Este texto de Wanderley Guilherme dos Santos
pode ler-se na página da revista brasileira CartaCapital, onde foi colocado no
dia 28/01/2014, tendo sido publicado originalmente com o título Vem pra rua você
também, na edição 783 da
referida revista .
O título pelo qual está
identificado é sugestivo: “Como o PT ajudou o
PSDB a virar à direita”. A frase que se lhe segue anuncia o
sentido do texto: “O PT se mudou para o centro, distendeu-o, e
tornou praticamente inviável a existência de uma coalizão de centro-esquerda.”
A importância do que se tem passado no BRASIL,
desde o início do primeiro mandato presidencial de Lula, ao qual a Presidente Dilma
tem vindo a dar sequência, é notória. Para o nosso país e, em especial, para as nossas esquerdas essa importância é
acrescida. Por isso, achei que devia transcrever neste blog o que escreveu sobre a
conjuntura política brasileira um intelectual e académico tão relevante, tão
reputado e tão merecedor de atenção como é o caso de Wanderley Guilherme dos Santos.
Eis o texto:
“O PSDB não chegou à direita pelas
próprias pernas. Teve a ajuda do Partido dos Trabalhadores (PT), que se mudou
para o centro, distendeu-o, e tornou praticamente inviável a existência de uma
coalizão de centro-esquerda. Aécio Neves nunca foi reformista, mas julgá-lo um
direitista genético é exercício de ativista dogmático. O centro distendido sob
hegemonia do PT empurrou a oposição para a vizinhança da extrema-direita,
precipitando a derrota intestina de José Serra, agarrado a um reacionarismo impensável
em quem discursou no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964.
À oposição restam bandeiras pragmaticamente vazias, tais como a encenada
indignação moral e acenos genéricos de eficiência. Sem falar no reacionarismo
religioso e na defesa de um livre-mercadismo de fachada. Como é notório, só com
brutal intervenção do Estado um governo de centro-direita será capaz de
subverter a legislação petrolífera, os programas Mais Médicos e Minha Casa
Minha Vida. Mesmo para fazê-los definhar, um governo de centro-direita
precisará de boa dose de coação sobre uma burocracia estatal comprometida com o
progresso, ademais de extrair enorme boa vontade do Congresso Nacional.
Esse mesmo Congresso, aviltado pela
imprensa conservadora e pela esquerda caolha, foi a instituição que aprovou o
regime de partilha do pré-sal, ainda no governo Lula, e tem apoiado as
principais políticas sociais do governo Dilma Rousseff. Uma política de
liberalismo desenfreado só será possível com a transformação do Estado brasileiro
em variante do bismarckismo alemão. O avesso do que o eleitorado conservador
deseja.
O centro estendido do PT também trouxe
dificuldades para o campo progressista. A mais óbvia transparece na acusação de
reacionarismo a qualquer opinião divergente, autônoma em relação à cadeia de
comando dos líderes do centro-baleia, a começar pelas palavras de ordem do
Partido dos Trabalhadores. Embutida na interdição esconde-se menor
probabilidade de que deficiências reais de governança sejam proclamadas por
aliados. Avanços sociais estão conectados a manifestações de inconformismo, sem
automática identificação com a oposição do momento. Durante os governos Vargas
e JK sucederam-se greves e passeatas a favor de políticas nacionalistas e de
críticas a medidas específicas. As manifestações não atendiam a nenhuma
convocação da direita, do tipo “Vem pra rua você também”, que atualmente
apavora a esquerda e o governo. O governo opera com déficit de crítica
consistente.
Reflexo do ambiente intoxicado, o
sindicalismo operário emudeceu. Limitado a manifestos plenos de estereótipos,
copia a genérica pauta direitista – ensino público de qualidade (nunca haverá
suficiente, o conhecimento progride), saúde pública, transporte, moradia,
segurança. Elegibilidade para os analfabetos, que é bom, nada; participação dos
trabalhadores na administração das grandes corporações, nem pensar. Não mais do
que dois exemplos de uma pauta latente, ausente da cogitação sindical. Os
sindicatos não se recuperaram do choque de haver perdido o controle das ruas.
Reescrever ideologicamente a história de junho de 2013 não garante a
recuperação de iniciativa crível, seja por decreto, seja por currículo de
glórias passadas.
Outra consequência da consolidação do centro expandido foi a instauração de um
vazio institucional à esquerda, vicariamente ocupada por aglomerado de grupos
heterogêneos. A coalizão parlamentar do governo tornou irrelevante o apoio da
centro-esquerda. Sem considerar o PMDB, cuja análise não é simples, a coalizão
do PT tem como coligados numéricos o PP/PROS, o PSD, o PR/PTdoB/PRP, seguidos,
até recentemente, pelo PSB, em parte pelo PDT e pelo PCdoB. O total de cadeiras
desse último grupo (PSB, PDT e PCdoB) não passava de 56. Só o PP, o PR e o PROS
detêm um conjunto de 89 cadeiras na Câmara dos Deputados. A cooperação
costurada entre os partidos deixou o PT a vários passos de distância de seu
parceiro ideológico adjacente, o PSB (24 cadeiras). O rumo do governo é vigiado
pelo núcleo duro da centro-direita.
Independente dos motivos do governador
Eduardo Campos, cujas alianças provocam resistências entre os socialistas, a
saída do PSB do governo só surpreende pelo tempo que demorou a acontecer. Para
um partido que busca crescer nas eleições proporcionais pela via ideológica da
centro-esquerda, talvez a oportunidade tenha sido perdida. A tentativa de
enfiar uma cunha entre o centro expandido do PT e o PSDB sofre das dificuldades
diante da coalizão no poder e da incoerência ao aceitar o direitismo do Rede
como segundo em comando (e há quem duvide que o Rede seja mesmo o segundo em
comando) além das oscilações na conduta do candidato Eduardo Campos.
O vazio à esquerda tem sido ocupado por
grupos inconformados com o estado do mundo, em geral. Desde logo, esse
burburinho nada tem a ver com os “precariados” de Guy Standing (The Precariat –
London, Bloomsbury, 2011), tese recém-importada. Ao contrário de desempregados,
trabalhadores temporários, classe média empobrecida e com miséria à vista, os
manifestantes de junho de 2013 eram na maioria jovens de classe média ou
empregados com salários acima de dois salários mínimos (30,3% deles em 20 de
junho de 2013, no Rio de Janeiro, segundo a Plus Marketing consultoria) e
segmentos em processo de ascensão social. Outras pesquisas registraram o nível
superior de estudos de expressivo número de participantes. Economicamente, o
elevado custo do meio utilizado para a mobilização – as redes sociais
eletrônicas – exclui os presumidos “precariados” da frequência a participações.
Vale registrar que, ao contrário da Europa, à intensidade das manifestações
seguiu-se a rapidez de sua dissolução em números de manifestações, de
participantes e de cidades contagiadas.
Além do equívoco da classificação de “precariados”, é simplismo considerar que
uma convocação fascista obteria tamanho sucesso. Houve a infiltração
fascistoide posterior, que terminou por se apropriar da liderança dos
acontecimentos. A fragilidade estratégica desses aglomerados, contudo,
revelou-se na velocidade com que os grupos de professores, enfermeiras, a maioria
de funcionários públicos, foram abandonando as marchas. Reconhecer as
diferenças entre os movimentos de 2013 e os movimentos europeus permite supor
que as manifestações não aderiram, aqui, ao precipitado diagnóstico de fracasso
da social democracia brasileira.
A rejeição atingia todas as formas de participação institucionalizada. O que
havia e há é um vácuo desde que a marcha para o centro levou o governo a
esconder sob inegáveis vitórias econômicas a pauta de modernização do
pluralismo social brasileiro: aborto assistido, relações homoafetivas,
regulamentação do uso de drogas recreativas, pesquisas com seres vivos, temas,
entre outros, eliminados por imposição da direita do centro. A Presidência
tornou-se forte parlamentarmente ao preço de se enfraquecer perante a sociedade
em mudança.
Algo de novo existe. Trata-se de inédito
tipo de intervenção política. Grosso modo, a análise do capitalismo toma por
base as classes, as corporações profissionais e cristalizados grupos de
interesse. Entendo que os movimentos recentes são constituídos pelo ajuntamento
de atores menos abrangentes do que as classificações preponderantes. Eles
proliferam como pequenas coletividades de exígua tolerância e com exigentes
critérios de pertencimento. Denomino-os, sem ofensa, de “micróbios” (pequena
vida), primeiro em razão de seu tamanho, e pelo fato de que não possuem
denominador comum. Nem todos são patogênicos ou letais, que os há benéficos ao
exercício da democracia.
Nessa ecologia há lugar para
microlegendas, como o PSTU e o PSOL, que encontram em tal cenário a rara
oportunidade de serem notados. Comparecem também os grupos nanicos
reivindicando direitos (moradores do bairro tal ou qual) ou só comemorando a
própria existência, avessos a partidos, sindicatos ou corporações de ofício.
São erupções intensas de vida política, mas de curta duração. Eficazes no curto
prazo, sem influência em período mais extenso. Eleições são fenômenos de curto
prazo, mas o fenômeno dos “micróbios” não é só eleitoralmente relevante. É uma
criação da sociedade contemporânea e, portanto, compatível com a convocatória:
“Vem pra rua você também”. Os democratas deviam adotá-la e voltar às ruas para
conquistá-las.”