartida ,não há dúvida que, se os protagonistas do
MP envolvidos nesses processo tivessem uma vontade firme de se oporem a essas
fugas , seria muito difícil, ou até impossível, elas ocorrerem com a extensão
com que se conhece.
Esta promiscuidade dificilmente será imune a
estratégias de aproveitamento, nomeadamente de aproveitamento político, para se
atingirem por via judicial o que se não consegue atingir pela via política,
legítima e democraticamente. Não quer dizer que o seja necessariamente, mas não
há nenhum obstáculo estrutural que o impeça.
Daí resultará, naturalmente, que o pluralismo
ideológico e político da sociedade portuguesa conduza à aprovação ou ao
consentimento de uns e à reprovação de outros.
Mas, uns e outros, no seu íntimo, ficarão mais céticos quanto à
imparcialidade da máquina judicial. Pode ser que no momento em que enfrentem
uma imparcialidade que lhes agrade se disponham a aplaudir, mas sabem que se
mudar o vento ela pode virar-se contra
eles.
Como se vê, a promiscuidade acima mencionada não é
uma sequela menor da questão do segredo de justiça, encarando-se esta como um
problema técnico-jurídico sem verdadeira relevância. Ao contrário, é uma grave
insalubridade estrutural do sistema judiciário que lesa gravemente a qualidade
do trabalho judicial e desprotege os cidadãos num ponto nevrálgico da sua vida
e dos seus direitos.
Desta maneira, ainda que tudo o resto fosse
excelente, não se percebe como, perante esta falha tão grave, alguém possa
apelar para que, quem não se mostrou capaz de a colmatar, continue a liderar o
MP. Não se trata de alegar uma falha que justificasse uma demissão, trata-se de
constatar uma impotência que, a prolongar-se, não será certamente benéfica para
o sistema jurídico e para a democracia. Admitir sequer a recondução é por isso
discutível, mas invocar o histórico do mandato como impulso para essa renovação
é verdadeiramente caricato.
As sondagens que acima mencionei mostram que os portugueses estão cientes dessas limitações,
ao contrário da nuvem mediática insalubre e dos arautos justicialistas da
direita mais sôfrega, a qual tem
oscilado neste campo entre a desfaçatez
e a pura desonestidade intelectual e política.
Há uma decisão a tomar, quanto a quem vai
desempenhar as funções de PGR nos próximos seis anos, que cabe conjugadamente a
dois órgãos de soberania por força da lei, o que torna impossível a qualquer
deles nesta matéria ignorar o outro. Desse modo, para nenhum deles seria
inteligente tentar forçar uma solução que não fosse justificável e objetivamente
defensável. Ao Presidente da República
cabe a palavra final, ao Governo cabe fazer a proposta, devendo cada um deles, naturalmente, exercer livremente os
poderes de que dispõe.
Para concluir, não posso deixar de registar que a
direita mais justicialista e a nuvem mediática insalubre se acham no direito de
dizer a António Costa o que ele deve fazer, impedindo-se no entanto de ronronar
a mais leve sugestão quanto ao que deve fazer neste caso Marcelo Rebelo de
Sousa.