segunda-feira, 25 de julho de 2016

Cavaco ou a solene ingratidão



O Professor Cavaco foi para muitos  uma das maiores assombrações políticas que  afligiu Portugal depois do 25 de Abril. Para outros, no entanto, foi a reencarnação de uma providência generosa. A sua política acalentou  as conveniências de alguns e exprimiu as ilusões e os equívocos de muitos.  Mas  não podia ter sido o que foi se não tivesse tido muitos admiradores e alguns amigos. Alguns, entre os mais mediáticos, rodearam-no numa recente homenagem cheia de patine. Um tom elegantemente sépia perfumou o ambiente. Num máximo, como  sinal de uma ousadia discreta, no fundo da mesa, um homenageante, já  um pouco para lá da meia idade, deixava que se visse a sua falta  de gravata.Sabe-se que alguns ausentes mais notórios e anotáveis vieram na hora do café dar aquele abraço. À frente do homenageado um seu antecessor em Belém. já de si habitualmente grave, emprestava ao ambiente um acréscimo de solenidade.

O Professor levantou-se como se fosse já a sua própria estátua e cometeu o esperado discurso. A História com o  H grande dos grandes momentos fez-se sentir no discurso. O fantasma do nosso descontentamento falou. Os nossos pesadelos foram apresentados como sonhos. Cúmplice, a discreta plateia de comensais, aplaudiu com calor mas sem excesso. No perfilar solene das suas palavras surgiram agradecimentos, mencionaram-se feitos e ministros. Louvaram-se alguns esforçados carregadores de pianos das sua campanhas presidenciais. Interrompeu-se mesmo o repouso de Sá Carneiro, para uma invocação rápida. O seu espírito terá tido um bocejo de irritação.

Mas verdadeiramente irritada, paroxisticamente fora de si, terá ficado a alma laranja, a  alma nervosa do PSD. Realmente, o Senhor de Boliqueime ( o célebre lugarejo, que deixou de ser Poço para não estragar o lustro de lá ter nascido o Professor),que no discurso distribuiu agradecimentos com a mesma generosidade com que o atual inquilino de Belém distribui comendas, nem por uma vez, ao menos de raspão se referiu ao seu partido, o PSD. Nem uma vez!!

Recordam-se dos milhares de bandeiras laranja que invadiram ruas e praças, comemorando  as vitórias que sentaram Cavaco, primeiro em São Bento e depois em Belém? Recordam-se? Pois esqueçam já que  nada disso aconteceu! O Professor foi chefe de governo e presidente da República apenas pela sua irradiante popularidade pessoal e pela sua consabida infalibilidade. As vitórias laranja nunca existiram e o PSD também não, pelos vistos. Os presidentes de câmaras laranjas, os presidentes das juntas de freguesia laranjas, os governadores das regiões laranjas, nunca existiram. São fruto de imaginações doentias que se recusam a ver em Cavaco um gigante político que voa acima de todos e por cima de tudo.

Diverte-me ver como o mar de bandeiras laranjas que se agita no Chão da Lagoa, ano após ano, fica reduzido a um discreto marulhar de ondas desaparecidas , que o Professor Cavaco se pode agora dar ao luxo de ignorar. Se eu fizesse parte desse mar não ficaria satisfeito, mas também por isso,fico satisfeito por não fazer parte dele. 

Dizem os supostos adivinhadores de evidências que em política não há gratidão. Podemos ou não engolir a fição caváquica de que ele próprio não é nem nunca foi um político, mas não podemos deixar de constatar que quanto ao tique solene da falta de gratidão Cavaco se revelou um político de puro sangue.