domingo, 25 de outubro de 2015

O fantasma do golpe falhado.

 
O fantasma do golpe falhado.

1. A direita urdiu um suave golpe de Estado para a hipótese de não chegar à maioria absoluta nas eleições legislativas passadas.
O seu ponto de partida foi o de ficcionar uma equiparação plena entre a coligação  PSD/CDS e os  partidos políticos, de modo a que no parlamento os dois partidos da coligação não valessem pelo número de deputados que cada um tivesse, mas pela soma dos deputados de ambos. Essa ficção parecia não o ser, quer pelo próprio modo como se publicitavam as sondagens, quer por força da propaganda feita pelo aparelho mediático dominante e pela direita político-partidária. As esquerdas menosprezaram o significado dessa campanha, por erro ou porque cada uma delas pensasse poder tirar vantagens dessa ficção ou por recear que a contrapropaganda que fizesse lhe pudesse trazer desvantagens. Mas essas omissões não transformaram a ficção em realidade.
O primeiro elemento do golpe era chamar, em primeiro lugar, para formar governo o dirigente da coligação de direita, se esta tivesse mais deputados do que o PS, mesmo que fosse o PS o partido com o maior número de deputados. Esse primeiro passo tornou-se desnecessário porque o PSD, por si só, teve mais deputados do que o PS.
Mas, dada a ausência de uma maioria absoluta de direita, a continuação do estratagema que se preparara implicou uma nova ambiguidade: Passos foi chamado ao PR por representar o partido com mais deputados, mas valorizou especialmente a sua qualidade de líder de uma coligação; Passos e Portas assumiram a perenidade política da coligação, mas sentiram-se na necessidade de a renovarem, formalmente, como se ela tivesse caducado.
O segundo tópico do golpe pressupunha e implicava o isolamento político do PS. Dava-se como adquirido que o PS não tivesse espaço de manobra no seio das esquerdas e punha-se diante dele uma coligação soldada por uma vitória relativa nas eleições e formalmente confirmada, que o arrastaria para um apoio envergonhado, pondo nele  toda responsabilidade pelo desenrolar da governação da direita, mas privando-o de qualquer poder relevante. O PS seria então  objeto de todas as pressões, para que deixasse a coligação governar como lhe aprouvesse,  e um alvo fácil dos diktats dos poderes económicos nacionais e internacionais. Além disso, por causa dessa rendição, não disporia de qualquer solidariedade no seio das esquerdas; e mesmo de uma grande parte dos seus militantes e do seu eleitorado.
A coligação de direita governaria enquanto achasse isso vantajoso,  à custa do enfraquecimento e até da fragmentação do PS, para quem, nessas condições, novas eleições poderiam ser fatais. A direita servia-se assim do PS e ainda o enfraquecia. Para ela, era o cenário perfeito, permitindo a sua  perpetuação no poder, à custa do risco de destruição do PS, mesmo que esta levasse a uma grave deterioração da democracia em Portugal. E é esta miserável urdidura  que a direita identifica como um reflexo do que diz serem  os"superiores interesses nacionais". Eloquente e revelador.

2. Mas esses cálculos imprudentes e levianos revelaram-se ilusórios. O PS, seguindo um caminho natural correspondente à sua identidade histórica e aos desafios concretos da conjuntura, abriu negociações com as outras esquerdas. Estas, lendo com inteligência e realismo o que o povo de esquerda no seu todo deseja, aceitaram dialogar. Este enorme degelo deixou a coligação isolada. Para cúmulo,  outros partidos europeus  irmãos do PS vieram apoiá-lo e encorajá-lo.
Os vários líderes das várias direitas ficaram desorientados e raivosos. Patética, a direita político-partidária tentou  negociar com o PS como se continuasse vigente o cenário político com que tinha sonhado mas que já não existia. Propôs-se negociar com ele, no entanto, sem deixar de o agredir e de ostentar uma vitória que não teve; e acabando por ser ela a romper as negociações. Desse modo, aprofundou  mais o fosso que a separava do PS, crispou o povo de esquerda contra ela, tornando ainda mais difícil para as esquerdas não chegarem a acordo.
 Sujeitando-se ao ridículo, persiste na publicitação de uma vontade negocial extemporânea, mas que nem agora consegue revestir de verosimilhança. De facto, continua a assumir-se como a expressão única do que está certo e a encarar o PS como um relapso cometedor de erros, que só poderá  redimir-se dos seus pecados, submetendo-se às conveniências e às opções da coligação de direita. Parece estúpido. E só o não será, por ser um mero artifício de propaganda, destinado a ocultar uma derrota parlamentar anunciada, ao mesmo tempo que a tenta inscrever como culpa na folha de  terceiros.
Por seu lado, o Presidente da República, em vez de desistir da tentativa de golpe de Estado que, na prática, já foi esvaziada, agiu como se ela ainda estivesse em marcha e pudesse ter êxito, renunciando desse modo a ser institucionalmente fiel ao  seu lugar e ao seu dever para com o país. Agiu como um chefe político da direita, sôfrego e desesperado, que, apesar de precisar da ajuda do PS para a realização dos seus desígnios, não hesitou em desconsiderá-lo, insultando-o em conjunto com os outros partidos de esquerdas. E assim insultou um conjunto de partidos que no seu todo tiveram o apoio da mais de metade do eleitorado, de milhões de portugueses. 

3. Vendo agora o chão fugir-lhe debaixo dos pés, a direita cai no ridículo de se achar habilitada para indicar ao PS o que ele deve ou não fazer, de se arvorar em mensageira dos eleitores que votaram no PS para lhes imputar as motivações que a ela lhe convêm, de exigir às esquerdas acordos escritos e compromissos nisto e naquilo, ao arrepio de tudo o que é corrente na vida política e está constitucionalmente previsto. Permite-se mesmo inventar um conjunto onde se mete com o PS, para assim se ostentar como imaginariamente  maioritária, como se a identidade politico-ideológica do PS estivesse dependente do que a direita pensa ou deseja que ela seja ou deva ser. Apesar dessa tentativa de se misturar com o PS, não deixa todavia de permanentemente  o agredir nos termos mais rasteiros.
 O PS e todos os partidos da esquerda e da direita têm que obedecer à Constituição e agir dentro da legalidade. Mais nada. O PS e os outros partidos não têm que obedecer áquilo que os apoiantes de terceiros  achem que eles devem fazer. Inventar costumes, rotinas e precedentes, destituídos de qualquer valor jurídico, para tentar limitar a liberdade de decisão do PS ( ou de qualquer outro partido) é uma pulsão autoritária e ilegítima que em democracia é politicamente idiota.

4. Por isso, a direita tem que perceber que a tentativa de permanecer no poder, apesar de ter perdido as eleições (ao não ter conseguido obter a maioria absoluta, que lhe permitiria governar, e tendo contra ela uma maioria absoluta de deputados à sua esquerda, que se concertou para gerar uma solução de governo) falhou. Não lhe adianta esbracejar e vociferar, como se tivesse o direito de consumar com êxito a tentativa de golpe que se frustrou.
Pelo contrário, deve compreender que o melhor contributo que pode dar para um regresso rápido à normalidade democrática é aceitar os resultados eleitorais no seu todo e comportar-se dentro dos parâmetros normativos da nossa Constituição. Se o fizer, só se dignificará com isso, compensando a deriva antidemocrática para que se deixou arrastar.
Pelo contrário, se persistir, podemos ter pela frente tempos difíceis Na verdade, os malefícios que a direita, nas suas várias expressões, pode causar ao nosso país e aos portugueses, com o seu apego desesperado ao poder e a sua doentia recusa de ter em conta a vontade popular no seu todo, podem vir a ser  bem maiores do que aqueles que ela diz recear, se outros a substituírem no governo.
Chega, aliás, a parecer que a  direita em Portugal está a fazer um apelo aos poderes de facto da finança internacional para que venham pressionar o nosso povo, empobrecendo-o ainda mais, enfraquecendo-o, tentando fazê-lo ajoelhar, convicta que só agredindo e tentando amedrontar os portugueses pode esperar voltar ao poder. Será repugnante se isso acontecer, mas não seria a primeira vez que, na nossa longa história, os poderosos de dentro serão agentes dos poderosos de fora, numa agressão suja  contra os outros portugueses.
Ainda tenho alguma esperança que desta vez isso não aconteça.


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